EMBRIÕES DA EXTENSÃO RURAL DE BASE AGROECOLÓGICA NO PIAUÍ: A TRAJETÓRIA DO CEPAC (2023)

Antonio Gomes Barbosa*

 RESUMO

Este artigo é inspirado em parte do trabalho monográfico intitulado “Encontros e desencontros com a Extensão Rural – estudo de caso sobre a trajetória extensionista do Centro Piauiense de Ação Cultural - CEPAC” submetido à Universidade de Brasília- UNB, em junho de 2005, compondo a Especialização em Extensão Rural para o Desenvolvimento Sustentável da UNB.

Aqui se destaca brevemente a trajetória de uma das organizações pioneiras na abordagem agroecológica no Piauí, O CEPAC, os caminhos percorridos desde sua ação sindical urbana militante, até sua chegada na zona rural do Estado enquanto ação de assessoria junto à agricultura familiar, ação extensionista, seus encontros e desencontros na construção de alguns dos embriões que inspiraram a extensão rural de base agroecológica no Piauí

 O Centro Piauiense de Ação Cultural - CEPAC surge no final da década de 1970 e início da década 1980 em uma conjuntura adversa. A ditadura militar ainda respirava. Porém, a crise social e econômica vivenciada no país questiona cada vez mais o modelo e a legitimidade do governo militar. Os movimentos sociais, partidos clandestinos, organizações populares, intelectuais, artistas, jornalistas, trabalhadores rurais, favelados, etc, aproveitam o momento de efervescência, ganham legitimidade e começam a desenhar as primeiras linhas e estratégias para a construção de uma nova sociedade.

Segundo Medeiros (1984), no Piauí, este sentimento materializou-se no fortalecimento dos movimentos de professores das redes pública e privada, favelados, moradores de conjuntos da COHAB, trabalhadores rurais, estudantes, donas de casa. Ressalte-se que maior parcela destes movimentos concentrava-se na capital, Teresina. No interior, os movimentos de trabalhadores rurais ganham destaque no cenário estadual a partir da vitória de oposições sindicais, conflitos pela posse de terras, movimento de mulheres pela extração de babaçu, surgimento de bancos de sementes e das Associações Comunitárias de Produção e Consumo (ACPC). Estas iniciativas, partindo de organizações espontâneas e/ou institucionais, demandavam profissionais qualificados em nível local.

Estes dois componentes, conjuntura favorável e necessidade por profissionais qualificados, fizeram nascer, em outubro de 1980, no Piauí, mais precisamente em Teresina, a ideia de um centro de apoio aos movimentos populares. À época, apenas a Comissão Pastoral da Terra (CPT) assumia a tarefa de assessoria política, contava-se também com algumas iniciativas da diocese de Picos, que estava iniciando, e das paróquias da cidade de Esperantina e a do Parque Piauí, bairro de Teresina.

A primeira ação da equipe do CEPAC foi elaborar um projeto e encaminhá-lo ao Movimento dos Leigos da América Latina - MLAL. A proposta foi considerada “audaciosa” pela agência e não conseguiu aprovação. Segundo Bonfim (1985), o sonho era prestar assessoria aos movimentos sociais de bairros, sindicatos e grupos de oposição sindical, oferecendo serviços de formação, assessoria jurídica e mecanografia. Embora sem recurso institucional, foram realizadas algumas atividades de formação. A primeira foi um curso sobre “Sindicalismo”, em junho de 1981, que contou com a participação de 15 pessoas, sendo ministrado por dois assessores, sendo um do Centro de Ação Comunitária - CEDAC (São Paulo), e outro da CAPPS (Rio de Janeiro).

Na oportunidade, esses assessores, também, ajudaram a rediscutir o projeto inicial, sugerindo algumas alterações. Além disso, o CEDAC encaminhou o projeto para Ação Quaresmal Suíça - FASTENOPFER, e em [fevereiro-abril] de 1982 a mesma liberou um recurso a título de urgência de 7.500,00 francos suíços, equivalentes, à época, a 3.827,00 dólares. Com este recurso foi possível comprar equipamentos e realizar várias atividades: cursos sobre sindicalismo urbano, autonomia popular e solo urbano, sindicalismo rural, sindicalismo pra mulheres, teologia da libertação; seminários sobre educação popular, seminário regional sobre solo urbano, seminário sobre saúde popular, encontros sobre fé e política e encontros com intuito de organizar a Central Única dos Trabalhadores – CUT, além das atividades de assessoria sindical urbana e rural.

Em 20 de maio de 1982 o CEPAC nasce oficialmente. Por ainda se tratar de um período de repressão, o primeiro desafio foi encontrar um nome que evitasse patrulhamentos ou restrições burocráticas e políticas, e por conveniência, adotou-se CENTRO PIAUIENSE DE AÇÃO CULTURAL. Protegido pelo codinome cultural, o CEPAC organizou-se para prestar um serviço à época revolucionário: contribuir para a formação de um movimento social crítico, contestador e que lutasse por conquistas de direitos no Piauí, reforçando a luta pelo fim do regime autoritário brasileiro.

Para atingir seus objetivos, o CEPAC dividiu suas atividades em equipes específicas, a saber: Sindicalismo Rural, Sindicalismo Urbano, Periferia Urbana, Comunicação e Documentação, propondo-se a engendrar, em linhas gerais, as ações de:  estudos e pesquisas;  capacitação de pessoal; assessoria técnica na elaboração e execução de projetos comunitários; edição de textos e outros materiais; assessoria jurídica; intercâmbio com entidades afins (Art. nº 20 do Estatuto do CEPAC).

Mesmo sendo prioridade o meio rural, a necessidade por transformações mais profundas no Estado, exigia do CEPAC ações que pudessem fortalecer resistências sociais em outros setores. Eram crescentes as demandas em Teresina, porém, o grau de organização da sociedade civil era baixo. O CEPAC tenta atuar em todas as áreas do movimento popular rural e urbano: movimento de mulheres, negros, sindicalistas, associações de bairros e até uma tentativa de alfabetização de adultos.

Na contramão, entre o desejo e a necessidade, o CEPAC convivia com um fator limitante, um pequeno número de profissionais para tanta demanda. Quem atuava no CEPAC era voluntário e trabalhava em outros locais, maioria em instituições do Estado, podendo dedicar apenas os finais de semana e horas vagas, inclusive as noites. Este fator foi fazendo os setores urbanos ganharem maior importância na atuação do Centro.

O primeiro momento de reflexão da equipe técnica sobre sua atuação, teve como ponto de partida o texto “Primeira meditação cepaqueana – CEPAC 83: Deslancha ou diz porque não deslancha”, elaborado pelo professor Antônio José Castelo Branco Medeiros, um dos idealizadores do Centro. A relevância deste documento que embasou a primeira avaliação da equipe do CEPAC é a caracterização dos grupos e movimentos populares existentes no Estado. Os principais pontos abordados podem ser divididos em três categorias: “grupos residenciais”: caracterizados como movimentos difusos e espontâneos, existente nas favelas, periferias urbanas, nos conjuntos habitacionais e nas cidades de médio porte; “grupos especiais”: estudantes universitários e secundaristas, os artistas, os movimentos de mulheres, de homossexuais, os ecologistas e outros; e os “movimentos populares de categorias profissionais”: considerados fundamentais para as mudanças sociais mais profundas, porém apresentando como limite o conformismo e existência de direções “pelegas” nos sindicatos, foram consideradas três condições básicas: i) nível de organização da categoria; ii) participação em lutas; e iii) a participação de lideranças que emergiam, podendo assumir posições estratégicas.

Nesta última categoria foram incluídos os trabalhadores rurais e caracterizados como movimento popular, rede com nível razoável de organização e ocupantes de posição especial:

Os trabalhadores rurais ocupam uma posição especial. É o MP de maior amplitude quantitativa. Possui uma grande rede organizativa. Conseguem um nível razoável de mobilização, variável conforme os sindicatos. Como a categoria é numerosa, mesmo uma mobilização relativa, em termos absolutos (MEDEIROS, A. J, 1984)

Mesmo considerando a forte influência marxista que norteou o surgimento do CEPAC, o documento não envereda para os debates existentes sobre o futuro e as características do campesinato nas sociedades capitalistas ou semi-capitalistas. Trabalhadores urbanos e trabalhadores rurais são separados apenas por espaços de atuação, destacando apenas a quantidade numérica da segunda.

O documento discorre sobre as ações dos sindicatos, identificando-as como ações meramente assistencialistas, os serviços oferecidos de assessoria jurídica aparecem como positivos, apesar de caracterizados como de pouca ação coletiva, tratando na maioria das vezes apenas de questões pessoais e isoladas. Por outro lado, nas questões de conflitos pela posse da terra, os serviços jurídicos ganharam destaque, e a CPT teve papel relevante no Estado.

Numa outra frente, deu-se início a um processo de descentralização das atividades através do incentivo a construção de novos centros de formação. Como primeiro resultado, no ano de 1984, a partir do trabalho da paróquia de Esperantina foi fundado o Centro de Educação Popular Esperantinense - CEPES. O mesmo passou a assessorar os movimentos da cidade e do campo dos municípios do entorno a Esperantina. O surgimento do CEPES possibilitou a divisão do trabalho na região, permitindo ao CEPAC tempo para produzir várias apostilas que foram sendo usadas nos cursos de formação sindical.

Ampliando as ações em parceria e também fazendo parte da estratégia de aproximação com a FETAG, o CEPAC apóia o 4º Congresso de Trabalhadores Rurais no Estado do Piauí. No intuito de consolidar um bloco que atuasse para desenvolver algum tipo de trabalho metodológico para apoio aos movimentos populares, surgiu a chamada “Articulação com Entidades” (CEPAC, CPT, CEPES e Movimento de Educação de Base - MEB, etc), que começaram a pensar atividades na linha da formação teórica e política. Estas atividades possibilitaram a reflexão sobre qual deveria ser a função de um centro de assessoria popular.

Estas reflexões ajudaram o CEPAC, em 1985, a eleger quatro princípios norteadores para sua ação, i) assumir como papel principal a assessoria indireta, combinado com o acompanhamento, que o CEPAC denominava de assessoria direta; ii) favorecer a constituição de fóruns próprios dos movimentos populares, garantindo-lhes autonomia; iii) assumir o trabalho em parceria com outras entidades, ou seja, assumir a dupla articulação com movimentos que tinham a mesma opção metodológica; e iv) incentivar a regionalização do trabalho de assessoria popular para evitar a concentração das ações, multiplicando os trabalhos e garantir proximidade com as bases. Na tentativa de sedimentar estes princípios, o CEPAC optou pela profissionalização de alguns militantes.

No meio rural vários conflitos resultaram na conquista da terra, a exemplo do que acontecera nas comunidades Barreiro do Otávio e povoado Cabeceiras, município de Barras. As mulheres quebradeiras de coco babaçu mobilizavam-se pelo direito a extração e comercialização dos produtos dos babaçuais.

A imprensa começava a notificar os fatos políticos envolvendo as lutas sindicais e movimentos na periferia urbana identificando os principais conflitos e suas lideranças. Neste período, o CEPAC em conjunto com a CPT e o Centro de Estudos Alternativos – CEA, lançam o jornal popular “Alternativa”, que passa vincular matérias com as informações das várias categorias profissionais e movimentos populares. Havia um embrião da ação em rede em curso e as ações passavam a ganhar consistência social.

Ao final de 1986, fora possível fazer o seguinte balanço: conquista de 12 Sindicatos de Trabalhadores Rurais; vitória das oposições sindicais no Sindicato dos Comerciários, Sindicato dos Jornalistas, Sindicato dos Motoristas, Sindicato dos Gráficos e Sindicato dos Vigilantes; criação do Sindicato das Assistentes Sociais e do Sindicato das Enfermeiras de nível médio; greve de motoristas, greve dos comerciários, greve dos gráficos; greve de jornalistas, greve de vigilantes, greve de enfermeiras; criação da CUT; regulamentação de jornadas e condições de trabalho e estabelecimento dos primeiros pisos salariais no Estado.

No início da década de 1980, as pessoas que trabalhavam no CEPAC e nas ONGs eram quase todas educadoras populares (historiadores, sociólogos, assistentes sociais, padres, freiras, etc), preparadas para o trabalho político-organizativo. Esta condição refletia a concepção que se tinham de assessoria política, em que as questões organizativas eram prioritárias.

 Com o passar dos anos, o trabalho na área rural do CEPAC encontrou-se com os efeitos da forte estiagem que abateu o nordeste brasileiro (1979-83). Não contando com profissionais da área produtiva (agronomia, técnicos agrícolas, veterinária, os afins), que pudessem prestar uma assessoria técnico-produtiva aos pequenos agricultores, o CEPAC não conseguia responder as demandas desta natureza, oriundas de projetos comunitários dos pequenos agricultores e de suas necessidades diárias.

Entre as várias estratégias de defesas construídas pelas comunidades no meio rural, no Piauí estava a constituição das Associações Comunitárias de Produção e Consumo – ACPC e os bancos comunitários de sementes. Para o CEPAC é o momento de perceber que os trabalhadores rurais precisavam ser identificados também como agricultores. Por sua vez, estes passam a cobrar cada vez mais do Centro um acompanhamento que pudesse garantir os aspectos técnico produtivos.

 Esta conjuntura levou o CEPAC a contratar agrônomos e técnicos agrícolas, técnicos da área de produção rural, que em contato com os técnicos da área social, possibilitaram novas percepções e formulações sobre o meio rural e as pessoas que ali vivem. Neste momento pode-se falar numa releitura das questões técnicas e político organizacional do universo histórico-cultural das comunidades para o CEPAC. Esta situação é muito mais uma imposição da conjuntura do que uma deliberação da entidade, colocando o CEPAC no caminho da extensão rural e posteriormente no caminho da agroecologia.

Isso ocorreu no meio de uma crise de estratégia, que, por um lado priorizava as ações sindicais e os sindicatos, vendo as associações de pequenos produtores com maus olhos pelo “risco” de desviar o foco da ação e tomar parte do tempo que deveria ser dedicado à luta sindical. Teoria que não se sustentou e, coincidentemente ou não, nas fases posteriores do trabalho rural, o Centro elege o trabalho com as associações como uma das suas principais estratégias.

A necessidade de conseguir sementes para o plantio fez com que as Associações de Bancos de Sementes se proliferassem nos municípios. A estiagem havia levado as famílias a perderem suas sementes, além do que os bancos de sementes eram uma estratégia que resgatava uma prática ancestral, armazenar sementes para os períodos de crise. As Associações de Banco de Sementes foram potencializadas pela política emergencial de distribuição de sementes, campanha realizada em todo nordeste, pela  Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, após o período de estiagem (1979-83). Desta campanha no Piauí participaram: FETAG, CPT, alguns STRs e o CEPAC, que ficou responsável pela distribuição de sementes em cinco (05) municípios. 

[...] partiu-se da ideia do Banco de Semente pra uma ideia mais duradoura de constituir dali uma Associação de Produção que teria como berço à garantia de nunca mais faltar sementes, porque eles desenvolveriam a semente no caso, pra associação, a associação guardaria e no ano seguinte, teria, e a partir daí, na medida do possível, ampliando o raio de ação dessa associação (NOGUEIRA, M. S, grifo nosso)

Percebe-se, então, que a reorientação do trabalho do CEPAC em campo está diretamente relacionada com o surgimento das Associações de Bancos de Sementes. O CEPAC foi sendo levado a contribuir com a constituição destas associações sem ter refletido internamente qual o papel deste tipo de organização. Esta ação, vista como espontaneísta,  foi duramente criticada internamente.

Agora no caso de União a ideia veio em pouco de lá, de querer uma associação e eles fizeram pra que a gente fizesse o projeto; fizeram o pedido pra que a gente fizesse o Estatuto e a gente foi fazendo, ai hoje está lá a Associação legalizada. Tanta gente achou problemática a idéia de fazer esta Associação de uma hora pra outra, que nós não incentivamos em outros lugares (NOGUEIRA. 1985, grifo nosso).

Forçado a apoiar a fundação da Associação de Consumo e Produção Comunitária do município de União, o Centro foi internamente criando uma resistência na constituição de novas associações. Esta resistência não conseguiu evitar que outras associações fossem constituídas em outros municípios assessorados pela entidade. Caso emblemático aconteceu no município de Campo Maior, aonde o CEPAC tentou desestimular a iniciativa das comunidades.

Lá em Campo Maior o pessoal queria fazer e nós chegamos lá e resolvemos foi desestimular, aconselhar a esperar mais pra saber o que é que é isso, (...) O pessoal de já queria fundar, inclusive eu fui, cheguei lá, já estavam esperando dizendo que era, que já era pra eu levar o Estatuto; eu digo: rapaz, é assim com essa pressa toda! (NOGUEIRA, 1985)

A partir do ano 1986, cresce a demanda ao CEPAC por apoio técnico, administrativo e institucional a projetos que trouxessem ganhos efetivos na renda e melhoria no nível de vida. Estas iniciativas estavam sempre sob o controle dos próprios grupos de trabalhadores e relacionados com o trabalho educativo.

Mesmo não tendo uma resolução clara sobre qual a melhor estratégia a adotar em campo, o apoio a projetos econômicos alternativos foi levando o CEPAC a mudar sua visão em relação à problemática rural[6].

Um grande marco foi no ano de 1993, o CEPAC realizou um seminário para definir sua linha de ação no meio rural. Este seminário foi assessorado por Silvio Gomes da AS-PTA, que fez o CEPAC aproximar-se da Rede de Projeto de Tecnologias Alternativas – Rede PTA. Como resultado, o Centro elegeu como área prioritária o município de Campo Maior- Piauí [7], abandonando definitivamente o trabalho de assessoria sindical como centro.

Depois da realização de um Diagnóstico Rápido Participativo de Agroecossistemas – DRPA, foram priorizados os trabalhos com tecnologias alternativas de produção, a partir das unidades demonstrativas - UDs, unidades de transferência tecnológicas de caprinos – UTTs. O CEPAC passa de vez para o trabalho na extensão rural com base agroecológica.

Ao longo de dez anos, o CEPAC apostou na difusão de tecnologias alternativas de produção, casando esta política com a assessoria as associações de pequenos agricultores. Um misto de assessoria direta (acompanhamento) com assessoria indireta. Para difundir estas tecnologias, na qualidade de mediadores do conhecimento, o CEPAC elegeu alguns agricultores, denominados de Agricultores Multiplicadores.

Indiscutivelmente, de longe, este foi o trabalho mais consistente do Centro na área rural. O uso das tecnologias alternativas permitia uma maior produtividade de grãos, processos de adubação de solos e novas formas de preparo das áreas. Surgiram os roçados permanentes. Estas técnicas foram sendo paulatinamente difundidas pelos agricultores multiplicadores a partir dos dias de campo e das visitas às UDs e UTTs.

A segunda metade dos anos 1990 vai trazer para o meio rural um conjunto de demandas e políticas públicas, muitas vão contribuir para o incipiente trabalho de assessoria agroecológica, entre as quais vale destacar o surgimento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF (1996), o projeto LUMIAR (1997) e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA (1998).

Ao final dos anos 1990, dados os constantes efeitos das secas e o total descaso dos seguidos governos, surge no rural nordestino uma rede de organizações com foco nas ações de convivência com o Semiárido, agroecologia aplicada à região. A Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). No Piauí a ASA se materializa no Fórum Piauiense de Convivência com o Semiárido. Com a ASA, surge também o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC). Neste período o CEPAC vinha desenvolvendo seu trabalho de assessoria agroecológica mais focado no município de Sigefredo Pacheco.

Em 2002, durante a realização do primeiro Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), na cidade do Rio de Janeiro, o CEPAC organiza uma pequena delegação composta por técnicos de suas equipes internas e alguns agricultores de comunidades em Sigefredo Pacheco assessoradas pela entidade.

Em uma nova reorganização das estratégias do CEPAC, já tendo a clareza que a agroecologia deveria ser sua principal estratégia de atuação no campo, em 2004, o CEPAC passa a integrar a comissão organizadora do Encontro Nacional da ASA (V ENCONASA), realizado em Teresina, em novembro do mesmo ano. Ainda em 2004, passa a integrar a Rede de Assessoria Técnica e Extensão Rural do Nordeste (Rede ATER/NE), que congregava treze ONGs de quatro Estados: Pernambuco (Centro Sabiá, Caatinga, Diaconia e Assocene),  Bahia (MOC, Apaeb, Ascoob e  Sasop); Paraíba (AS-PTA e Patac); Ceará (Esplar e Cetra) e Piauí (CEPAC). A Rede ATER/NE surgiu a partir do processo que se abriu com o diálogo sobre a nova política nacional de ATER, coordenada no Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA, pelo Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural – DATER. Na rede ATER/NE se tinha muito claro que a construção da agroecologia no Semiárido e no Nordeste passava necessariamente por dentro da ASA, e que era necessário construir um programa agroecológico para apoiar as famílias agricultoras e fortalecer as experiências nos territórios. Era preciso ganhar mais organizações e pessoas para a pauta agroecológica. A partir do final de 2004, o CEPAC passa a integrar a coordenação executiva da ASA, e na ASA, passa a compor à coordenação nacional da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

De 27 a 29 de abril de 2006, com mais de 130 pessoas, de todas as regiões do estado, o Piauí realiza o primeiro Encontro Estadual de Agroecologia (EPA), ação coordenada pelo Fórum Piauiense de Convivência com o Semiárido, pela Via Campesina e pela Coordenação Estadual de Comunidades Negras do Piauí. O EPA foi preparatório ao II ENA que aconteceu de 02 a 6 de junho de 2016 na cidade de Recife. O Piauí participou do II ENA com 60 delegados e delegadas, 2/3 de agricultores e agricultoras.

Nessa trajetória do CEPAC, saiu da conceituação de trabalhadores rurais, sujeitos coletivos capazes de fazer mudanças sociais a partir da ação sindical, para o conceito de agricultores familiares, sujeitos de necessidades e sentimentos. Propôs-se  discutir a extensão rural a partir da observação, do diálogo e da compreensão do que é a agricultura familiar e com foco na agroecologia. Partindo do pressuposto que é preciso aprender com a própria agricultura familiar, compreender suas dinâmicas, processos de diálogo, trocas e complementaridades, estabelecendo uma lógica sistêmica da produção familiar.

Na lógica convencional da extensão rural, o crédito e a assistência técnica eram centrais ao desenvolvimento, atrelados diretamente a um subsistema, geralmente utilizados na potencialização de monoculturas, condenando a agricultura familiar a forte endividamento. Na contra mão das políticas de crédito e da assistência técnica oficial, a nova extensão rural proposta exigia trabalho orientado pela observação das dinâmicas dos sistemas produtivos da agricultura familiar, que trocam insumos e energias entre seus subsistemas e se relacionam com outros sistemas no entorno.

Construir uma nova extensão rural significaria construir novos valores, novas formas de ver o mundo: sem transformação do individuo coletivo não há transformação coletiva. Era preciso reconhecer erros históricos e querer mudá-los. Na ação do CEPAC, durante muito tempo foram trabalhadas as tecnologias alternativas e priorizados subsistemas produtivos, quase sempre os roçados, a criação de pequenos animais e os quintais. Embora esta ação desenvolvida tenha sido importante, não podia ser chamada de ação agroecológica, no máximo, de “boa vontade” agroecológica.

 Prova disto, é que o longo tempo de trabalho nas Unidades Demosntrativas - UDs e nas Unidades de Transferência de Tecnologias - UTTs de Caprinos não conseguiram potencializar a independência dos sistemas produtivos das famílias acompanhadas. Ao contrário, estas passaram cada vez mais a necessitar da ação do Centro para conseguir insumos, a exemplo do bagaço da palha de carnaúba.

Na verdade, a ação que se propunha ser agroecológica era bem pontual, centrada em experiências difundidas pelos agricultores multiplicadores e esporadicamente nos dias de campo, talvez por isso, é que apesar de conseguir difundir técnicas agroecológicas, não avançou no processo de transição agroecológica dos sistemas produtivos.

Para traçar a “nova extensão rural” era preciso identificar rumos, conhecer os agricultores e agricultoras e suas formas de organização, sua dinâmica, sua lógica, seus valores, suas experiências, sua história e, porque não, suas pretensões. Era imprescindível  reconhecer que agricultoras e agricultores têm experiências acumuladas, embora não sistematizadas. Era preciso reconhecer a importância de tais experiências para iniciar qualquer diálogo. Este reconhecimento e valorização não poderiam ser artificiais, o/a extensionista precisaria estar convencido desta premissa.

Aquele era um bom exercício para construção coletiva de conhecimentos agroecológicos entre extensionistas e agricultoras e agricultores familiares. Não era um passo fácil de se transpor, requeria dedicação, qualificação das equipes técnicas, estudos, pesquisas, reflexões e elaborações sobre a produção de saberes. O resultado daqueles diálogos deveriam ser materializados em elaboração teórica, sistematização, publicação de trabalhos e pesquisas participantes.

O conhecimento agroecológico não poderia concentrar todos os seus esforços no estudo das práticas de produção. Estas foram importantes e ajudaram na compreensão dos sistemas produtivos, porém era preciso valorizar outras dimensões da vida em comunidade, possibilitando o resgate de conhecimentos usurpados e transformados em mercadorias. Iniciar o processo de construção do conhecimento agroecológico não poderia ser algo abstrato, deveria partir de algo concreto, nos sistemas produtivos. O processo deveria se concretizar a partir da transição agroecológica, discutida, percebida e construída nas dimensões do desenvolvimento sustentável.

Estabelecer uma nova forma de acompanhamento técnico, compreender a agricultura familiar e consolidar um diálogo entre o conhecimento técnico e os conhecimentos tradicionais dos agricultores, eram o principal desafio da “nova extensão rural” ali proposta.

A tarefa posta para a extensão rural naquela conjuntura era a de compreender a agroecologia como proposta de desenvolvimento sustentável, partindo da análise dos sistemas produtivos e suas inter-relações, trabalhando a transição agroecológica como processo, potencializado pelas experiências de convivência com os ecossistemas.

Era oferecer acompanhamento técnico e oportunizar intercâmbios entre agricultores e as outras áreas do conhecimento, possibilitando capacitações e sistematização de experiências no fortalecimento de uma rede que tenha como centro os agricultores. Aquele momento era a oportunidade de participar da construção e consolidação de um projeto de desenvolvimento sustentável que prioriza o saber, a produção, e antes de tudo, prioriza as pessoas.

O esboço do projeto estratégico do programa de Desenvolvimento Rural Sustentável no CEPAC foi fundamentado nos aprendizados das várias etapas vivenciadas, sendo reflexo de processos e transformações, debates pautados em análise de conjuntura, opções políticas, escolha de métodos e técnicas, estudos de viabilidade, necessidades locais, regionais, nacionais e até da redefinição de linhas de ação de entidades da cooperação internacional.

Em muitos momentos, o CEPAC afastou-se do debate, reflexo de crises internas, trocas constantes de equipes e pouca clareza sobre qual a estratégia que a entidade deveria adotar no meio rural. Sem a clareza institucional necessária, as equipes foram construindo seus dilemas e alternativas e soluções, o que possibilitou erros e acertos, sobretudo, interrogações, que se estenderam até o encerramento de suas atividades.

Muitas vezes definir a estratégia não significa sua implantação na prática. Fatores como falta de recursos, demandas e dinâmicas do dia a dia em campo, processos de internalização da proposta pelas equipes, riscos da estratégia virar pacotes de caráter alternativo, dentre outros, refletem fragilidades, equívocos, resultados inesperados.

A agroecologia na agricultura familiar apresenta-se com o caminho para a construção desta nova extensão rural. Partir das indagações deve ajudar a extensão rural a construir respostas e formular muitos outros questionamentos relativos à sua prática cotidiana. Esse é o dilema de várias outras organizações de ATER ainda nos dias atuais.

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 *Antonio Gomes Barbosa, sociólogo, especialista em extensão para o desenvolvimento sustentável, mestre em agroecologia e doutorando em agroecologia pela Universidade de Córdoba, Espanha. Pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), é coordenador do projeto DAKI – Semiparido Vivo, ação focada na sistematização de experiências e formação em agricultura resiliente ao clima que envolve as regiões semiáridas do Corredor Seco da América Central, do Chaco na América do Sul e do Semiárido Brasileiro; Pela ASA coordenou o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) e o Programa Sementes do Semiárido. Foi assessor de política agrária e meio ambiente da Federação dos trabalhadores na Agricultura do Piaui (FETAG-PI) no ano de 1997 e integrou a equipe do CEPAC nos anos de 2001 a 2007. barbosa.pi@gmail.com

[1] CEPAC, 1995 – Relatório de Atividades.

 [2] Segundo Abramovay (1998), apesar de Marx não ter elaborado uma construção mais acabada em torno da questão agrária, apresenta que, no corpo das categorias que constituem as leis do capitalismo, o campesinato não possui lugar definido. Isso por que, se ao camponês fosse atribuído lucro, seria uma capitalista, e se recebesse salário, seria um operário. Vivendo da renda da terra, o camponês seria então um proprietário fundiário, que só emergiria como a “terceira” classe na medida em que esse rendimento fosse originário da mais valia social. A impossibilidade de definir claramente a natureza e a origem dos rendimentos demonstra que o conceito de camponês em “O Capital” é impossível. A atividade produtiva que dá origem à sua reprodução não tem o estatuto de trabalho social.

 [3]           CEPAC - Memória HISTÓRICA - versão Preliminar, 1989.

 [4] FONSECA, Graziani. Políticas governamentais e seus efeitos sobre a estrutura agrária no Piauí, 1993.

 [5] A partir do final da grande seca (1979-83), grupos de trabalhadores rurais começaram a organizar as Associações Comunitárias de Produção e Consumo – ACPC.

[6] CEPAC, Memória histórica (Versão Preliminar).

[7] E posteriormente, com a emancipação, o município de Sigefredo Pacheco- Piauí.

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