Prefaciar Quilombos: Modos e Significados constitui tarefa difícil, principalmente porque não se consegue, de forma sucinta, prefaciar ideias que representam o acúmulo de um povo, de uma raça, de identidades coletivas construídas na diversidade adversa — na resistência, nas festividades, nos terreiros, nas rodas, na roça, na cidade, no campo, na vida, na ancestralidade. É dessa complexidade que este livro trata. Portanto, embora pareça paradoxal, aproveito a oportunidade para dialogar com o guerreiro Antônio Bispo dos Santos — como sempre fizemos — ora concordando com suas análises, ora aprendendo com sua sabedoria, ora discordando, ora procurando entender melhor suas reflexões e afirmações.
O que Bispo apresenta nesta obra é o que poderíamos chamar de bases para uma filosofia da sociologia afro-pindorâmica. São embasamentos teóricos e práticos para a compreensão das diversas formas de organização social e de significação do universo. Durante todo o livro, ele dialoga com várias ideias e categorias de autores da sociologia (K. Marx, E. Durkheim, M. Weber, só para citar os clássicos).
Discute as bases morais do monoteísmo judaico-cristão; identifica suas estruturas; questiona a luta de classes como categoria para explicar as relações socioculturais do processo de colonização no país; confronta a pesada estrutura sindical — tudo isso com desenvoltura só possível a guerreiros e feiticeiros como ele — num processo que revela a sabedoria de sua ancestralidade africana.
Ao discutir ideias, Bispo questiona nossas verdades absolutas e incita-nos a refletir sob outro prisma; apresenta outras verdades e remete-nos a olhar a sociedade a partir de outros lugares. Ele nos força a sair da apatia, propõe lógicas circulares e confluentes.
Quero manifestar minha primeira discordância a Bispo: se este trabalho não tem caráter acadêmico, isso pouco importa. Certamente terá grande valor nas rodas para a reparação e reformulação das bases teóricas, metodológicas e práticas das identidades e coletividades dos povos africanos e pindorâmicos.
Continuando este diálogo, será preciso localizar e caracterizar alguns dos muitos debates contidos no livro. No decorrer deste prefácio, tomarei a liberdade de aludir a outros momentos e debates levantados por Bispo nos vários espaços que tive a oportunidade de compartilhar — onde sua percepção do mundo não se deixa passar despercebida — e assim sua filosofia da sociedade vai se consolidando, lembrando um dos mais belos princípios da dialética: a negação da negação.
Não pretendo fazer uma leitura linear do livro; quero falar da liberdade que ele prega, da sua poesia. Ele começa sua introdução colocando em xeque o Estado e o direito positivista, revelando o caráter excludente e cínico da sociedade branca:
“Dá cadeia para quem me chamar de analfabeto…”, ora! — como diz — só não dá cadeia ao Estado que impõe o analfabetismo.
Bispo traz ao debate o papel do Estado como mediador de conflitos de raça internalizados nas várias culturas, localiza o debate na cor e no significado de ser negro no Brasil (e em grande parte do mundo).
Bem característico — e possivelmente sinalizador de estilo — é que Bispo usa o principal instrumento do catolicismo para desmontá-lo: as bulas papais, mostrando como se legitimou a escravidão. Sem um debate sectário, mas sim histórico, ele levanta trechos da Bíblia que referendam a prática da escravidão e os castigos a que muitos povos foram e são submetidos. É a fala de quem vive e luta.
Ao ler os primeiros capítulos, lembrei-me de uma passagem marcante de nossas vidas: em 1997, um grupo de pessoas — entre elas Rommel, Zilton, Rosana, Cristina, Sueli, eu, Bispo, Rosalina, Osvaldina, Seu Adrelino, Vanusa, Manuel Marinho, Ruimar Batista, Leosmar, Sabino — dentre poucas outras, discutíamos a necessidade de organização do movimento quilombola no Piauí — então muito incipiente — debatendo questões de preconceito, opressão materializadas em assassinatos, açoites, destratos, falta de terra e daquelas políticas necessárias às pessoas.
Bispo avaliou que deveria sair do movimento sindical (FETAG/PI) e dedicar-se integralmente à luta do povo negro. O intrigante é que ele fazia esse debate dentro da igreja católica central da cidade de São João do Piauí — que, à época, tinha como padre uma figura que já ocupou cargos públicos (secretário de Educação, deputado etc.) e se achava dono de tudo e de todos, principalmente do que deveria acontecer naquele espaço sagrado. Refiro-me ao padre Solon.
Lembro ainda quando o padre Solon interrompeu nossa reunião e tentou, de forma autoritária, emitir opinião contrária ao debate, justamente quando Bispo caracterizava o papel nefasto sempre desempenhado pela igreja. Não podia ser diferente: Bispo, mais uma vez, fez jus à luta de um povo contra seu opressor, confrontou de forma dura e direta o padre dizendo, em voz alta: “Eu sou o diabo.”
Bispo tinha razão. Para aquele padre — que representava as igrejas naquele momento — e para tantos outros, os negros e as negras, os povos que aqui vivem e resistem, são o diabo. Aquele dia marcou profundamente todas e todos nós. Caracterizo-o como um marco em nossa luta.
Associar o escravismo ao cristianismo não é novidade alguma. Afinal, como diz Marx:
“As ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante dessa mesma época.”
O que Bispo propõe é olharmos a história a partir das particularidades e da diversidade de seu povo e de sua raça, ver a realidade a partir das matrizes culturais — independentemente de virem da África ou de cá —, pois ambos foram escravizados e colonizados.
Na outra ponta, ele apresenta a matriz do povo europeu branco sob o bastão da igreja e suas leis, colonizando em nome de Deus e de seus interesses.
“Cupim que vai pra festa de mambira, não volta.”
Aprendi com Bispo que, nessa história, somos cupins; portanto, precisamos montar nossas estratégias e definir nossas armas. Este livro é uma delas.
Como cupins fazem parte da natureza, compartilho ideias construídas a respeito do trabalho — tão caro aos cristãos e às sociedades capitalistas (sociedades do “trabalho”).
Concordo inteiramente com o que está exposto. E, não obstante, quero acrescentar ao debate outra forma de olhar a teoria marxista do trabalho — não que esse olhar não exista, apenas é pouco explorado por seus estudiosos ou seguidores. Se não me faltam razões, vejamos: para Marx, o trabalho existe para suprir as necessidades, tendo como função proporcionar gozo e prazer às pessoas.
Infelizmente, em muitas sociedades, o trabalho foi apropriado e mercantilizado, tornando-se muitas vezes castigo, não cumprindo seu papel de inter-relação com a natureza e as divindades.
Bispo introduz questões novas no debate, entre as quais a de situar a luta do Caldeirão do Beato Frei Lourenço à luta do povo quilombola, retirando o caráter messiânico atribuído por historiadores e antropólogos que estudam a região. Ele nos faz pensar que não apenas Caldeirão, mas também Canudos, Pau de Colher e tantos outros são estudados apenas como resistências messiânicas, negando características de classe, gênero, raça e etnia.
Ele apresenta outra forma de conceituar quilombos — presente na cultura da farinhada, das pescarias, das danças de roda, da capoeira, entre tantas outras Brasil afora. Mostra que o quilombo — à semelhança dos quilombos fixos — é plural, e somos nós que o construímos dia após dia com nossas resistências.
Bispo encerra sua obra com fortes provocações, especialmente ao movimento sindical, do qual já fez parte. Ele questiona a luta de classes e afirma que patrões e empregados utilizam a mesma matriz para continuarem existindo. Questiona os teóricos do movimento e conclui dizendo que sua forma de interpretar o mundo (quilombo) não substitui outras formas; o fato de ser “99” ou “66” depende de quem e de que lugar se olha.
Tenho algumas discordâncias com o que Bispo diz e defende, porém, de uma coisa estou certo: estou dialogando com quem constrói, na prática, aquilo que muitos conhecem apenas no discurso. Estou dialogando com um GUERREIRO.
Quero terminar este prefácio com o último parágrafo deste livro:
“Quem sabe, ao invés de identificar e punir os culpados, encontraremos meios de solucionar muitos dos problemas que assolam as sociedades e assim, como nos quilombos, viveremos a unidade na diversidade, considerando que os quilombos não são alternativas a nenhuma das outras organizações sociais nem pretendem a elas serem comparados. Quilombo é apenas uma filosofia de vida capaz de conviver com as demais.”
Bom debate para todas e todos nós.
Que este livro cumpra seu papel histórico.
Antônio Gomes Barbosa
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