*PREFÁCIO* - PRIMEIRO LIVRO NÊGO BISPO (2007) - QUILOMBOS, MODOS E SIGNIFICADOS
Prefaciar Quilombos: Modos e Significados constitui-se tarefa difícil, principalmente porque não se consegue de forma sucinta, prefaciar ideias que apresentam o acúmulo de um povo, de uma raça, de identidades coletivas construídas na diversidade adversa, na resistência, nas festividades, nos terreiros, nas rodas, na roça, na cidade, no campo, na vida, na ancestralidade, e é desta complexidade que este livro trata, portanto, embora pareça paradoxal, aproveito a oportunidade para dialogar com o guerreiro Antonio Bispo dos Santos, como sempre fizemos, ora concordando com suas análises, ora aprendendo com sua sabedoria, ora discordando e/ou procurando entender melhor suas reflexões e afirmativas.
O que Bispo apresenta nesta obra, é o que poderíamos chamar de as bases para uma filosofia da sociologia afro-pindorâmica. São embasamentos teóricos e práticos para a compreensão das diversas formas de organização social e significação do universo, durante todo o livro dialoga com várias ideias e categorias de autores da sociologia (K. Marx, E. Durkheim, M. Weber, só para citar os clássicos). Discute as bases morais do monoteísmo judaico-cristão; identifica suas estruturas; questiona a luta de classe como categoria para explicar as relações sócio-culturais do processo de colonização no país; confronta a pesada estrutura sindical, tudo isto numa desenvoltura só possível a guerreiros e feiticeiros como ele, num processo que mostra a sabedoria de sua ancestralidade africana.
Discutindo ideias, Bispo questiona as nossas verdades absolutas e incita-nos a refletir sobre outro prisma, apresenta outras verdades e remete-nos a olhar a sociedade a partir de outros lugares, força-nos a sair da apatia, propõe lógicas circulares e confluentes.
Quero manifestar minha primeira discordância de Bispo, se este trabalho não tem caráter acadêmico, isso pouca importa, certamente terá grande valor nas rodas para reparação e reformulação das bases teóricas, metodológicas e práticas das identidades e coletividades dos povos africanos e pindorâmicos.
Continuando este diálogo, será preciso localizar e caracterizar alguns dos muitos debates contidos neste livro, no decorrer deste prefácio, tomarei a liberdade de fazer menção a outros momentos e debates levantados por Bispo nos vários espaços que tive a oportunidade de compartilhar, aonde sua percepção do mundo não se deixa passar despercebida, e assim sua filosofia da sociedade vai se consolidando, lembrando um dos mais belos princípios da dialética, a negação da negação.
Pretendo não fazer uma leitura linear do livro, quero falar da liberdade que o livro prega, da sua poesia, como faz Bispo na sua introdução, que coloca em xeque o Estado e o direito positivista, revelando o caráter excludente e cínico da sociedade branca, “Dá cadeia para quem me chamar de analfabeto...”, ora! como diz, só não dá cadeia ao Estado que impõe o analfabetismo. Bispo traz ao debate o papel do Estado enquanto mediador de conflitos de raça internalizados nas várias culturas, localiza o debate na cor e no significado de ser negro no Brasil e em grande parte do mundo.
Bem característico, podendo sinalizar estilo, Bispo usa o principal instrumento do catolicismo para desmontá-lo, as bulas papais, mostrando como se legitimou a escravidão. Não fazendo um debate sectário, e sim histórico, levanta trechos da Bíblia que referendam a prática da escravidão e dos castigos a que muitos povos foram e são submetidos. É a fala de quem vive e luta.
Ao ler os primeiros capítulos, lembrei de uma passagem marcante de nossas vidas, quando em 1997, um grupo de pessoas, entre elas: Rommel, Zilton, Rosana, Cristina, Sueli, eu, Bispo, Rosalina, Osvaldina, Seu Adrelino, Vanusa, Manuel Marinho, Ruimar Batista, Leosmar, Sabino, dentre outras poucas, discutíamos sobre a necessidade de organização do movimento quilombola no Piauí, à época muito incipiente, no debate questões de preconceitos, opressão materializados em assassinatos, açoites, destratos, falta de terra e de todas as políticas necessárias às pessoas. Bispo avaliava que deveria sair do movimento sindical (FETAG/PI) e dedicar-se à luta do povo negro. O intrigante é que fazia este debate dentro da igreja católica central da cidade de São João do Piauí, que ainda tinha como padre, uma das figuras que já passou pela estrutura do Estado (Secretário da Educação, Deputado, etc.) e achava-se dono de tudo e de todos, principalmente do que deveria acontecer naquele lugar sagrado. Falo de Padre Solon.
Ainda lembro quando padre Solon interrompeu nossa reunião e tentou de forma autoritária falar, emitir sua opinião contrária ao nosso debate, justamente quando Bispo caracterizava o papel nefasto que sempre cumpriu a igreja, não podia dar em outra, Bispo mais uma vez fez jus à luta de um povo contra o seu opressor, confrontou de forma dura e direta o padre dizendo em alto e bom som “Eu sou o diabo”.
Bispo tinha razão, para aquele padre, que representava naquele momento as igrejas, e para tantos outros, os negros e as negras, os povos que aqui vivem e resistem, são o diabo. Aquele dia marcou profundamente todas e todos nós. Caracterizo como um marco em nossa luta.
Associar o escravismo ao cristianismo não é nenhuma novidade, afinal “As ideias dominantes de uma época, são as ideias da classe dominante desta mesma época” (K. Marx), o que Bispo propõe é olharmos a história a partir das peculiaridades e diversidade de seu povo e de sua raça, ver a realidade a partir das matrizes culturais, independente se estavam aqui ou se vieram da África, ambos foram escravizados e colonizados. Na outra ponta, apresenta a matriz do povo europeu, branco, sob o bastão da igreja e suas leis, colonizando em nome de Deus e de seus interesses.
“Cupim que vai pra festa de mambira, não volta”.
Aprendi com Bispo que nesta história, somos cupins, portanto, precisamos montar nossas estratégias e definir nossas armas. Este livro é uma delas.
Como cupins fazem parte da natureza, quero compartilhar as ideias construídas a respeito do trabalho, tão caro aos cristãos e às sociedades capitalistas (sociedades do trabalho). Concordando inteiramente com o que está exposto, e não muito obstante, quero acrescentar a este debate uma outra forma de olhar a teoria de Marx sobre o trabalho, não que este olhar não exista, apenas é pouco explorado pelos seus estudiosos e/ou seguidores, se não, vejamos: para Marx o trabalho existe para suprir as necessidades, tendo como função proporcionar gozo e prazer às pessoas. Infelizmente em muitas sociedades o trabalho foi apropriado e mercantilizado, tornando-se muitas vezes castigo, não cumprindo o seu papel de inter-relação com a natureza e as divindades.
Bispo traz questões novas para o debate, entre elas, a de localizar a luta de Caldeirão do Beato Frei Lourenço à luta do povo quilombola, tirando o caráter messiânico atribuído por historiadores e antropólogos que estudam a região. Nos faz pensar que não apenas Caldeirão, como também Canudos, Pau de Colher, dentre outros, são estudados apenas enquanto resistências messiânicas, negando características de classe, gênero, raça e etnia.
Traz uma outra forma de conceituar quilombos, presente na cultura da farinhada, das pescarias, das danças de roda, da capoeira, dentre tantas outras Brasil a fora. Mostra que o quilombo, a exemplo dos quilombos fixos, é plural, e somos nós que o construímos a cada dia com nossas resistências.
Bispo termina sua obra fazendo fortes provocações, em especial ao movimento sindical, lugar do qual já participou, questiona a luta de classes e afirma que patrões e empregados usam da mesma matriz para continuar existindo, questiona o movimento em seus teóricos e termina dizendo que sua forma de interpretar o mundo (quilombo) não substitui as outras formas, o fato de ser 99 ou 66 depende de quem e de que lugar se está olhando.
Tenho algumas discordâncias neste caso do que diz e defende Bispo, porém, de uma coisa eu tenho certeza, estou dialogando com quem constrói na prática o que muitos só conhecem no discurso. Estou dialogando com um GUERREIRO.
Quero terminar este prefácio com o último parágrafo deste livro.
Quem sabe, ao invés de identificar e punir os culpados, encontraremos meios de solucionar muitos dos problemas que assolam as sociedades e assim, como nos quilombos, viveremos a unidade na diversidade, considerando que os quilombos não são alternativas a nenhuma das outras organizações sociais nem pretendem a elas serem comparadas. Quilombo é apenas uma filosofia de vida capaz de conviver com as demais.
Bom debate pra todas e todos nós.
Que este livro cumpra o seu papel histórico.
Antônio Gomes Barbosa
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