Antonio Gomes Barbosa1
“Ótimo que a tua mão ajude o vôo...Mas que ela jamais se atreva a tomar o lugar das asas...” (Dom Hélder Câmara)
Ao prefaciar o livro “Superação da pobreza rural no Semiárido brasileiro: a trajetória do Projeto Dom Hélder Câmara”, uma coletânea de artigos que abordam as diversas contribuições, desafios, pistas e fases do Projeto Dom Hélder Câmara (PDHC), temos também a oportunidade de revisitar a história de lutas do próprio Dom Hélder Câmara, uma figura extremamente relevante na construção de uma abordagem alternativa para a extensão rural, entendida como comunicação popular. Dom Hélder Câmara sempre teve como foco a construção coletiva de conhecimento, especialmente no contexto das lutas por justiça social, direitos humanos e superação da pobreza, temas intrinsecamente ligados às questões mais urgentes do Semiárido rural e da vida de seu povo. Portanto, buscando adicionar uma reflexão mais aproximada a caminhada deste importante ator social, que dá nome a este projeto, propomos dividir este prefácio em duas partes: a primeira, explorando a trajetória de lutas e as convicções de Dom Hélder Câmara; e a segunda, discutindo o Semiárido de hoje, nossas conquistas e desafios, sempre tendo tal fi gura como inspiração, tanto no passado quanto nos dias atuais.
Boa leitura!
Dom Hélder Pessoa Câmara, arcebispo católico romano nascido em 7 de fevereiro de 1909, no estado do Ceará, tornou-se conhecido por seu incansável trabalho em prol dos direitos humanos e na luta contra as injustiças sociais. Em 1952, foi um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e, em 1961, criou o Movimento de Educação de Base (MEB), voltado para a alfabetização e educação de adultos, especialmente nas áreas rurais do Nordeste. Por meio dessas iniciativas, ele empoderou as populações mais carentes e promoveu a cidadania. Além disso, fundou a Ação Popular (AP), um movimento cristão de esquerda que buscava combater as desigualdades sociais e propor reformas estruturais no Brasil. Dom Hélder pregava uma Igreja comprometida com os pobres e oprimidos, influenciando muitos religiosos a se engajarem nessa causa.
Em 1964, foi nomeado Arcebispo de Olinda e Recife. Durante seu episcopado, intensificou suas ações em favor dos mais necessitados, transformando a arquidiocese em um centro de resistência e defesa dos direitos humanos. Durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), ele se posicionou firmemente contra as violações dos direitos humanos, denunciando a tortura, a censura e a repressão política. Sua coragem e atuação incansável lhe renderam diversas indicações ao Prêmio Nobel da Paz.
Dom Hélder dedicou sua vida à luta contra a pobreza e a desigualdade no Nordeste, criando diversos programas e iniciativas para auxiliar os mais necessitados e promovendo a inclusão social e a dignidade humana. Sua trajetória foi um farol de esperança e justiça na história do Brasil, inspirando gerações na busca por um mundo mais justo e humano.
Em 1993, o Nordeste do Brasil enfrentava uma das secas mais severas do século XX. Nesse contexto desafiador, Dom Hélder Câmara, mesmo aposentado como arcebispo, manteve sua postura combativa e solidária. Em novembro daquele ano, mais de 400 trabalhadores rurais ocuparam a sede da SUDENE, em Recife, em uma ação coordenada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG) e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Essa ocupação foi um marco na denúncia das políticas de “combate à seca” e na promoção de um novo paradigma, o da “Convivência com o Semiárido”. O objetivo era chamar a atenção para a negligência do governo e exigir ações estruturais e permanentes adaptadas à região.
A Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) tinha como missão promover o desenvolvimento econômico e social da região, porém, muitas vezes, os recursos destinados à seca não chegavam aos mais necessitados. A frustração e a revolta da população eram evidentes. Mesmo não liderando a ocupação, Dom Hélder Câmara apoiou ativamente o movimento, utilizando sua influência e prestígio para dar visibilidade à causa e pressionar as autoridades a agirem. Seu apoio trouxe legitimidade e força ao movimento, demonstrando seu compromisso inabalável com os mais vulneráveis.
A ocupação da SUDENE desencadeou vários processos, e naquele mesmo ano, mais de 300 entidades organizam o seminário: “Ações Permanentes para o Desenvolvimento do Semiárido Brasileiro”. As ações propostas visavam fortalecer a agricultura e as comunidades locais na região do Nordeste Semiárido através de diversas estratégias: i) Organização dos pequenos produtores e sua produção em associações e cooperativas, permitindo uma intervenção articulada no mercado e promovendo a união e colaboração entre os agricultores; ii) Garantia de acesso à terra para os pequenos produtores rurais, possibilitando a segurança e estabilidade na produção agrícola; iii) Geração, sistematização e difusão de tecnologias apropriadas para cada microrregião, em colaboração com as organizações dos produtores, visando aumentar a produtividade e a sustentabilidade das atividades agrícolas; iv) Agregação de valor à pequena produção rural, por meio do beneficiamento da produção primária e do incentivo ao desenvolvimento de pequenas empresas não agrícolas, explorando as potencialidades de cada microrregião.
Da ocupação da SUDENE surgiu o Fórum Nordeste, que reuniu organizações sociais críticas às ações de “combate à seca” e defensoras de alternativas para a convivência com o Semiárido. Esse movimento inspirou a formação de fóruns estaduais e, em 1999, durante o Fórum Paralelo à III Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertifi cação (COP3), em Recife, nasceu a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). Essa rede, composta por diversas organizações da sociedade civil, baseia-se na conservação dos recursos naturais e na quebra do monopólio de acesso à terra e outros meios de produção, seguindo os princípios históricos de Dom Hélder.
Passados mais de 30 anos desde a ocupação da SUDENE, que contou com a contribuição de Dom Hélder, o que se pode afirmar é que o Semiárido de hoje não é mais aquele, onde a maioria das pessoas sequer tinham registros de nascimento; onde água era um artigo de luxo (nem estamos a falar em água de qualidade); onde a alimentação era precária a fome era muito mais comum na vida das famílias.
Além disso, também não se falava em um programa de extensão rural apropriada à realidade das famílias agricultoras e povos originários e comunidades tradicionais do Semiárido. Hoje, como resultado de muita luta, tudo mudou. São mais de um milhão e duzentas mil famílias que têm uma cisterna de placas com capacidade de 16 mil litros de água para beber e cozinhar ao lado de suas casas; são mais de 220 mil famílias que têm água pra produção; são inúmeros os quintais produtivos e os sistemas agroflorestais em plena produção; são inúmeras as feiras agroecológicas e outras formas e espaços de comercialização; são inúmeras as famílias assessoradas e tendo a possibilidade de experimentar suas inovações, num processo rico de construção coletiva de saberes e troca de conhecimentos. Trata-se, portanto, de centenas de milhares de famílias em processos de intercâmbios horizontais. São famílias, comunidades e povos retomando seus territórios.
Apesar desses avanços, o cenário ainda não é o ideal: apenas aponta que o Semiárido está no caminho certo. No entanto, são mais de 500 mil famílias que ainda não têm água pra beber, e mais de um milhão sem água pra produção. A assessoria técnica apropriada ainda é distante para a ampla maioria das famílias do Semiárido. Ainda, o acesso à terra e aos territórios são temas e lutas urgentes. A região vive forte um processo de mudanças no clima, onde áreas antes semiáridas se tornaram áridas, e as subúmidas secas, em semiáridas. O Semiárido já passa por uma emergência climática.
Logo, há ainda um longo caminho a ser percorrido. Inspirados pela história de luta de Dom Hélder Câmara, precisamos continuar construindo um Semiárido mais justo e sustentável, enfrentando os desafios e aproveitando as oportunidades que se apresentam.
Que sua memória e legado nos guiem nessa jornada!
1 Sociólogo, mestre em Agroecologia, doutorando em Recursos Naturais e Gestão Sustentável, especialista em extensão rural para desenvolvimento sustentável e coordenador, pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), do Programa Sementes do Semiárido e do Projeto DAKI- Semiárido Vivo.

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