Comentários de ANTÔNIO GOMES BARBOSA. Segundo livro de Nêgo Bispo (2015) - COLONIZAÇÃO, QUILOMBOS, MODOS E SIGNIFICADOS -



SAUDAÇÕES A BISPO, A MÃE ÁFRICA E AOS POVOS AFRO-PINDORÂMICOS.

Salve, Salve!

“Colonização, quilombos: modos e significações”, de autoria de Antônio Bispo e de sua ancestralidade, além de um primoroso tratado sobre as relações de poder vivenciadas nos últimos 500 anos entre os povos afro-pindorâmicos (politeístas, negros, índios, pagãos, policultores) e os europeus (brancos, cristão, judeus, monoteístas e monistas), é uma destacada contribuição para a reconstrução da historiografia do Brasil.

Partindo de identidades coletivas e modos de ler e interpretar o mundo, Bispo não se limita ao mítico ou ao fato isolado, traz ao debate temas atuais, quase arquetípicos, que se constroem e se legitimam nas inter-relações. Em síntese, analisa o desenvolvimento como ameaça e cobra ações imediatas de reparação aos povos.

No campo teórico, esta obra coloca-se em oposição à historiografia positivista, livra-nos dos modelos cartesianos e monótonos das explicações predominantes sobre a subjugação europeia aos povos do além-mar e desnuda o “massivamente aceitável”. Pode ser considerada a base filosófica de uma sociologia afro-pindorâmica. De forma atemporal, nos faz ver a aguda dívida do Estado brasileiro, não apenas com seu passado, mas, sobretudo, com o presente materializado nos grandes projetos contidos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Não estando preso a formalidades acadêmicas, apresenta a circularidade dos fatos sem perder a centralidade nas análises e constatações. Com sabedoria e simplicidade, presenteia-nos com contações de histórias.

Como no passado, com requintes de sofisticação, a face da colonização imputa a seus opositores a pecha de atrasados, de feios, de antinacionais, de empecilhos ao desenvolvimento, aliados do diabo, etc. Pelo tempo que conheço Bispo, estes são apenas alguns dos adjetivos a ele atribuídos.

O discurso dominante, que prega a igualdade e nega as diferenças, “todos somos iguais perante a lei”, constrói cortinas de fumaça e confunde antigos e atuais aliados. Muitos caem no canto da sereia, uns até rápido demais. Se antes facilmente distinguia-se quem eram os colonizadores e quem eram os contra-colonizadores (senhores, fazendeiros, usineiros, escravos, índios, quilombolas), hoje somos colocados à prova a todo o momento.

Nos muitos ensinamentos que a vida me possibilitou no convívio com Bispo, a temática colonização me faz lembrar diálogos sobre os sujeitos sociais e sua saída da estrutura sindical rural. Seu giro definitivo para a causa quilombola. Em leituras de paisagem, para além do capital e do trabalho, divisão por mim adotada, destacava tristemente o fato de muitos dos companheiros dirigentes estarem a serviço do outro lado, favorecendo os patrões. Os famosos pelegos, mais comuns do que se possa imaginar. No seu estilo pedagógico, analogamente, comparava-os a figura do “Capitão do Mato”, ser esdrúxulo, que embora seja destacadamente de um lado, está a serviço do outro, representando perigo por ser conhecedor dos lugares e das estratégias construídas pela e para a resistência. Mas sempre procurando compreender o porquê, a causa, e não simplesmente a mera constatação do fato, por sua vez, reconhecia nestes muito mais o papel de vítimas que algozes da história.

Hoje, usando sua exemplificação, pode-se afirmar que o número de capitães do mato aumentou consideravelmente, e para além do movimento sindical. Guardada as devidas proporções, caso emblemático e passivo de análise é o do ex-presidente Lula, operário, oriundo do sertão pernambucano, que com sua família teve que fugir para São Paulo por falta de água, terra e sementes, por falta de condições dignas de vida no meio rural. Quando pôde, cumpriu papel primordial na presidência, apoiou inúmeras iniciativas de convivência com o Semiárido e olhou de forma especial para a região. Na era Lula o Semiárido cresceu acima da média nacional. Porém, foi o mesmo Lula que ajudou a ampliar os perímetros irrigados, e, além de favorecer a transposição do rio São Francisco, publicamente disse que “só é contra a transposição quem nunca passou sede, quem bebe água mineral”, um contrassenso.

Inocente, culpado ou vítima? Como caracterizar estes casos? Ora, os principais beneficiados com a transposição do São Francisco são justo os que condenaram e condenam a morte milhares de crianças, mulheres e homens. Os mesmos que os expulsaram na infância.

ALGUMAS OUTRAS CONSIDERAÇÕES.

“Assim como em Canudos, Caldeirões e Pau de Colher, os colonizadores não se contentaram com o aniquilamento do povo e o desmantelamento da organização...”

Para mim, a centralidade deste livro de Bispo está na visibilidade que é dada às muitas estratégias de resistência. Suas aproximações e singularidades. O destaque de que a expropriação dos territórios não se dá apenas no campo material: das terras, das posses e das riquezas produzidas, mas, sobre tudo, no mundo simbólico, no imaterial: na cultura, nas danças, na língua, nos símbolos, na diversidade e nas divindades. Sua capacidade de exemplificar, como em Belo Monte, onde a posição do governo brasileiro é tática: O que é a história ou as riquezas dos povos do Xingu frente à produção de energia que conduzirá riquezas e benefícios a todos e à nação? Em nome de um desenvolvimento que pretende tornar o país cada vez mais autossuficiente em sabe-se lá o que.

O ataque e a negação dos conhecimentos tradicionalmente construídos são a face mais cruel dos colonizadores em oposição aos contra colonizadores.

Num outro viés, Bispo, que não trabalha com o conceito marxista de luta de classes, em muitos momentos pode induzir-nos a pensar a história da humanidade, no sentido macro, como marcada pela luta entre matrizes monoteístas e politeístas. Claro que esta seria uma simplificação das questões até aqui levantadas, merecendo aprofundamento, mas alguns elementos que se repetem no passado e no presente, possivelmente numa relação causa/efeito como sendo resultado dos modos e significações, construídos e ressignificados no transcorrer da história.

Na continuidade de suas reflexões, Bispo questiona a historiografia oficial quanto à classificação dos movimentos que se constituíram no sertão nordestino enquanto meramente messiânicos: Canudos, Caldeirão e Pau de Colher. Em momentos Bispo denomina-os como quilombos, em outros, destaca pormenorizadamente suas características que justificam tal classificação: a estrutura organizativa, as formas de apropriação e a divisão do resultado do trabalho coletivo.

Dessa forma, rompe com os que querem negar estes movimentos atribuindo sua existência apenas ao poder de seus destacados líderes: Antônio Conselheiro, Beato José Lourenço ou Sr. Quinziero. Se isto é de verdade, como questiona Bispo, porque então destruir tudo e todos ao redor? Como explicar suas capacidades de produzir tanto em tão pouco tempo e espaço? Porque então apagar tudo e destruir a memória destes fatos? Qual seria então a capacidade de reprodução destas experiências em outros espaços e tempos?

Fica a dívida e a certeza de poder fazer tudo diferente.

Salve, salve Dandara, Ganga Zumba e Zumbi

Salve, salve Antônio Conselheiro, Beato José Lourenço e Sr. Quinziera

Salve, salve Rosalina, Edileusa, Bispo, Joana Maria e Sabino

Salve, salve Palmares, Queimada Nova e Saco Curtume

Salve, salve povo negro

Salve, salve povo afro-pindorâmico

Antônio Gomes Barbosa

Sociólogo, coordenador do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com Semiárido Brasileiro: Uma Terra e Duas Águas (P1+2) da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA). No ano de 1997, foi assessor de Antônio Bispo na secretaria de Política Agrária e Meio Ambiente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Piauí (FETAG/PI)

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