A construção social do Nordeste (2013)
Centro Sabiá - Barbosa, combate à seca ou convivência com o Semiárido?
Antônio Barbosa - Convivência com o Semiárido com certeza. Primeiro porque seca não se combate, essa é uma discussão já antiga e conviver com a região é a grande saída. A seca é milenar, desde que existe a história do Nordeste, pelo menos quando vai mudando o planeta, você tem seca. E seca você não tem só no Brasil, você tem em vários outros lugares do mundo, inclusive nos Estados Unidos (que este ano vive uma das maiores secas dos últimos 40 anos), na Austrália, na Ásia, na África e também no Brasil. Seca é um fenômeno natural, então, se é da natureza é comum, é aceitável, convive-se com ela, previne-se. Seca deve ser associada, sobretudo, à ideia de convivência com o Semiárido, porque conviver é estocar. E estocar principalmente água e alimentos para os períodos de estiagem.
Centro Sabiá - A gente tem vivido um momento em que se é colocado que é a maior seca dos últimos 30 ou 40 anos e, por isso, temos visto um movimento dos governos federais e estaduais de ações emergentes para esse período. Essas ações emergenciais e as ações que poderiam minimizar esse efeito não são ações que têm sido tardias? Porque se a seca é um fenômeno natural, temos que conviver com ela. O que você observa sobre isso?
Antônio Barbosa - Queria dividir essa discussão em duas partes. Primeiro, dizer que as grandes secas têm ciclos em torno de 30 anos. Existem outras, que vou chamar de médias secas, mas que não são tão comuns; e têm secas, mais frequentes. No geral, temos na média, secas que acontecem a cada seis anos. Estudos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) dão conta, a partir de monitoramentos e/ou de relatos de historiadores e pesquisadores que estudam o Nordeste, sobretudo às secas, de quando os portugueses chegaram ao Brasil, no ano de 1500, até os dias atuais, da existência de 72 secas, um número considerável. Dessas, 40 foram anuais, ou seja, aconteceram em um ano, e pelo menos 32 foram plurianuais, ou seja, aconteceram para além de um ano. Essa que nós estamos vivendo em 2012 é plurianual. Começou de forma mais forte no Ceará ainda no ano de 2010. Ela se expande agora para muitos estados, mas é uma seca que não começa em 2012 e tende ir até o final do próximo ano. Então essa é uma das maiores secas dos últimos 30, 40 ou 50 anos, ou em alguns casos, dos últimos 60 anos. Essa é uma situação preocupante. No caminho das secas, igual a essa, a gente teve uma em 1982; igualmente tivemos em 1932; outra grande seca em 1915. Vale destacar que esta seca está diretamente associada à criação do Nordeste enquanto espaço.
O Nordeste, tal como conhecemos hoje, é bem recente. O Imaginário de Nordeste, enquanto lugar seco, de péssimas e frágeis condições, de terra rachada, de vaca morta, de criança doente; essa imagem é midiática, foi construída pela mídia e tem uma data para isso. No final do império, tivemos uma grande seca que aconteceu entre 1877 e 1878, e um jornal do Rio de Janeiro, chamado O Besouro, publicou imagens sobre a seca no Ceará. Essas imagens são, inclusive, um marco no fotojornalismo brasileiro e nelas aparecem crianças distorcidas e pessoas totalmente sub-humanas. Então, a partir dessa seca do final do século XIX, construiu-se a ideia de Nordeste enquanto espaço administrativo e simbólico. Até então, nós ainda éramos Norte, não existia Nordeste, que passa a existir apenas no começo do século XX, para identificar uma região que é seca. Então, o que devemos observar é que a região Nordeste surgiu a partir da seca. Esse espaço (Nordeste) surgiu para determinar a área de atuação da Inspetoria (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas - IFOCS) que hoje é o DNOCS. Nós tivemos durante todo esse período, ou seja, da seca de 18771878 até os dias atuais, uma situação de criação do Nordeste em função das situações de seca.
Anterior a essa seca, em 1845, tivemos outra logo no início do governo de Dom Pedro II, consideramos que nesta seca se inaugurou a Indústria da Seca. As condições para a Indústria da Seca surgem no Brasil a partir da criação, pelo governo de Dom Pedro I, da ideia de uma ajuda para os períodos de calamidades, prevista na primeira Constituição. Porém, é o governo de Dom Pedro II que executa essa lógica de ajuda, de dinheiro pros fazendeiros. A ideia é construir açudes. A ação de Dom Pedro I foi em razão de outra grande seca que aconteceu logo após a chegada da família real ao Brasil. A família real chega em 1808, e em 1816 nós tivemos uma grande seca, dessas que são em ciclo de 30 anos. Essa seca (de 1816) dialoga, inclusive, com a história de Pernambuco, porque se acredita que ela aconteceu nesse período, no Nordeste, e foi um dos elementos que contribuiu, inclusive, pra a Revolução Pernambucana. Ou seja, o povo passava tanta fome que aderiu às ideias da Revolução. Então os registros são os mais variáveis possíveis. A primeira seca que se tem registro é de 1559, então, se os portugueses chegaram aqui em 1500 e 59 anos depois, na região da Bahia, já existe registro de um padre sobre a seca, essa é uma questão que se repete.
Isso tudo é para dizer que a seca se repete, ela tem prazos, se a gente for levar em conta o registro que aconteceu em 1559 até o momento, são 72 secas. Então temos uma média de seis anos de duração de cada seca e o Brasil se preveniu pouco para lidar com essa realidade. Preveniu-se pouco porque tinha uma opção clara de beneficiar os fazendeiros, os políticos locais, os coronéis, beneficiar a lógica da Indústria da Seca; essa é uma situação. Dizer que essa seca, que estamos passando agora em 2012, é igual às secas passadas, é verdade. Dizer que o Estado brasileiro está nas mesmas condições do passado não é verdade, porque o próprio Estado brasileiro foi pressionado pela sociedade. Por isso a seca de 1982 foi um marco no sentido da participação da sociedade civil nessa caminhada e o início do diálogo da Convivência com o Semiárido, pois as ações partem dessa seca de 1982, que foi a última grande seca. Porque é a partir dela, inclusive, que os bancos de sementes que a gente conhece - então sementes da paixão, sementes da resistência, casas 19 de sementes - são oriundos da sociedade civil, coordenados pela CNBB, sobretudo no Nordeste, desenvolvendo atividades de estoque de semente, ou seja, a ideia do estoque surge de forma forte e permanece até hoje. A partir do período da seca de 1993, que é uma seca intermediária, uma seca média, mas com grandes efeitos, houve a ocupação da Sudene, quando o movimento sindical teve um peso e participação significativos. Durante essa ocupação, começaram a construir uma carta dizendo que não queriam mais isso, “nós queremos estocar água pras pessoas”, acho que, de lá pra cá, houve certa caminhada.
Se fosse pra dizer - por que às vezes é fácil - não à seca e sim à convivência com o Semiárido, porque a seca está associada à lógica da Indústria da Seca, de grandes dinheiros, que significa também dizer grandes obras, caras e distantes. Vale a pena frisar que a Convivência com o Semiárido está associada a pequenas obras, baratas e perto das pessoas. Porque as saídas são próximas, são locais. A sociedade civil ajudou o próprio Estado brasileiro a refletir sobre isso e hoje, obviamente, temos um conjunto de outras ações que são importantes. Está longe de resolver a situação; quando se tem uma grande seca você vê normalmente a perda de todos os animais, você olha para o estado de Pernambuco, por exemplo, e para as grandes feiras que a gente tem e que comercializavam cerca de 600 animais por semana, agora estão comercializando 6 mil animais. As lavouras são perdidas, os agricultores perdem suas sementes, você começa a ter problemas pra alimentar a sua própria família, daí você cria uma lógica, um imaginário do Nordeste que é a história do retirante, ou seja, há pessoas que migram de um lugar para outro; então quando você não tem o que comer, quando não tem o que beber, as pessoas começam a morrer, as pessoas começam a migrar.
Existe uma caminhada significativa e as organizações da ASA têm uma trajetória imprescindível sobre isso, pois pressionaram o Estado brasileiro a fazer algo diferente. Então, quando hoje você tem no governo da Presidenta Dilma um programa chamado Água Para Todos, que privilegia a construção de cisternas, embora com um conjunto de erros como as cisternas de plástico, é característico, e isso é algo importante. Mas em momentos como esse, de seca, há a volta de um discurso errado, para além das nossas ações que ajudam as famílias a construírem alternativas, pois também voltam outros discursos muito forte como a Transposição do Rio São Francisco e as grandes açudagens.
A Convivência é uma ideia, um paradigma, mas não é hegemônico. A ideia do combate à seca ainda é hegemônico, mas eu acho que a gente já caminhou consideravelmente e o Estado brasileiro tem dado passos importantes, inclusive com algumas ações, como o Bolsa Família. Pode parecer estranho, mas essa ação ajuda as pessoas, nesse período, a se alimentarem, e possibilita um conjunto de outras iniciativas paliativas; elas poderiam ser melhoradas. Ou seja, o governo foi pego de surpresa, quando na verdade ele já sabia que essa seca também existiria.
Centro Sabiá - Que relações políticas são construídas nessa história do combate à seca ou dessa vivência que a gente tem feito parte agora?
Antônio Barbosa – Primeiro, dizer que é um retrocesso você ouvir de um ministro, ouvir da presidenta, de um parlamentar, de um governador, de qualquer autoridade a ideia de Combate à Seca. É uma incoerência, porque seca não se combate. Mas essa fala não é desprovida de sentido. Quando se fala em combater a seca, sabe-se do que se está falando; quem está falando isso tem consciência do que diz. Está falando em carro pipa; está falando em grandes açudes; está falando em transferir recursos para um conjunto de políticos que eternamente se beneficiaram, que antigamente eram os coronéis, hoje é o agronegócio, o hidronegócio; está falando em perdoar créditos em relação a bancos para grandes e médios produtores, inclusive, para a área de irrigação; está falando em criar o que os municípios fazem, que são os estados de emergência, ou seja, com o decreto do estado de emergência não se precisa mais fazer licitação, não é preciso pedir nenhuma permissão ao legislativo, em outras palavras, entra-se numa situação que vale tudo, e em um ano eleitoral. Essa é uma situação complicada. Falar em Combate à Seca é complicado, mas é uma fala que - diferente de anos passados, das secas passadas - dói no ouvido.
Os agricultores também já estão cansados, porque sabem que seca não se combate, então tem alguma coisa errada aí, a gente precisa avançar num conjunto de outras ações que não são de combate à seca. A sociedade civil precisa fazer o debate político, o debate teórico, o debate de dizer que seca não se combate, seca se convive, que as alternativas que a gente quer são outras. Imagine que quem está nos ouvindo tem uma cisterna calçadão, uma barragem subterrânea, um tanque de pedra, que está dizendo “poxa, como a minha vida tá diferente ou como a vida do vizinho tá diferente”. Totalmente diferente de quem mora mesmo do lado do Rio São Francisco e não tem água. Essas situações são de convivência com o Semiárido e nós precisamos cobrar do Estado brasileiro, precisamos usar a rede que construímos de controle social; então as comissões municipais, os sindicatos, as cooperativas, as Igrejas, todas essas instâncias precisam cobrar. Primeiro porque água é direito. Se o governo não se preveniu, ele precisa ter políticas emergenciais, então se você não teve políticas estruturantes, políticas emergenciais são necessárias.
Quem tem sede tem pressa, quem tem fome tem pressa, então você precisa garantir uma quantidade de carros pipas abastecendo as cisternas, abastecendo as famílias. É imperioso garantir, inclusive, distribuição de sementes, para as pessoas guardarem as suas sementes e poder usar outras para se alimentar. É necessário construir estratégias de manutenção dos animais ou, pelo menos, de garantir o reprodutor, de garantir suas matrizes. Que as famílias não se desfaçam dos seus rebanhos, mas, para isso elas vão precisar de alimentos para os seus animais. É importante também, ter uma lógica de controle da qualidade da água que vai ser distribuída. Então, tem um conjunto de ações emergenciais que são importantes, que a gente precisa cobrar e o governo precisa colocar e tem colocado de uma determinada forma. Existe muito dinheiro para isso, esse é que é o problema - como fazer para que esse dinheiro chegue às pessoas? Que esse orçamento vai sair do governo federal vai; se vai chegar às pessoas isso depende muito da nossa cobrança, de nossa capacidade de denunciar. A ASA, inclusive, vai apresentar uma proposta ao TSE e aos TREs do Nordeste, no sentido de construir uma campanha nesse período eleitoral, de dizer que a água é um direito. Se alguém está lhe cobrando voto porque está lhe dando água, denuncie! Água é direito de todo mundo, garanta seu direito, garanta a convivência. Vender o voto está associado à Indústria da Seca e a Cidadania está associada à Convivência com o Semiárido.
Esse é um caminho que a gente precisa construir. Falta muita coisa e, infelizmente, muita gente está sofrendo, muita gente vai morrer; isso é uma realidade. Ou por falta de água ou por ingestão de água contaminada, por isso é necessário fazer um controle considerável em relação à distribuição de água. Precisamos cobrar para que nas próximas secas a gente não sofra como está sofrendo agora. Possivelmente, em torno de 2040, nós vamos ter outra grande seca como essa e a gente espera que as pessoas não tenham que viver mais como estão vivendo agora.
Centro Sabiá - Você citou que outras ações estão sendo construídas, em contraponto, às ações emergenciais, que não garantem uma convivência com o Semiárido. Que ações a sociedade civil tem construído no Semiárido junto com as famílias e por que elas são de fato estruturantes, ao contrário das ações emergenciais que estão sendo colocadas pelo governo nesse momento?
Antônio Barbosa - A saída para cada família precisa ser individualizada. Então, para cada família, para cada pessoa, é necessário se garantir água e alimento. Muitas vezes o que o governo brasileiro faz é trabalhar com estatística ou com média. Se há três crianças, então são três pães. A criança que tem mais dinheiro come dois pães, a que tem mais ou menos como um pão e a que não tem dinheiro não come nenhum. Para a estatística, na média, cada criança comeu um pão, mas na verdade, só teremos duas crianças alimentadas, a terceira terá a morte como única saída. A solução precisa ser por família, tem que chegar a todas as pessoas. Eu falo isso porque essa é uma das questões que a ASA tem levantado; ou seja, cada família no Semiárido que não tem água pra beber, que não tem água pra produzir, que não tem sementes, que não tem terra para produzir, que não tem os meios, ela tem que ser atendida. A nossa ação é chegar a essas famílias. A ideia do Programa Um Milhão de Cisternas é para que todas as famílias tenham água. Quando se constrói o P1+2, que é o Programa Uma Terra e Duas Águas, é para que todas as famílias possam ter água para produzir, pra que todas as famílias possam estocar suas sementes, que tenham sua autonomia o que, obviamente, gera um conjunto de outras coisas. Ela lhe permite ficar livre do mercado, ela lhe permite plantar o que você quer, ela lhe permite construir o seu patrimônio, a identidade genética dos seus pais e passar isso para os seus filhos. A ideia da ASA é investir no sentido de se montar uma infraestrutura no meio rural do Semiárido. Nós não somos só o Semiárido Rural mais povoado do mundo, somos, no Brasil, a região mais povoada no meio rural. O Semiárido tem muito mais gente do que tem o Cerrado, do que tem a região Amazônica, do que tem a Mata Atlântica, do que tem a região dos Pampas. Nós somos a região rural mais habitada. Então, é preciso olhar pra esse povo com ações nessa perspectiva, ações que estão associadas a um benefício, mas estão principalmente associadas a um direito.
Nós temos problemas seríssimos com a questão da terra, a estrutura fundiária no Semiárido, sobretudo. Pautar essa discussão, fazer isso, é resolver essa situação. O Brasil e o Semiárido serão felizes quando cada família tiver sua água para beber, sua água para produzir, tiver sua semente pra guardar, tiver seus animais para criar, tiver uma educação voltada para essa região, que leve em consideração as suas questões do dia a dia, tendo em vista o que é específico de cada região. São essas ações que a gente acredita que sejam estruturantes, podem parecer pequenas, mas são as pequenas coisas que juntas formam grandes coisas. Nós não somos contrários a outras ações, acho que é importante dizer isso. Somos a favor de ampliar a infraestrutura hídrica, precisamos ampliar a oferta hídrica no Semiárido e isso significa criar estruturas hídricas que levem em consideração a própria região. Se temos uma região com grande incidência de raios solares, com uma grande capacidade de evaporação, temos que guardar água em reservatório fechado, então as cisternas e barragens subterrâneas têm um peso considerável nisso, porque terão em conta as características da própria região. É preciso avançar nessa perspectiva. Garantir água, mas garantir um conjunto de outras coisas como estrada, fazer com que as pessoas guardem suas sementes e possam comercializar, mas hoje nós temos ações que são importantes. Acho que o PAA e o PNAE são ações substantivas e é preciso cobrar do governo brasileiro, sobretudo, que suspenda a lógica das cisternas de plástico, que construa cisternas de placas, porque elas empregam as pessoas. Elas fazem com que o dinheiro circule, e o dinheiro circulando significa dizer água, alimento, educação, enfim, um conjunto de outros fatores como cidadania, vida diferente e, sobretudo, convivência com o Semiárido. Por isso acho que são essas ações que a gente precisa caminhar, pra construir um Brasil e um Semiárido melhores e felizes.
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Vozes da convivência com o semiárido. / organizadora:Wedna Galindo; entrevistas: Catarina de Angola, Daniel Lamir, Laudenice Oliveira, Nathália D’Emery; colaboração: Sara Brito. Recife : Centro Sabiá, 2013..
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