domingo, 15 de junho de 2025

EMBRIÕES DA EXTENSÃO RURAL DE BASE AGROECOLÓGICA NO PIAUÍ: A TRAJETÓRIA DO CEPAC (2023)

Antonio Gomes Barbosa*

 RESUMO

Este artigo é inspirado em parte do trabalho monográfico intitulado “Encontros e desencontros com a Extensão Rural – estudo de caso sobre a trajetória extensionista do Centro Piauiense de Ação Cultural - CEPAC” submetido à Universidade de Brasília- UNB, em junho de 2005, compondo a Especialização em Extensão Rural para o Desenvolvimento Sustentável da UNB.

Aqui se destaca brevemente a trajetória de uma das organizações pioneiras na abordagem agroecológica no Piauí, O CEPAC, os caminhos percorridos desde sua ação sindical urbana militante, até sua chegada na zona rural do Estado enquanto ação de assessoria junto à agricultura familiar, ação extensionista, seus encontros e desencontros na construção de alguns dos embriões que inspiraram a extensão rural de base agroecológica no Piauí

 O Centro Piauiense de Ação Cultural - CEPAC surge no final da década de 1970 e início da década 1980 em uma conjuntura adversa. A ditadura militar ainda respirava. Porém, a crise social e econômica vivenciada no país questiona cada vez mais o modelo e a legitimidade do governo militar. Os movimentos sociais, partidos clandestinos, organizações populares, intelectuais, artistas, jornalistas, trabalhadores rurais, favelados, etc, aproveitam o momento de efervescência, ganham legitimidade e começam a desenhar as primeiras linhas e estratégias para a construção de uma nova sociedade.

Segundo Medeiros (1984), no Piauí, este sentimento materializou-se no fortalecimento dos movimentos de professores das redes pública e privada, favelados, moradores de conjuntos da COHAB, trabalhadores rurais, estudantes, donas de casa. Ressalte-se que maior parcela destes movimentos concentrava-se na capital, Teresina. No interior, os movimentos de trabalhadores rurais ganham destaque no cenário estadual a partir da vitória de oposições sindicais, conflitos pela posse de terras, movimento de mulheres pela extração de babaçu, surgimento de bancos de sementes e das Associações Comunitárias de Produção e Consumo (ACPC). Estas iniciativas, partindo de organizações espontâneas e/ou institucionais, demandavam profissionais qualificados em nível local.

Estes dois componentes, conjuntura favorável e necessidade por profissionais qualificados, fizeram nascer, em outubro de 1980, no Piauí, mais precisamente em Teresina, a ideia de um centro de apoio aos movimentos populares. À época, apenas a Comissão Pastoral da Terra (CPT) assumia a tarefa de assessoria política, contava-se também com algumas iniciativas da diocese de Picos, que estava iniciando, e das paróquias da cidade de Esperantina e a do Parque Piauí, bairro de Teresina.

A primeira ação da equipe do CEPAC foi elaborar um projeto e encaminhá-lo ao Movimento dos Leigos da América Latina - MLAL. A proposta foi considerada “audaciosa” pela agência e não conseguiu aprovação. Segundo Bonfim (1985), o sonho era prestar assessoria aos movimentos sociais de bairros, sindicatos e grupos de oposição sindical, oferecendo serviços de formação, assessoria jurídica e mecanografia. Embora sem recurso institucional, foram realizadas algumas atividades de formação. A primeira foi um curso sobre “Sindicalismo”, em junho de 1981, que contou com a participação de 15 pessoas, sendo ministrado por dois assessores, sendo um do Centro de Ação Comunitária - CEDAC (São Paulo), e outro da CAPPS (Rio de Janeiro).

Na oportunidade, esses assessores, também, ajudaram a rediscutir o projeto inicial, sugerindo algumas alterações. Além disso, o CEDAC encaminhou o projeto para Ação Quaresmal Suíça - FASTENOPFER, e em [fevereiro-abril] de 1982 a mesma liberou um recurso a título de urgência de 7.500,00 francos suíços, equivalentes, à época, a 3.827,00 dólares. Com este recurso foi possível comprar equipamentos e realizar várias atividades: cursos sobre sindicalismo urbano, autonomia popular e solo urbano, sindicalismo rural, sindicalismo pra mulheres, teologia da libertação; seminários sobre educação popular, seminário regional sobre solo urbano, seminário sobre saúde popular, encontros sobre fé e política e encontros com intuito de organizar a Central Única dos Trabalhadores – CUT, além das atividades de assessoria sindical urbana e rural.

Em 20 de maio de 1982 o CEPAC nasce oficialmente. Por ainda se tratar de um período de repressão, o primeiro desafio foi encontrar um nome que evitasse patrulhamentos ou restrições burocráticas e políticas, e por conveniência, adotou-se CENTRO PIAUIENSE DE AÇÃO CULTURAL. Protegido pelo codinome cultural, o CEPAC organizou-se para prestar um serviço à época revolucionário: contribuir para a formação de um movimento social crítico, contestador e que lutasse por conquistas de direitos no Piauí, reforçando a luta pelo fim do regime autoritário brasileiro.

Para atingir seus objetivos, o CEPAC dividiu suas atividades em equipes específicas, a saber: Sindicalismo Rural, Sindicalismo Urbano, Periferia Urbana, Comunicação e Documentação, propondo-se a engendrar, em linhas gerais, as ações de:  estudos e pesquisas;  capacitação de pessoal; assessoria técnica na elaboração e execução de projetos comunitários; edição de textos e outros materiais; assessoria jurídica; intercâmbio com entidades afins (Art. nº 20 do Estatuto do CEPAC).

Mesmo sendo prioridade o meio rural, a necessidade por transformações mais profundas no Estado, exigia do CEPAC ações que pudessem fortalecer resistências sociais em outros setores. Eram crescentes as demandas em Teresina, porém, o grau de organização da sociedade civil era baixo. O CEPAC tenta atuar em todas as áreas do movimento popular rural e urbano: movimento de mulheres, negros, sindicalistas, associações de bairros e até uma tentativa de alfabetização de adultos.

Na contramão, entre o desejo e a necessidade, o CEPAC convivia com um fator limitante, um pequeno número de profissionais para tanta demanda. Quem atuava no CEPAC era voluntário e trabalhava em outros locais, maioria em instituições do Estado, podendo dedicar apenas os finais de semana e horas vagas, inclusive as noites. Este fator foi fazendo os setores urbanos ganharem maior importância na atuação do Centro.

O primeiro momento de reflexão da equipe técnica sobre sua atuação, teve como ponto de partida o texto “Primeira meditação cepaqueana – CEPAC 83: Deslancha ou diz porque não deslancha”, elaborado pelo professor Antônio José Castelo Branco Medeiros, um dos idealizadores do Centro. A relevância deste documento que embasou a primeira avaliação da equipe do CEPAC é a caracterização dos grupos e movimentos populares existentes no Estado. Os principais pontos abordados podem ser divididos em três categorias: “grupos residenciais”: caracterizados como movimentos difusos e espontâneos, existente nas favelas, periferias urbanas, nos conjuntos habitacionais e nas cidades de médio porte; “grupos especiais”: estudantes universitários e secundaristas, os artistas, os movimentos de mulheres, de homossexuais, os ecologistas e outros; e os “movimentos populares de categorias profissionais”: considerados fundamentais para as mudanças sociais mais profundas, porém apresentando como limite o conformismo e existência de direções “pelegas” nos sindicatos, foram consideradas três condições básicas: i) nível de organização da categoria; ii) participação em lutas; e iii) a participação de lideranças que emergiam, podendo assumir posições estratégicas.

Nesta última categoria foram incluídos os trabalhadores rurais e caracterizados como movimento popular, rede com nível razoável de organização e ocupantes de posição especial:

Os trabalhadores rurais ocupam uma posição especial. É o MP de maior amplitude quantitativa. Possui uma grande rede organizativa. Conseguem um nível razoável de mobilização, variável conforme os sindicatos. Como a categoria é numerosa, mesmo uma mobilização relativa, em termos absolutos (MEDEIROS, A. J, 1984)

Mesmo considerando a forte influência marxista que norteou o surgimento do CEPAC, o documento não envereda para os debates existentes sobre o futuro e as características do campesinato nas sociedades capitalistas ou semi-capitalistas. Trabalhadores urbanos e trabalhadores rurais são separados apenas por espaços de atuação, destacando apenas a quantidade numérica da segunda.

O documento discorre sobre as ações dos sindicatos, identificando-as como ações meramente assistencialistas, os serviços oferecidos de assessoria jurídica aparecem como positivos, apesar de caracterizados como de pouca ação coletiva, tratando na maioria das vezes apenas de questões pessoais e isoladas. Por outro lado, nas questões de conflitos pela posse da terra, os serviços jurídicos ganharam destaque, e a CPT teve papel relevante no Estado.

Numa outra frente, deu-se início a um processo de descentralização das atividades através do incentivo a construção de novos centros de formação. Como primeiro resultado, no ano de 1984, a partir do trabalho da paróquia de Esperantina foi fundado o Centro de Educação Popular Esperantinense - CEPES. O mesmo passou a assessorar os movimentos da cidade e do campo dos municípios do entorno a Esperantina. O surgimento do CEPES possibilitou a divisão do trabalho na região, permitindo ao CEPAC tempo para produzir várias apostilas que foram sendo usadas nos cursos de formação sindical.

Ampliando as ações em parceria e também fazendo parte da estratégia de aproximação com a FETAG, o CEPAC apóia o 4º Congresso de Trabalhadores Rurais no Estado do Piauí. No intuito de consolidar um bloco que atuasse para desenvolver algum tipo de trabalho metodológico para apoio aos movimentos populares, surgiu a chamada “Articulação com Entidades” (CEPAC, CPT, CEPES e Movimento de Educação de Base - MEB, etc), que começaram a pensar atividades na linha da formação teórica e política. Estas atividades possibilitaram a reflexão sobre qual deveria ser a função de um centro de assessoria popular.

Estas reflexões ajudaram o CEPAC, em 1985, a eleger quatro princípios norteadores para sua ação, i) assumir como papel principal a assessoria indireta, combinado com o acompanhamento, que o CEPAC denominava de assessoria direta; ii) favorecer a constituição de fóruns próprios dos movimentos populares, garantindo-lhes autonomia; iii) assumir o trabalho em parceria com outras entidades, ou seja, assumir a dupla articulação com movimentos que tinham a mesma opção metodológica; e iv) incentivar a regionalização do trabalho de assessoria popular para evitar a concentração das ações, multiplicando os trabalhos e garantir proximidade com as bases. Na tentativa de sedimentar estes princípios, o CEPAC optou pela profissionalização de alguns militantes.

No meio rural vários conflitos resultaram na conquista da terra, a exemplo do que acontecera nas comunidades Barreiro do Otávio e povoado Cabeceiras, município de Barras. As mulheres quebradeiras de coco babaçu mobilizavam-se pelo direito a extração e comercialização dos produtos dos babaçuais.

A imprensa começava a notificar os fatos políticos envolvendo as lutas sindicais e movimentos na periferia urbana identificando os principais conflitos e suas lideranças. Neste período, o CEPAC em conjunto com a CPT e o Centro de Estudos Alternativos – CEA, lançam o jornal popular “Alternativa”, que passa vincular matérias com as informações das várias categorias profissionais e movimentos populares. Havia um embrião da ação em rede em curso e as ações passavam a ganhar consistência social.

Ao final de 1986, fora possível fazer o seguinte balanço: conquista de 12 Sindicatos de Trabalhadores Rurais; vitória das oposições sindicais no Sindicato dos Comerciários, Sindicato dos Jornalistas, Sindicato dos Motoristas, Sindicato dos Gráficos e Sindicato dos Vigilantes; criação do Sindicato das Assistentes Sociais e do Sindicato das Enfermeiras de nível médio; greve de motoristas, greve dos comerciários, greve dos gráficos; greve de jornalistas, greve de vigilantes, greve de enfermeiras; criação da CUT; regulamentação de jornadas e condições de trabalho e estabelecimento dos primeiros pisos salariais no Estado.

No início da década de 1980, as pessoas que trabalhavam no CEPAC e nas ONGs eram quase todas educadoras populares (historiadores, sociólogos, assistentes sociais, padres, freiras, etc), preparadas para o trabalho político-organizativo. Esta condição refletia a concepção que se tinham de assessoria política, em que as questões organizativas eram prioritárias.

 Com o passar dos anos, o trabalho na área rural do CEPAC encontrou-se com os efeitos da forte estiagem que abateu o nordeste brasileiro (1979-83). Não contando com profissionais da área produtiva (agronomia, técnicos agrícolas, veterinária, os afins), que pudessem prestar uma assessoria técnico-produtiva aos pequenos agricultores, o CEPAC não conseguia responder as demandas desta natureza, oriundas de projetos comunitários dos pequenos agricultores e de suas necessidades diárias.

Entre as várias estratégias de defesas construídas pelas comunidades no meio rural, no Piauí estava a constituição das Associações Comunitárias de Produção e Consumo – ACPC e os bancos comunitários de sementes. Para o CEPAC é o momento de perceber que os trabalhadores rurais precisavam ser identificados também como agricultores. Por sua vez, estes passam a cobrar cada vez mais do Centro um acompanhamento que pudesse garantir os aspectos técnico produtivos.

 Esta conjuntura levou o CEPAC a contratar agrônomos e técnicos agrícolas, técnicos da área de produção rural, que em contato com os técnicos da área social, possibilitaram novas percepções e formulações sobre o meio rural e as pessoas que ali vivem. Neste momento pode-se falar numa releitura das questões técnicas e político organizacional do universo histórico-cultural das comunidades para o CEPAC. Esta situação é muito mais uma imposição da conjuntura do que uma deliberação da entidade, colocando o CEPAC no caminho da extensão rural e posteriormente no caminho da agroecologia.

Isso ocorreu no meio de uma crise de estratégia, que, por um lado priorizava as ações sindicais e os sindicatos, vendo as associações de pequenos produtores com maus olhos pelo “risco” de desviar o foco da ação e tomar parte do tempo que deveria ser dedicado à luta sindical. Teoria que não se sustentou e, coincidentemente ou não, nas fases posteriores do trabalho rural, o Centro elege o trabalho com as associações como uma das suas principais estratégias.

A necessidade de conseguir sementes para o plantio fez com que as Associações de Bancos de Sementes se proliferassem nos municípios. A estiagem havia levado as famílias a perderem suas sementes, além do que os bancos de sementes eram uma estratégia que resgatava uma prática ancestral, armazenar sementes para os períodos de crise. As Associações de Banco de Sementes foram potencializadas pela política emergencial de distribuição de sementes, campanha realizada em todo nordeste, pela  Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, após o período de estiagem (1979-83). Desta campanha no Piauí participaram: FETAG, CPT, alguns STRs e o CEPAC, que ficou responsável pela distribuição de sementes em cinco (05) municípios. 

[...] partiu-se da ideia do Banco de Semente pra uma ideia mais duradoura de constituir dali uma Associação de Produção que teria como berço à garantia de nunca mais faltar sementes, porque eles desenvolveriam a semente no caso, pra associação, a associação guardaria e no ano seguinte, teria, e a partir daí, na medida do possível, ampliando o raio de ação dessa associação (NOGUEIRA, M. S, grifo nosso)

Percebe-se, então, que a reorientação do trabalho do CEPAC em campo está diretamente relacionada com o surgimento das Associações de Bancos de Sementes. O CEPAC foi sendo levado a contribuir com a constituição destas associações sem ter refletido internamente qual o papel deste tipo de organização. Esta ação, vista como espontaneísta,  foi duramente criticada internamente.

Agora no caso de União a ideia veio em pouco de lá, de querer uma associação e eles fizeram pra que a gente fizesse o projeto; fizeram o pedido pra que a gente fizesse o Estatuto e a gente foi fazendo, ai hoje está lá a Associação legalizada. Tanta gente achou problemática a idéia de fazer esta Associação de uma hora pra outra, que nós não incentivamos em outros lugares (NOGUEIRA. 1985, grifo nosso).

Forçado a apoiar a fundação da Associação de Consumo e Produção Comunitária do município de União, o Centro foi internamente criando uma resistência na constituição de novas associações. Esta resistência não conseguiu evitar que outras associações fossem constituídas em outros municípios assessorados pela entidade. Caso emblemático aconteceu no município de Campo Maior, aonde o CEPAC tentou desestimular a iniciativa das comunidades.

Lá em Campo Maior o pessoal queria fazer e nós chegamos lá e resolvemos foi desestimular, aconselhar a esperar mais pra saber o que é que é isso, (...) O pessoal de já queria fundar, inclusive eu fui, cheguei lá, já estavam esperando dizendo que era, que já era pra eu levar o Estatuto; eu digo: rapaz, é assim com essa pressa toda! (NOGUEIRA, 1985)

A partir do ano 1986, cresce a demanda ao CEPAC por apoio técnico, administrativo e institucional a projetos que trouxessem ganhos efetivos na renda e melhoria no nível de vida. Estas iniciativas estavam sempre sob o controle dos próprios grupos de trabalhadores e relacionados com o trabalho educativo.

Mesmo não tendo uma resolução clara sobre qual a melhor estratégia a adotar em campo, o apoio a projetos econômicos alternativos foi levando o CEPAC a mudar sua visão em relação à problemática rural[6].

Um grande marco foi no ano de 1993, o CEPAC realizou um seminário para definir sua linha de ação no meio rural. Este seminário foi assessorado por Silvio Gomes da AS-PTA, que fez o CEPAC aproximar-se da Rede de Projeto de Tecnologias Alternativas – Rede PTA. Como resultado, o Centro elegeu como área prioritária o município de Campo Maior- Piauí [7], abandonando definitivamente o trabalho de assessoria sindical como centro.

Depois da realização de um Diagnóstico Rápido Participativo de Agroecossistemas – DRPA, foram priorizados os trabalhos com tecnologias alternativas de produção, a partir das unidades demonstrativas - UDs, unidades de transferência tecnológicas de caprinos – UTTs. O CEPAC passa de vez para o trabalho na extensão rural com base agroecológica.

Ao longo de dez anos, o CEPAC apostou na difusão de tecnologias alternativas de produção, casando esta política com a assessoria as associações de pequenos agricultores. Um misto de assessoria direta (acompanhamento) com assessoria indireta. Para difundir estas tecnologias, na qualidade de mediadores do conhecimento, o CEPAC elegeu alguns agricultores, denominados de Agricultores Multiplicadores.

Indiscutivelmente, de longe, este foi o trabalho mais consistente do Centro na área rural. O uso das tecnologias alternativas permitia uma maior produtividade de grãos, processos de adubação de solos e novas formas de preparo das áreas. Surgiram os roçados permanentes. Estas técnicas foram sendo paulatinamente difundidas pelos agricultores multiplicadores a partir dos dias de campo e das visitas às UDs e UTTs.

A segunda metade dos anos 1990 vai trazer para o meio rural um conjunto de demandas e políticas públicas, muitas vão contribuir para o incipiente trabalho de assessoria agroecológica, entre as quais vale destacar o surgimento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF (1996), o projeto LUMIAR (1997) e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA (1998).

Ao final dos anos 1990, dados os constantes efeitos das secas e o total descaso dos seguidos governos, surge no rural nordestino uma rede de organizações com foco nas ações de convivência com o Semiárido, agroecologia aplicada à região. A Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). No Piauí a ASA se materializa no Fórum Piauiense de Convivência com o Semiárido. Com a ASA, surge também o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC). Neste período o CEPAC vinha desenvolvendo seu trabalho de assessoria agroecológica mais focado no município de Sigefredo Pacheco.

Em 2002, durante a realização do primeiro Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), na cidade do Rio de Janeiro, o CEPAC organiza uma pequena delegação composta por técnicos de suas equipes internas e alguns agricultores de comunidades em Sigefredo Pacheco assessoradas pela entidade.

Em uma nova reorganização das estratégias do CEPAC, já tendo a clareza que a agroecologia deveria ser sua principal estratégia de atuação no campo, em 2004, o CEPAC passa a integrar a comissão organizadora do Encontro Nacional da ASA (V ENCONASA), realizado em Teresina, em novembro do mesmo ano. Ainda em 2004, passa a integrar a Rede de Assessoria Técnica e Extensão Rural do Nordeste (Rede ATER/NE), que congregava treze ONGs de quatro Estados: Pernambuco (Centro Sabiá, Caatinga, Diaconia e Assocene),  Bahia (MOC, Apaeb, Ascoob e  Sasop); Paraíba (AS-PTA e Patac); Ceará (Esplar e Cetra) e Piauí (CEPAC). A Rede ATER/NE surgiu a partir do processo que se abriu com o diálogo sobre a nova política nacional de ATER, coordenada no Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA, pelo Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural – DATER. Na rede ATER/NE se tinha muito claro que a construção da agroecologia no Semiárido e no Nordeste passava necessariamente por dentro da ASA, e que era necessário construir um programa agroecológico para apoiar as famílias agricultoras e fortalecer as experiências nos territórios. Era preciso ganhar mais organizações e pessoas para a pauta agroecológica. A partir do final de 2004, o CEPAC passa a integrar a coordenação executiva da ASA, e na ASA, passa a compor à coordenação nacional da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

De 27 a 29 de abril de 2006, com mais de 130 pessoas, de todas as regiões do estado, o Piauí realiza o primeiro Encontro Estadual de Agroecologia (EPA), ação coordenada pelo Fórum Piauiense de Convivência com o Semiárido, pela Via Campesina e pela Coordenação Estadual de Comunidades Negras do Piauí. O EPA foi preparatório ao II ENA que aconteceu de 02 a 6 de junho de 2016 na cidade de Recife. O Piauí participou do II ENA com 60 delegados e delegadas, 2/3 de agricultores e agricultoras.

Nessa trajetória do CEPAC, saiu da conceituação de trabalhadores rurais, sujeitos coletivos capazes de fazer mudanças sociais a partir da ação sindical, para o conceito de agricultores familiares, sujeitos de necessidades e sentimentos. Propôs-se  discutir a extensão rural a partir da observação, do diálogo e da compreensão do que é a agricultura familiar e com foco na agroecologia. Partindo do pressuposto que é preciso aprender com a própria agricultura familiar, compreender suas dinâmicas, processos de diálogo, trocas e complementaridades, estabelecendo uma lógica sistêmica da produção familiar.

Na lógica convencional da extensão rural, o crédito e a assistência técnica eram centrais ao desenvolvimento, atrelados diretamente a um subsistema, geralmente utilizados na potencialização de monoculturas, condenando a agricultura familiar a forte endividamento. Na contra mão das políticas de crédito e da assistência técnica oficial, a nova extensão rural proposta exigia trabalho orientado pela observação das dinâmicas dos sistemas produtivos da agricultura familiar, que trocam insumos e energias entre seus subsistemas e se relacionam com outros sistemas no entorno.

Construir uma nova extensão rural significaria construir novos valores, novas formas de ver o mundo: sem transformação do individuo coletivo não há transformação coletiva. Era preciso reconhecer erros históricos e querer mudá-los. Na ação do CEPAC, durante muito tempo foram trabalhadas as tecnologias alternativas e priorizados subsistemas produtivos, quase sempre os roçados, a criação de pequenos animais e os quintais. Embora esta ação desenvolvida tenha sido importante, não podia ser chamada de ação agroecológica, no máximo, de “boa vontade” agroecológica.

 Prova disto, é que o longo tempo de trabalho nas Unidades Demosntrativas - UDs e nas Unidades de Transferência de Tecnologias - UTTs de Caprinos não conseguiram potencializar a independência dos sistemas produtivos das famílias acompanhadas. Ao contrário, estas passaram cada vez mais a necessitar da ação do Centro para conseguir insumos, a exemplo do bagaço da palha de carnaúba.

Na verdade, a ação que se propunha ser agroecológica era bem pontual, centrada em experiências difundidas pelos agricultores multiplicadores e esporadicamente nos dias de campo, talvez por isso, é que apesar de conseguir difundir técnicas agroecológicas, não avançou no processo de transição agroecológica dos sistemas produtivos.

Para traçar a “nova extensão rural” era preciso identificar rumos, conhecer os agricultores e agricultoras e suas formas de organização, sua dinâmica, sua lógica, seus valores, suas experiências, sua história e, porque não, suas pretensões. Era imprescindível  reconhecer que agricultoras e agricultores têm experiências acumuladas, embora não sistematizadas. Era preciso reconhecer a importância de tais experiências para iniciar qualquer diálogo. Este reconhecimento e valorização não poderiam ser artificiais, o/a extensionista precisaria estar convencido desta premissa.

Aquele era um bom exercício para construção coletiva de conhecimentos agroecológicos entre extensionistas e agricultoras e agricultores familiares. Não era um passo fácil de se transpor, requeria dedicação, qualificação das equipes técnicas, estudos, pesquisas, reflexões e elaborações sobre a produção de saberes. O resultado daqueles diálogos deveriam ser materializados em elaboração teórica, sistematização, publicação de trabalhos e pesquisas participantes.

O conhecimento agroecológico não poderia concentrar todos os seus esforços no estudo das práticas de produção. Estas foram importantes e ajudaram na compreensão dos sistemas produtivos, porém era preciso valorizar outras dimensões da vida em comunidade, possibilitando o resgate de conhecimentos usurpados e transformados em mercadorias. Iniciar o processo de construção do conhecimento agroecológico não poderia ser algo abstrato, deveria partir de algo concreto, nos sistemas produtivos. O processo deveria se concretizar a partir da transição agroecológica, discutida, percebida e construída nas dimensões do desenvolvimento sustentável.

Estabelecer uma nova forma de acompanhamento técnico, compreender a agricultura familiar e consolidar um diálogo entre o conhecimento técnico e os conhecimentos tradicionais dos agricultores, eram o principal desafio da “nova extensão rural” ali proposta.

A tarefa posta para a extensão rural naquela conjuntura era a de compreender a agroecologia como proposta de desenvolvimento sustentável, partindo da análise dos sistemas produtivos e suas inter-relações, trabalhando a transição agroecológica como processo, potencializado pelas experiências de convivência com os ecossistemas.

Era oferecer acompanhamento técnico e oportunizar intercâmbios entre agricultores e as outras áreas do conhecimento, possibilitando capacitações e sistematização de experiências no fortalecimento de uma rede que tenha como centro os agricultores. Aquele momento era a oportunidade de participar da construção e consolidação de um projeto de desenvolvimento sustentável que prioriza o saber, a produção, e antes de tudo, prioriza as pessoas.

O esboço do projeto estratégico do programa de Desenvolvimento Rural Sustentável no CEPAC foi fundamentado nos aprendizados das várias etapas vivenciadas, sendo reflexo de processos e transformações, debates pautados em análise de conjuntura, opções políticas, escolha de métodos e técnicas, estudos de viabilidade, necessidades locais, regionais, nacionais e até da redefinição de linhas de ação de entidades da cooperação internacional.

Em muitos momentos, o CEPAC afastou-se do debate, reflexo de crises internas, trocas constantes de equipes e pouca clareza sobre qual a estratégia que a entidade deveria adotar no meio rural. Sem a clareza institucional necessária, as equipes foram construindo seus dilemas e alternativas e soluções, o que possibilitou erros e acertos, sobretudo, interrogações, que se estenderam até o encerramento de suas atividades.

Muitas vezes definir a estratégia não significa sua implantação na prática. Fatores como falta de recursos, demandas e dinâmicas do dia a dia em campo, processos de internalização da proposta pelas equipes, riscos da estratégia virar pacotes de caráter alternativo, dentre outros, refletem fragilidades, equívocos, resultados inesperados.

A agroecologia na agricultura familiar apresenta-se com o caminho para a construção desta nova extensão rural. Partir das indagações deve ajudar a extensão rural a construir respostas e formular muitos outros questionamentos relativos à sua prática cotidiana. Esse é o dilema de várias outras organizações de ATER ainda nos dias atuais.

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 *Antonio Gomes Barbosa, sociólogo, especialista em extensão para o desenvolvimento sustentável, mestre em agroecologia e doutorando em agroecologia pela Universidade de Córdoba, Espanha. Pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), é coordenador do projeto DAKI – Semiparido Vivo, ação focada na sistematização de experiências e formação em agricultura resiliente ao clima que envolve as regiões semiáridas do Corredor Seco da América Central, do Chaco na América do Sul e do Semiárido Brasileiro; Pela ASA coordenou o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) e o Programa Sementes do Semiárido. Foi assessor de política agrária e meio ambiente da Federação dos trabalhadores na Agricultura do Piaui (FETAG-PI) no ano de 1997 e integrou a equipe do CEPAC nos anos de 2001 a 2007. barbosa.pi@gmail.com

[1] CEPAC, 1995 – Relatório de Atividades.

 [2] Segundo Abramovay (1998), apesar de Marx não ter elaborado uma construção mais acabada em torno da questão agrária, apresenta que, no corpo das categorias que constituem as leis do capitalismo, o campesinato não possui lugar definido. Isso por que, se ao camponês fosse atribuído lucro, seria uma capitalista, e se recebesse salário, seria um operário. Vivendo da renda da terra, o camponês seria então um proprietário fundiário, que só emergiria como a “terceira” classe na medida em que esse rendimento fosse originário da mais valia social. A impossibilidade de definir claramente a natureza e a origem dos rendimentos demonstra que o conceito de camponês em “O Capital” é impossível. A atividade produtiva que dá origem à sua reprodução não tem o estatuto de trabalho social.

 [3]           CEPAC - Memória HISTÓRICA - versão Preliminar, 1989.

 [4] FONSECA, Graziani. Políticas governamentais e seus efeitos sobre a estrutura agrária no Piauí, 1993.

 [5] A partir do final da grande seca (1979-83), grupos de trabalhadores rurais começaram a organizar as Associações Comunitárias de Produção e Consumo – ACPC.

[6] CEPAC, Memória histórica (Versão Preliminar).

[7] E posteriormente, com a emancipação, o município de Sigefredo Pacheco- Piauí.

Encontros e desencontros da extensão rural brasileira na construção coletiva de conhecimentos e saberes (2009)


 
Antonio Gomes Barbosa

1. Introdução

Qualquer reflexão sobre as atuais propostas de extensão rural com o intuito de contribuir para a construção de alternativas de desenvolvimento sustentável para o campo deveria procurar fazê-la em pelo menos três aspectos: partir das muitas experiências já vivenciadas pela extensão rural (oficial e não oficial); procurar entender quais eram os objetivos e as estratégias montadas para a consolidação da proposta e ter como certo que a extensão rural enquanto direito inalienável da agricultura familiar¹ ainda é uma realidade distante e precisa ser perseguida e consolidada.

Este artigo propõe ao leitor um passeio analítico nas trajetórias, olhares e opções metodológicas de organizações que fazem a extensão rural no Brasil, focando de forma especial a ação de algumas organizações não-governamentais que atuam no meio rural brasileiro. Para tanto, priorizar-se-á o surgimento da extensão rural no Brasil para ajudar no entendimento das estratégias construídas pelo Estado para o meio rural. No caminho da extensão rural vivenciada pelas organizações não-governamentais, observa-se a mudança na percepção dos papéis assumidos pelos agricultores e as muitas metodologias testadas no campo. Propõe-se que a extensão rural seja discutida a partir da observação, do diálogo e da compreensão do que é a agricultura familiar. Neste esforço, acredita-se necessário aprender com a própria agricultura familiar, compreender suas dinâmicas, processos de diálogo, trocas e complementaridades, estabelecendo uma lógica sistêmica característica da produção familiar.

Surgidas no seio da esquerda pós-anistia, com forte influência das Comunidades Eclesiásticas de Base (CEB) e marxista, muitas ONGs percebiam os trabalhadores como classe social, sujeitos coletivos capazes de fazer transformações profundas na sociedade, supervalorizando e priorizando a dimensão político-sindical. Quando esta percepção era transposta para o meio rural, invisibilizava os agricultores (trabalhadores rurais) como produtores e consumidores de alimentos e hábitos culturais. Sujeitos que se relacionam diretamente com a natureza.

Não podendo ignorar por muito tempo a realidade vivenciada pelos agricultores, sobretudo os que vivem no semiárido, muitas organizações foram percebendo que os agricultores, para além das questões sindicais, necessitavam de acompanhamento técnico-produtivo. Isso possibilitou uma pequena releitura do meio rural. Da condição de assessoria aos grupos sindicais, muitas entidades, de alguma forma, começaram a valorizar e a dialogar com o acompanhamento técnico às famílias agricultoras, iniciando uma nova trajetória na extensão rural brasileira.

Nesta caminhada foi se percebendo que as ações de organização e produção, materializadas nos mutirões, Associações Comunitárias de Produção e Consumo (ACPC), bancos comunitários de sementes, beneficiamento e comercialização, dentre outras formas que demandam cada vez mais uma assessoria especializada.

Durante os processos de desenvolvimento das estratégias e metodologias de acompanhamento aos agricultores e suas organizações, a experiência da Rede de Tecnologias Alternativas (Rede PTA) conseguiu influenciar muitas entidades para além da rede, que passaram a ter na agroecologia uma proposta de desenvolvimento para o campo. Como metodologia adotada, a difusão de tecnologias consideradas de baixo impacto, testadas em Unidades de Transferência Tecnológica (UTTs), ensinadas pelos técnicos e replicadas pelos agricultores experimentadores e/ou multiplicadores. A crítica ao modelo convencional não trouxe junto consigo o debate sobre a forma de construção de conhecimentos e saberes.

Construir a nova extensão rural significa refazer o debate sobre a produção do conhecimento. Para tanto, propõe-se como método partir de um estudo sobre os processos da agricultura familiar, reforçando a importância e eficácia dos intercâmbios e as sistematizações de experiências, processos de diálogo e observação das peculiaridades que apresentam as instituições de Ater no país, tendo como tarefa compreender a agroecologia como proposta de desenvolvimento sustentável, partindo da análise dos sistemas produtivos e de suas inter-relações, trabalhando a transição agroecológica como processo potencializado pelas experiências de convivência com os ecossistemas no fortalecimento de uma rede que tenha no centro de seu funcionamento os agricultores. Esta rede deve ser potencializada pela influência mútua entre agricultores, extensionistas e pesquisadores, possibilitando trocas e sistematização de experiências na construção coletiva de conhecimento e saberes.

2. O estado da arte da extensão rural no Brasil

2.1. A extensão do conhecimento “legitimado”

O conhecimento “legitimado”, sistematizado, imposto e institucionalizado sempre se constituiu como ferramenta importante na dominação de classe. É o conhecimento que estabelece o nível de interação na relação sociedade e natureza, determinando as formas “legítimas” de comportamento, práticas, formas e utilizações dos recursos naturais. Nessa perspectiva, a extensão rural e a agricultura são formas mais antigas de intervenção humana na natureza, ela é uma das principais responsáveis por uma das mudanças mais significativas na trajetória do comportamento humano: sair da condição de nômade para tornar-se sedentário. Esta nova forma de organização possibilitou a construção de novas relações sociais, acumulação de bens e conhecimentos e a formação do Estado. Ou seja, podemos afirmar, sem dúvida alguma, que a agricultura possibilitou a existência humana nos moldes atuais.

A chamada “agricultura moderna”, forma de produção agrícola convencional sustentada na “racionalidade” tecnológica moderna, tem sua origem ligada às descobertas do século XIX, no marco dos estudos conduzidos pelos cientistas Saussure (1797-1845), Boussingault (1802-1887) e Liebig (1803-1873), que, com seus experimentos, derrubaram a teoria do húmus, segundo a qual as plantas obtinham seu carbono a partir da matéria orgânica do solo. Liebig difundiu a tese de que o aumento da produção agrícola seria diretamente proporcional à quantidade de substâncias químicas incorporadas ao solo. Toda a credibilidade atribuída às descobertas de Liebig deu-se ao fato de estarem apoiadas em comprovações científicas, sendo considerado o maior precursor da “agroquímica”. As descobertas de todos esses cientistas marcam o fim de um longo período, da Antiguidade até o século XIX, no qual o conhecimento agronômico era essencialmente empírico. A nova fase será caracterizada por um período de rápidos progressos científicos e tecnológicos.

Após a Segunda Guerra Mundial, a “agricultura moderna” passou a ter como principal corrente a chamada “revolução verde”. Esta foi difundida rapidamente, apoiada por órgãos governamentais, universidades, centros de pesquisa agropecuária e pelas empresas produtoras de insumos (sementes híbridas, fertilizantes sintéticos e agrotóxicos), além, é claro, do incentivo de organizações mundiais como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a United States Agency for International Development (USAID – Agência Norte Americana para o Desenvolvimento Internacional), a Agência das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), dentre outras.

Para Weid (1997), no marco da “revolução verde”, que implica o uso de insumos industriais, variedades melhoradas e híbridas e a motomecanização, gerou-se uma consequente especialização da produção em monoculturas, homogeneizando as propriedades e regiões em função de produtos que tivessem vantagens competitivas no mercado e a perda dos vínculos com as lógicas locais voltadas para a reprodução das condições sociais e ambientais que favorecem a sustentabilidade nos agroecossistemas. As contradições geradas pelo modelo social inicialmente eram escancaradamente “dirigistas” e “enquadradas”.

A partir da década de 1980 o modelo agroindustrial começa a dar sinais de exaustão: desflorestamento, diminuição da biodiversidade, erosão e perda da fertilidade dos solos, contaminação da água, dos animais silvestres e dos agricultores por agrotóxicos e maior resistência de pragas e doenças passaram a ser decorrências quase inerentes à produção agrícola. A “revolução verde” provocou ainda mais a concentração das terras nas mãos de poucos e, por consequência, o êxodo de famílias inteiras para os grandes centros, além da perda de traços culturais no plantio, na criação e nas relações sociais.

2.2. Gênese da extensão rural no Brasil: uma investida para a desconstrução de saberes locais

No Brasil, os serviços oficiais de assistência técnica e extensão rural (Ater) foram iniciados na década de 50, durante o pós-guerra. Para Fonseca (1985), a gênese deste processo inicia-se no ano de 1948, quando foram realizados conversações e convênios entre o Brasil e os Estados Unidos, culminando na implantação do Programa Piloto de Santa Rita do Passa Quatro, no Estado de São Paulo, e na fundação da Associação de Crédito e Assistência Rural de Minas Gerais (ACAR-MG). Este processo foi conduzido pelo mensageiro especial da missão norte-americana, o sr. Nelson Rockefeller.

No discurso a extensão rural seria dirigida para a agricultura como um todo, a proposta de desenvolvimento – incluindo os créditos e a extensão rural – foi direcionada para os produtores médios e grandes, enquanto a agricultura familiar se mantinha marginalizada. No caminho contrário, a proposta de extensão rural desconsiderava qualquer outra forma de conhecimento que não a produzida nas universidades e centros de pesquisa, criando um abismo entre o técnico e o tradicional. Para a extensão rural, o saber dos agricultores era tido como atrasado e deveria ser combatido.

Inicialmente, a Ater foi implantada como um serviço privado ou paraestatal, com o apoio de entidades públicas e privadas. A partir de 1956, o presidente Juscelino Kubitschek criou a Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural (ABCAR), constituindo um sistema nacional articulado com a Associação de Crédito e Assistência Rural nos estados.

Em meados da década de 1970, o governo do presidente Ernesto Geisel criou o Sistema Brasileiro de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater) e executado nos estados pelas Empresas de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater).

A partir de 1990, sob uma nova orientação para o desenvolvimento nacional (política do “Estado mínimo”), o governo do presidente Fernando Collor de Melo extinguiu a Embrater, desativando o Sibrater, abandonando claramente alguns dos esforços antes realizados para a existência de serviços de Ater no país. Neste quadro de semiabandono, seria difícil a extensão rural apostar na agricultura familiar como setor importante da economia na produção de alimentos, uma vez que nem o Estado estava disposto a tal opção.

Os programas de ajuste estrutural, como a desobrigação do Estado de algumas políticas públicas e a abertura das economias aos fluxos do mercado internacional, impactaram de forma direta o sentido de desestruturação da agricultura familiar. Ao contrário dos setores mais favorecidos, esta se ressentiu mais rápido da crise ambiental provocada pela própria aplicação do modelo da “revolução verde”. Um dos principais efeitos disso foi a exacerbação de processos de concentração das melhores terras nas mãos de poucos, empurrando a agricultura familiar para áreas marginalizadas, em ecossistemas mais frágeis e com mínimas disponibilidades de terra. Este processo acirrou ainda mais o êxodo rural, provocando inchaço nos grandes centros, fome, miséria e violência.

Weid (1997), analisando os processos dos desequilíbrios ambientais e o agravamento da pobreza rural, destaca duas linhas no campo das instituições internacionais voltadas para a cooperação, o desenvolvimento e o financiamento. A linha dura do Banco Mundial, que insiste na política de globalização e desmonte dos Estados nacionais, admitindo uma transição dolorosa para um melhor dos mundos num futuro não definido, e a linha de outras instituições como FAO e PNUD, num esforço de tentar conciliar os princípios hegemônicos do neoliberalismo com a compreensão de que será preciso adotar políticas compensatórias para garantir a sobrevivência de uma agricultura familiar cuja desapropriação só faria engrossar as crises urbanas nos centros e até mesmo nos do norte. Nestas últimas começou-se também a se questionar a adaptabilidade do modelo da “revolução verde” para a agricultura familiar e a necessidade de buscar aumentos de produtividade reconhecendo a base social, ecológica, cultural e econômica.

Este conceito de “tecnologia apropriada” operou como um instrumento criticado, tanto pelos neoliberais como pelos marxistas, como sendo uma tecnologia subdesenvolvida. Mas antes de ser resolvido, o próprio conceito exemplifica esta definição ao aplicar o critério de temporalidade e durabilidade, associando tecnologia apropriada ao uso de recursos naturais e com vistas à sustentabilidade do modelo de desenvolvimento. Este novo conceito motomecanizado/biotecnológico, possibilitou seu questionamento, pois trouxe à atenção para o tempo limitado de uso de recursos não renováveis e a necessidade de uma agricultura que preserve os recursos naturais e o meio ambiente. Este conceito não golpeia apenas a adaptabilidade do modelo da “revolução verde” para a agricultura familiar, mas a própria sustentabilidade do modelo.

2.3. Na contestação do modelo agrodesenvolvimentista, o surgimento da agricultura alternativa

Foi justamente o agravamento dos efeitos catastróficos provocados pelo “progresso” da “agricultura moderna” sobre a natureza, gerando desastres e desequilíbrios ambientais e sociais, que impulsionou o surgimento de um movimento mais organizado de resistência ao padrão dominante de produção agrícola.

 

No início dos anos 70, esse movimento de oposição ao padrão produtivista agrícola convencional concentrava-se em torno de um amplo conjunto de propostas, denominadas “alternativas”, que ficou conhecido como agricultura alternativa. É quando se intensificam de fato os debates sobre sustentabilidade. A introdução do termo sustentabilidade na agricultura é reclamada pelo Movimento de Agricultura Orgânica e pela IFOAM³. Em 1977, realizou-se, na Suíça, a Primeira Conferência Científica da IFOAM, que recebeu o nome de “Rumo a uma agricultura sustentável”, segundo relata Bernward Geier, “o que mostra que a preocupação com a qualidade da produção agrícola remonta a quase trinta anos.

No Brasil, pesquisadores como Adilson Paschoal, Ana Maria Primavesi, Luis Carlos Machado, José Lutzenberger, dentre outros, contribuíram para contestar o modelo vigente e despertar para novos métodos de se praticar a agricultura. Em 1976, Lutzenberger lançou o Manifesto ecológico brasileiro: fim do futuro?, que propunha uma agricultura mais ecológica, influenciando profissionais, pesquisadores das ciências agrárias, produtores e a opinião pública em geral.

Em 1979, Adilson Paschoal, em sua obra Pragas, praguicidas e crise ambiental, faz um alerta para os altos patamares de consumo de agrotóxicos provoca o aumento no número de “pragas” nas lavouras, por eliminar também grande número de inimigos naturais. Esses trabalhos, dentre outros, despertaram o interesse da opinião pública pela questão ambiental, crescendo também o interesse pelas propostas ditas alternativas para a agricultura brasileira.

A partir da década de 1980, o movimento para uma agricultura alternativa ganhou força com a realização de três Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa (EBAA), ocorridos, respectivamente, nos anos de 1981, 1984 e 1987. Nos dois primeiros, as críticas se concentravam nos aspectos tecnológicos e na degradação ambiental provocada pelo modelo agrícola trazido pela “revolução verde”; já no terceiro, privilegiou-se o debate sobre as condições sociais da produção, sobrepondo-se as questões políticas sobre as questões ecológicas e técnicas.

Foi também na década de 1980 que surgiram várias organizações não-governamentais voltadas para a agricultura, a exemplo da rede PTA (Projeto Tecnologias Alternativas), de iniciativa da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase). A denominação “tecnologias alternativas” foi usada nesse período para designar as várias experiências de contestação à agricultura convencional.

O interesse da opinião pública pelas questões ambientais e a adesão de alguns pesquisadores à agricultura alternativa, sobretudo em função das adversidades dos métodos convencionais, tiveram desdobramentos importantes no âmbito da ciência e da tecnologia, como, por exemplo, a busca de fundamentação científica para suas propostas técnicas e os aspectos socioculturais da produção agrícola.

Em 1992, com a Conferência Mundial da ECO92, no Rio de Janeiro, Brasil, consolida-se o conceito de sustentabilidade como manifestação de uma nova ordem mundial que expressa a vontade das nações de conciliar ou reconciliar o desenvolvimento econômico e o meio ambiente, em integrar a problemática ambiental ao campo da economia. Mais do que um conceito que orienta a emergência de princípios e valores, a sustentabilidade manifesta e imprime lugar a uma problemática de aspectos múltiplos (científico, político, ético), oriunda da emergência de problemas ambientais em escala planetária e principalmente de percepção sócio substantiva. Amparado nesse contexto de coevolução social e ecológica, diferentes movimentos crescem com o propósito de frear os efeitos maléficos da “revolução verde”. Assim, movimentos sociais se mobilizam em torno de ações que garantam o uso e a difusão de práticas alternativas de produção.

Infelizmente o método utilizado para a difusão dos novos conhecimentos e tecnologias copiou a fórmula positivista, já utilizada nas universidades e centros de pesquisa, de experimentação em pequenas áreas, valorização do conhecimento técnico e necessidade de mediadores para a difusão. Em campo, este método se materializou na implantação de Unidades Demonstrativas (UDS) e Unidades de Transferência Tecnológica (UTTs). Os mediadores, responsáveis por difundir esses conhecimentos, foram chamados de agricultores multiplicadores e/ou agricultores experimentadores. O conhecimento produzido nas ONGs, embora diferente da “revolução verde”, muitas vezes constituiu pacotes para os agricultores.

Atentos a essa realidade, algumas ONGs e pesquisadores organizados na Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), vêm refletindo sobre os processos metodológicos adotados em campo nos últimos anos. Essa reflexão possibilita uma análise mais elaborada das práticas, posturas e opções adotadas. Na tentativa de consolidar proposições mais sustentáveis de acompanhamento técnico, reforça-se a agroecologia como princípio. No entanto, é preciso estar atento para não se correr o risco de transformar a agroecologia em um novo pacote para a agricultura familiar.

Nesse sentido, a agroecologia deve ser compreendida como ciência. Forma de relação e produção que prima pelo aproveitamento e utilização sustentável dos recursos naturais disponíveis, pela autonomia dos agricultores e agricultoras em relação à independência de insumos externos, pelas relações justas (de produção e consumo) e harmoniosas entre homens, mulheres, sociedade e natureza, dentre outros.

No esforço de precisar o que é agroecologia, Caporal e Costabeber, referindo-se aos estudos de Guzmán e Molina, a definem como sendo:

[...] um campo de estudos que pretende o manejo ecológico dos recursos naturais, para, através de uma ação social coletiva de caráter participativo, de um enfoque holístico e de uma estratégia sistêmica, reconhecer o curso alterado da coevolução social e ecológica, mediante controle das forças produtivas que estagnam seletivamente as formas degradantes e espoliadoras da natureza e da sociedade. Em tal estratégia, a dimensão local é vista como portadora de um potencial endógeno, que, por meio da articulação de saber local e conhecimento científico, permite impulsionar ações de desenvolvimento rural sustentáveis, potencializadoras da biodiversidade ecológica e da diversidade sociocultural. (Caporal e Costabeber, 2001, p. 26)

Fortalecer sistemas agroecológicos dentro de uma economia globalizada e flexível implica a retomada do debate sobre políticas públicas amplas e diferenciadas, reforma agrária, créditos, infraestruturas sociais e produtivas, fortalecimento da agricultura familiar, soberania, autonomia e segurança alimentar e nutricional. Nesse sentido, é preciso uma mudança no paradigma da pesquisa e da extensão rural, principalmente, porque estas se encontram atreladas às alterações sociopolíticas de caráter estrutural. Esta não é uma tarefa pequena, deve ser uma opção política, sendo imprescindível o esforço de todos.

A reflexão sobre uma “nova extensão rural” requer, portanto, um esforço coletivo, pautado numa visão sistêmica de mundo, plural e multidimensional, primando pela diversidade e construções coletivas de saberes, sem substituir conhecimentos, mas conjugando-os.

3. Repensando a extensão rural

3.1. Extensão rural como direito inalienável da agricultura familiar

A constituição de uma proposta de desenvolvimento sustentável para o campo tem que ter como pressuposto básico o direito inalienável dos agricultores familiares de acesso às políticas públicas: terra, habitação, crédito, pesquisa, extensão rural, educação contextualizada, saúde, saneamento etc. Esta proposta deve partir das necessidades e características peculiares da agricultura familiar: policultura-pecuária-extrativismo, biodiversidade, ecossistemas, produção e reprodução, mão-de-obra de base familiar, vida comunitária, expressões religiosas, crenças, dentre tantas outras.

Petersen (1998) acredita que a nova extensão rural tem que ter como objetivo proporcionar um ambiente sociocultural favorável ao desenvolvimento e irradiação dos conhecimentos técnicos de manejo agroecológico. Para que isto se faça ambiente, faz-se necessário tanto intervir nas condições culturais e sociais históricas que limitam o avanço do conhecimento quanto nas condições materiais que limitam a autonomia do pensamento e abram possibilidades de inovação e evolução do domínio do conhecimento agroecológico.

Nesse processo, a extensão rural não representa apenas um papel na construção coletiva dos conhecimentos e saberes não como mera correia de transmissão de técnicas, mas reconhecendo-a como produtora de conhecimentos autônomos, que têm o mesmo grau de importância dos conhecimentos produzidos por pesquisadores da Embrapa e das universidades. Conhecimento tão importante quanto os construídos pelos agricultores nas comunidades. Este entendimento vai possibilitar a construção coletiva de conhecimentos e saberes, possibilitando a reorientação da prática extensionista, reconhecendo que não existe um conhecimento único.

Sendo a extensão rural uma política pública, tem que ser encarada como parte de um projeto de desenvolvimento. O primeiro passo a ser dado por quem quer fazer a extensão rural é perceber que a agricultura familiar não é apenas uma unidade de produção e consumo, mas sim um modo de viver e interpretar a realidade. Este debate e os impactos destas reflexões precisam estar direcionados para a construção de uma nova política de Ater. Como referência deste projeto, vem sendo travado um intenso debate na Rede de Assessoria Técnica e Extensão Rural do Nordeste (Rede Ater-NE), rede que congrega 13 ONGs de quatro estados do Nordeste: Pernambuco (Centro Sabiá, Caatinga, Diaconia e Asocone), Bahia (MOC, Apaeb, Ascoob e Sasop), Paraíba (AS-PTA e Patac), Ceará (Esplar e Cetra) e Piauí (CEPAC). Esta rede tem possibilitado a essas entidades a reflexão sobre suas práticas institucionais.

Integrando a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a Rede Ater-NE surgiu no processo de diálogo sobre a nova política nacional de Ater, coordenada no Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), pelo Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural (Dater). No debate sobre o significado simbólico e prático do que tem sido a assistência técnica e extensão rural no Brasil, o GT Ater da ANA sugeriu definir este espaço como sendo um lugar de construção coletiva de conhecimentos, mudando assim a lógica positivista da extensão rural. Na construção coletiva de conhecimentos e saberes, todos os envolvidos – agricultores, extensionistas, pesquisadores, instituições – exercem papéis singulares e essenciais. Esta conceituação coloca no debate uma nova concepção de inter-relação entre produção de pesquisa e extensão. Este processo, que vem dialogando com as políticas públicas, poderá contribuir substancialmente para a formatação de um novo modelo de extensão rural para o Brasil.

3.2. Da extensão rural à construção coletiva de conhecimentos e saberes

O positivismo, corrente de pensamento que mais influenciou as práticas nas sociedades modernas, faz com que a nossa visão das coisas seja quase sempre compartimentalizada. Não tendo visão do todo, tendemos a priorizar as partes, suas especificidades, daí a valorização das especialidades, dos problemas em detrimento dos processamentos. Se possível, compartimentalizam-se até os processos, no intuito de simplificá-los. É o que Edgar Morin (2001) chama de inteligência parcelada, compartimentalizada, mecanicista, disjuntiva e reducionista, que desconsidera a complexidade do mundo, fraciona os problemas, perde a noção de totalidade. Infelizmente, são com essas lentes que a extensão rural oficial e as entidades não-governamentais, durante muito tempo, analisam os sistemas produtivos da agricultura familiar, olhando a parte como se fosse o todo.

Durante muito tempo foram priorizadas as tecnologias alternativas em subsistemas produtivos, quase sempre os roçados ou a criação de pequenos animais. Embora esta ação desenvolvida tenha sido importante, não podemos chamá-la de ação agroecológica; no máximo, de “boa vontade” agroecológica. Prova disso é que o longo tempo de trabalho nas UDS e UTTs não conseguiu potencializar a independência dos sistemas produtivos das famílias acompanhadas. Ao contrário, estas passaram a necessitar cada vez mais da ação da assessoria para conseguir manter os subsistemas em condições quase ideais.

Este processo ajudou a criar os agricultores “best seles”, técnicos dentro da técnica. Hoje muitas organizações não sabem como tratá-los.

Na verdade, a ação sempre foi bem pontual, centrada em experiências a serem difundidas pelos agricultores multiplicadores. Ganhavam cada vez mais destaque os dias de campo, espaços de difusão das tecnologias. Nas organizações o debate passou a ser sobre o que é e o que não é agroecologia, ou seja, a agroecologia precisava ser certificada por “especialistas”, donos do conhecimento. Pouco se avançou no processo de transição agroecológica dos sistemas produtivos.

Nessa trajetória, saiu-se da conceituação de trabalhadores rurais, sujeitos coletivos capazes de fazer mudanças sociais a partir da ação sindical, para o conceito de agricultores familiares, sujeitos de necessidades e sentimentos. Apesar dessa mudança substancial, durante muito tempo adotou-se o mesmo método da extensão oficial, de difusão de conhecimentos previamente construídos, não se permitindo o diálogo com outras formas de produção de saberes. Os chamados pacotes alternativos também apresentavam suas fórmulas prontas, verdades absolutas e a artificialização dos espaços. Neste debate, o ponto está propondo é discutir a extensão rural a partir da observação, do diálogo e da compreensão do que é a agricultura familiar. Neste esforço, é preciso reconhecer que a agricultura familiar, compreendida em sua diversidade, demanda uma lógica de diálogo, trocas e complementaridade, sendo reconhecida uma lógica sistêmica comum na produção familiar.

Na lógica convencional da extensão rural, o crédito e a assistência técnica cumprem papéis nefastos na desconstrução dos sistemas produtivos. São direcionados e atrelados a um único subsistema, na maioria das vezes a uma única cultura dentro do subsistema, negando a lógica da policultura e das inter-relações da agricultura familiar e condenando as famílias à lógica das monoculturas do já falido agronegócio. Esta lógica leva a agricultura familiar à desestruturação e a um forte endividamento. Na contramão das políticas de crédito e da assistência técnica atual, a nova extensão rural, que constrói coletivamente os conhecimentos, precisa trabalhar orientada pela observação das dinâmicas dos sistemas produtivos da agricultura familiar, que trocam insumos e energias entre seus subsistemas e se relacionam com outros sistemas no entorno. O crédito deve cumprir um papel dinamizador nos sistemas de produção familiar e potencializar as dinâmicas endógenas na produção de insumos, respeitando o patrimônio genético e cultural das comunidades e reforçando as infraestruturas produtivas e sociais.

Construir esta nova extensão rural significa construir novos valores, outras formas de ver e compreender o mundo. Sem transformação do indivíduo coletivo, não há transformação coletiva. Avançamos no sentido de reconhecer muitos erros históricos e querer mudá-los, porém a trajetória da nova extensão rural vai requerer investimentos em infraestrutura e formação.

Para delinear a “nova extensão rural” é preciso identificar rumos, conhecer os agricultores e agricultoras e suas formas de organização, sua dinâmica, sua lógica, seus valores, suas experiências, sua história e, por que não, suas pretensões. É imprescindível reconhecer que os agricultores têm experiências acumuladas, embora não sistematizadas. É preciso reconhecer a importância de tais experiências para iniciar qualquer diálogo. Este reconhecimento e valorização não podem ser artificiais; o extensionista precisa estar convencido desta premissa.

Este é um bom exercício para a construção coletiva de conhecimentos agroecológicos entre extensionistas e agricultores familiares. Não é uma barreira fácil de transpor, requer dedicação, qualificação das equipes técnicas, estudos, pesquisas, reflexões e elaborações sobre a produção de saberes. O resultado deste diálogo tem que ser materializado em elaboração teórica, sistematização, publicação de trabalhos e pesquisas participantes.

A aplicação de novos conhecimentos só se consolida se nossos esforços no estudo das práticas de produção; estas são importantes e ajudam na compreensão dos sistemas produtivos, pois o aprendizado coletivo ocorre no dia a dia e em comunidade, possibilitando o resgate de conhecimentos disruptados e transformados em mercadorias. Iniciar o processo de construção do conhecimento agroecológico não pode ser algo abstrato, deve partir de algo concreto. Nos sistemas produtivos o processo deve se concretizar a partir da transição agroecológica discutida, percebida e construída nas dimensões do desenvolvimento sustentável. Estabelecer uma nova forma de acompanhamento técnico, compreender a agricultura familiar e consolidar um diálogo entre o conhecimento técnico e os conhecimentos tradicionais dos agricultores, são os principais desafios da “nova extensão rural”. A tarefa posta para a extensão rural nesta conjuntura é a de compreender a agroecologia como proposta de desenvolvimento sustentável, partindo da análise dos sistemas produtivos e suas inter-relações, trabalhando a transição agroecológica como processo potencializado pelas experiências de convivência com os sistemas endógenos.

Favorecer o acompanhamento técnico requer oportunizar intercâmbios horizontais entre agricultores, e entre estes e os outros sujeitos do conhecimento, possibilitando acumulações e sistematização de experiências. O fortalecimento de uma rede que tenha como centro a lógica da agricultura familiar. Esse momento é a oportunidade de o Estado e as organizações da sociedade participarem da construção e consolidação de um projeto de desenvolvimento

sustentável que priorize os saberes, a produção de conhecimentos e, antes de tudo, as pessoas e suas representações construídas socialmente.

Definir a estratégia não significa a garantia da sua implantação na prática. Fatores externos e internos devem ser percebidos a cada momento; são as conhecidas ameaças e oportunidades. Muitas vezes falta o aporte financeiro, as demandas e dinâmicas do dia-a-dia em campo tendem a levar ao ativismo, dificultando os processos de internalização da proposta pelas equipes. Ainda se corre o risco de a proposta e as estratégias virarem pacotes de caráter alternativo. Ou seja, toda proposta bem-intencionada reflete fragilidades, equívocos nativos. 

Nesta caminhada, a ação em campo deve ser planejada, monitorada, avaliada e sistematizada de forma permanente. A visão sistêmica deve servir de referência para a ação interna, nortear os projetos e programas como parte da estratégia institucional para construir a estrada do desenvolvimento sustentável. O esboço do projeto estratégico de desenvolvimento sustentável deve ser fundamentado nos aprendizados das várias etapas vivenciadas na extensão rural, sendo reflexo dos processos e transformações. De debates pautados em análise de conjuntura, opções políticas, escolha de métodos e técnicas, estudos de caso e vivências locais e regionais e até de redefinição de linhas de ação e projetos institucionais.

Em muitos momentos nos afastamos do debate central e nos pautamos nas crises internas, refletindo a pouca clareza sobre as estratégias que devemos adotar em campo. Sem a clareza necessária do projeto de desenvolvimento, as equipes técnicas passam a construir seus próprios dilemas, alternativas e soluções. É preciso avaliar os erros e acertos e, sobretudo, as dúvidas construídas. A construção coletiva de conhecimentos, os processos vivenciados podem ajudar a extensão rural a construir respostas e formular questões para a prática cotidiana.

4. Considerações finais

As questões levantadas neste artigo significam uma pequena contribuição para as discussões e debates de uma “nova extensão rural”, que tenha como centro a construção coletiva de conhecimentos e saberes. Reflete em parte as análises elaboradas pelas entidades que se organizam na Rede Ater/NE. A efetivação destas propostas pressupõe um esforço concentrado dos sujeitos da extensão rural no país organizados no Estado (Ematers, Embrapas, universidades) e nas entidades da sociedade civil (ONGs, cooperativas de serviços, sindicatos e trabalhadores rurais, pastorais sociais etc.). Não podendo ser algo homogêneo, será preciso recorrer às peculiaridades das instituições para potencializar esta nova forma de fazer extensão rural.

Mais importante que a estratégia é o que se quer alcançar com ela. O compromisso da extensão rural tem que ser com o fortalecimento da agricultura familiar e de suas organizações na defesa da universalização das políticas públicas para o campo. É com este intuito que defendemos a agroecologia como proposta de desenvolvimento sustentável, pautada nos processos comunitários de transição agroecológica e diálogo de saberes. A agroecologia na agricultura familiar apresenta-se como o caminho para a construção desta nova extensão rural; por isso, não pode ser proposta como um simples programa de governo. Há um longo processo de aprendizagem a ser trilhado. Esta compreensão pode evitar a forte pressão dos gestores por pacotes, produtos e resultados imediatos. Talvez seja este o entendimento que de sobre a nova extensão rural precise construir internamente. Com isto, não está dito que o processo deva ser demorado. A transição agroecológica é um processo temporal.

Outros elementos que norteiam a nova extensão rural são a observação e o aprendizado com as características dos ecossistemas locais. Não se pode trabalhar igual do norte ao sul do país. Nesse sentido, é preciso aprender com os bons exemplos já articulados no Semi-Árido Brasileiro (ASA), rede com mais de 750 organizações que trabalham no Semi-Árido difundindo experiências apropriadas de convivência com o semiárido. A ação deve sempre partir das necessidades imediatas e, assim, ir construindo alternativas mais estruturantes. Na perspectiva de processo, é importante identificar os campos e potencializar a ação com parceiros e aliados. Nesse caminho, este deve ser o período dos diagnósticos participativos: diagnóstico das comunidades, diagnóstico das organizações, diagnóstico das aguadas, diagnóstico das sementes, diagnósticos das potencialidades agrícolas, diagnósticos dos ecossistemas etc.

A estratégia prioritária deve ser a constituição de redes que envolvam agricultores, técnicos e pesquisadores. Nessas redes devem estar todos os que estão direta ou indiretamente envolvidos na construção do projeto de desenvolvimento sustentável para o campo: mulheres, comunidades indígenas, quilombolas, pescadores, vazanteiros, geraizeiros, comunidades de fundo de pasto, quebradeiras de coco, demais comunidades tradicionais. Será preciso partir das características de cada sujeito local para facilitar o diálogo na construção de saberes.

Para potencializar a estratégia das redes, é importante favorecer os intercâmbios, encontros de capacitação, sistematização de experiências, possibilitar que os saberes e conhecimentos circulem e se encontrem. Estas frentes devem constituir parte dessa estratégia. É mais fácil para os agricultores, academia e centros de pesquisa, entender e apostar em experiências de transição agroecológica, quando comprovadas sua viabilidade. Daí a ênfase na realização dos intercâmbios e na troca de conhecimentos e saberes.

Concretizar essa estratégia não se apresenta como uma tarefa fácil, mesmo ainda exclusividade das organizações da sociedade civil, neste desafio o Estado é um parceiro estratégico. Para provocar as transformações sociais rumo a um mundo mais justo e igualitário, será preciso avançar na reflexão sobre os encontros e desencontros da extensão rural na construção coletiva de conhecimentos e saberes.

Referencias bibliográficas

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LANDIM, Leilah. Para além do mercado e do Estado – filantropia e cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Núcleo de Pesquisa/ISER, 1993. 

———. A invenção das ONGS – do serviço invisível à profissão sem nome. Rio de Janeiro, 1993b. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. 

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WEID, Jean Mac von der. A trajetória das abordagens participativas para o desenvolvimento na prática das ONG’s no Brasil. Rio de Janeiro: AS-PTA, 1997

¹ Agricultura familiar aqui compreendida enquanto sistema de produção, consumo e modo de vida estabelecido a partir das relações entre famílias agricultoras, baseado na policultura, na pecuária e no extrativismo, mediados por valores simbólicos construídos coletivamente.

2 Projeto Agroecológico e Vida Sustentável. Documentos CEPAC. Teresina: CEPAC, 2005.

³ International Federation on Organic Agriculture (IFOAM), fundada em Versalhes, na França, em 1972. No início, reuniu cerca de 400 entidades “agroambientalistas” e foi a primeira organização internacional criada para fortalecer um modelo de agricultura baseado no respeito à dinâmica ambiental. Suas principais atribuições passaram a ser a troca de informações entre entidades de associações, a harmonização internacional de normas técnicas e a certificação de produtos orgânicos (Ehlers, 2000).

⁴ A agricultura orgânica no mundo. Revista Agricultura Biodinâmica, IBD – Instituto Biodinâmico de Desenvolvimento Rural, nº. 80, outubro de 1998.


sábado, 14 de junho de 2025

Comentários de ANTÔNIO GOMES BARBOSA. Segundo livro de Nêgo Bispo (2015) - COLONIZAÇÃO, QUILOMBOS, MODOS E SIGNIFICADOS -



SAUDAÇÕES A BISPO, A MÃE ÁFRICA E AOS POVOS AFRO-PINDORÂMICOS.

Salve, Salve!

“Colonização, quilombos: modos e significações”, de autoria de Antônio Bispo e de sua ancestralidade, além de um primoroso tratado sobre as relações de poder vivenciadas nos últimos 500 anos entre os povos afro-pindorâmicos (politeístas, negros, índios, pagãos, policultores) e os europeus (brancos, cristão, judeus, monoteístas e monistas), é uma destacada contribuição para a reconstrução da historiografia do Brasil.

Partindo de identidades coletivas e modos de ler e interpretar o mundo, Bispo não se limita ao mítico ou ao fato isolado, traz ao debate temas atuais, quase arquetípicos, que se constroem e se legitimam nas inter-relações. Em síntese, analisa o desenvolvimento como ameaça e cobra ações imediatas de reparação aos povos.

No campo teórico, esta obra coloca-se em oposição à historiografia positivista, livra-nos dos modelos cartesianos e monótonos das explicações predominantes sobre a subjugação europeia aos povos do além-mar e desnuda o “massivamente aceitável”. Pode ser considerada a base filosófica de uma sociologia afro-pindorâmica. De forma atemporal, nos faz ver a aguda dívida do Estado brasileiro, não apenas com seu passado, mas, sobretudo, com o presente materializado nos grandes projetos contidos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Não estando preso a formalidades acadêmicas, apresenta a circularidade dos fatos sem perder a centralidade nas análises e constatações. Com sabedoria e simplicidade, presenteia-nos com contações de histórias.

Como no passado, com requintes de sofisticação, a face da colonização imputa a seus opositores a pecha de atrasados, de feios, de antinacionais, de empecilhos ao desenvolvimento, aliados do diabo, etc. Pelo tempo que conheço Bispo, estes são apenas alguns dos adjetivos a ele atribuídos.

O discurso dominante, que prega a igualdade e nega as diferenças, “todos somos iguais perante a lei”, constrói cortinas de fumaça e confunde antigos e atuais aliados. Muitos caem no canto da sereia, uns até rápido demais. Se antes facilmente distinguia-se quem eram os colonizadores e quem eram os contra-colonizadores (senhores, fazendeiros, usineiros, escravos, índios, quilombolas), hoje somos colocados à prova a todo o momento.

Nos muitos ensinamentos que a vida me possibilitou no convívio com Bispo, a temática colonização me faz lembrar diálogos sobre os sujeitos sociais e sua saída da estrutura sindical rural. Seu giro definitivo para a causa quilombola. Em leituras de paisagem, para além do capital e do trabalho, divisão por mim adotada, destacava tristemente o fato de muitos dos companheiros dirigentes estarem a serviço do outro lado, favorecendo os patrões. Os famosos pelegos, mais comuns do que se possa imaginar. No seu estilo pedagógico, analogamente, comparava-os a figura do “Capitão do Mato”, ser esdrúxulo, que embora seja destacadamente de um lado, está a serviço do outro, representando perigo por ser conhecedor dos lugares e das estratégias construídas pela e para a resistência. Mas sempre procurando compreender o porquê, a causa, e não simplesmente a mera constatação do fato, por sua vez, reconhecia nestes muito mais o papel de vítimas que algozes da história.

Hoje, usando sua exemplificação, pode-se afirmar que o número de capitães do mato aumentou consideravelmente, e para além do movimento sindical. Guardada as devidas proporções, caso emblemático e passivo de análise é o do ex-presidente Lula, operário, oriundo do sertão pernambucano, que com sua família teve que fugir para São Paulo por falta de água, terra e sementes, por falta de condições dignas de vida no meio rural. Quando pôde, cumpriu papel primordial na presidência, apoiou inúmeras iniciativas de convivência com o Semiárido e olhou de forma especial para a região. Na era Lula o Semiárido cresceu acima da média nacional. Porém, foi o mesmo Lula que ajudou a ampliar os perímetros irrigados, e, além de favorecer a transposição do rio São Francisco, publicamente disse que “só é contra a transposição quem nunca passou sede, quem bebe água mineral”, um contrassenso.

Inocente, culpado ou vítima? Como caracterizar estes casos? Ora, os principais beneficiados com a transposição do São Francisco são justo os que condenaram e condenam a morte milhares de crianças, mulheres e homens. Os mesmos que os expulsaram na infância.

ALGUMAS OUTRAS CONSIDERAÇÕES.

“Assim como em Canudos, Caldeirões e Pau de Colher, os colonizadores não se contentaram com o aniquilamento do povo e o desmantelamento da organização...”

Para mim, a centralidade deste livro de Bispo está na visibilidade que é dada às muitas estratégias de resistência. Suas aproximações e singularidades. O destaque de que a expropriação dos territórios não se dá apenas no campo material: das terras, das posses e das riquezas produzidas, mas, sobre tudo, no mundo simbólico, no imaterial: na cultura, nas danças, na língua, nos símbolos, na diversidade e nas divindades. Sua capacidade de exemplificar, como em Belo Monte, onde a posição do governo brasileiro é tática: O que é a história ou as riquezas dos povos do Xingu frente à produção de energia que conduzirá riquezas e benefícios a todos e à nação? Em nome de um desenvolvimento que pretende tornar o país cada vez mais autossuficiente em sabe-se lá o que.

O ataque e a negação dos conhecimentos tradicionalmente construídos são a face mais cruel dos colonizadores em oposição aos contra colonizadores.

Num outro viés, Bispo, que não trabalha com o conceito marxista de luta de classes, em muitos momentos pode induzir-nos a pensar a história da humanidade, no sentido macro, como marcada pela luta entre matrizes monoteístas e politeístas. Claro que esta seria uma simplificação das questões até aqui levantadas, merecendo aprofundamento, mas alguns elementos que se repetem no passado e no presente, possivelmente numa relação causa/efeito como sendo resultado dos modos e significações, construídos e ressignificados no transcorrer da história.

Na continuidade de suas reflexões, Bispo questiona a historiografia oficial quanto à classificação dos movimentos que se constituíram no sertão nordestino enquanto meramente messiânicos: Canudos, Caldeirão e Pau de Colher. Em momentos Bispo denomina-os como quilombos, em outros, destaca pormenorizadamente suas características que justificam tal classificação: a estrutura organizativa, as formas de apropriação e a divisão do resultado do trabalho coletivo.

Dessa forma, rompe com os que querem negar estes movimentos atribuindo sua existência apenas ao poder de seus destacados líderes: Antônio Conselheiro, Beato José Lourenço ou Sr. Quinziero. Se isto é de verdade, como questiona Bispo, porque então destruir tudo e todos ao redor? Como explicar suas capacidades de produzir tanto em tão pouco tempo e espaço? Porque então apagar tudo e destruir a memória destes fatos? Qual seria então a capacidade de reprodução destas experiências em outros espaços e tempos?

Fica a dívida e a certeza de poder fazer tudo diferente.

Salve, salve Dandara, Ganga Zumba e Zumbi

Salve, salve Antônio Conselheiro, Beato José Lourenço e Sr. Quinziera

Salve, salve Rosalina, Edileusa, Bispo, Joana Maria e Sabino

Salve, salve Palmares, Queimada Nova e Saco Curtume

Salve, salve povo negro

Salve, salve povo afro-pindorâmico

Antônio Gomes Barbosa

Sociólogo, coordenador do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com Semiárido Brasileiro: Uma Terra e Duas Águas (P1+2) da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA). No ano de 1997, foi assessor de Antônio Bispo na secretaria de Política Agrária e Meio Ambiente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Piauí (FETAG/PI)

*PREFÁCIO* - PRIMEIRO LIVRO NÊGO BISPO (2007) - QUILOMBOS, MODOS E SIGNIFICADOS

Prefaciar Quilombos: Modos e Significados constitui tarefa difícil, principalmente porque não se consegue, de forma sucinta, prefaciar ideias que representam o acúmulo de um povo, de uma raça, de identidades coletivas construídas na diversidade adversa — na resistência, nas festividades, nos terreiros, nas rodas, na roça, na cidade, no campo, na vida, na ancestralidade. É dessa complexidade que este livro trata. Portanto, embora pareça paradoxal, aproveito a oportunidade para dialogar com o guerreiro Antônio Bispo dos Santos — como sempre fizemos — ora concordando com suas análises, ora aprendendo com sua sabedoria, ora discordando, ora procurando entender melhor suas reflexões e afirmações.

O que Bispo apresenta nesta obra é o que poderíamos chamar de bases para uma filosofia da sociologia afro-pindorâmica. São embasamentos teóricos e práticos para a compreensão das diversas formas de organização social e de significação do universo. Durante todo o livro, ele dialoga com várias ideias e categorias de autores da sociologia (K. Marx, E. Durkheim, M. Weber, só para citar os clássicos).

Discute as bases morais do monoteísmo judaico-cristão; identifica suas estruturas; questiona a luta de classes como categoria para explicar as relações socioculturais do processo de colonização no país; confronta a pesada estrutura sindical — tudo isso com desenvoltura só possível a guerreiros e feiticeiros como ele — num processo que revela a sabedoria de sua ancestralidade africana.

Ao discutir ideias, Bispo questiona nossas verdades absolutas e incita-nos a refletir sob outro prisma; apresenta outras verdades e remete-nos a olhar a sociedade a partir de outros lugares. Ele nos força a sair da apatia, propõe lógicas circulares e confluentes.

Quero manifestar minha primeira discordância a Bispo: se este trabalho não tem caráter acadêmico, isso pouco importa. Certamente terá grande valor nas rodas para a reparação e reformulação das bases teóricas, metodológicas e práticas das identidades e coletividades dos povos africanos e pindorâmicos.

Continuando este diálogo, será preciso localizar e caracterizar alguns dos muitos debates contidos no livro. No decorrer deste prefácio, tomarei a liberdade de aludir a outros momentos e debates levantados por Bispo nos vários espaços que tive a oportunidade de compartilhar — onde sua percepção do mundo não se deixa passar despercebida — e assim sua filosofia da sociedade vai se consolidando, lembrando um dos mais belos princípios da dialética: a negação da negação.

Não pretendo fazer uma leitura linear do livro; quero falar da liberdade que ele prega, da sua poesia. Ele começa sua introdução colocando em xeque o Estado e o direito positivista, revelando o caráter excludente e cínico da sociedade branca:

Dá cadeia para quem me chamar de analfabeto…”, ora! — como diz — só não dá cadeia ao Estado que impõe o analfabetismo.

Bispo traz ao debate o papel do Estado como mediador de conflitos de raça internalizados nas várias culturas, localiza o debate na cor e no significado de ser negro no Brasil (e em grande parte do mundo).

Bem característico — e possivelmente sinalizador de estilo — é que Bispo usa o principal instrumento do catolicismo para desmontá-lo: as bulas papais, mostrando como se legitimou a escravidão. Sem um debate sectário, mas sim histórico, ele levanta trechos da Bíblia que referendam a prática da escravidão e os castigos a que muitos povos foram e são submetidos. É a fala de quem vive e luta.

Ao ler os primeiros capítulos, lembrei-me de uma passagem marcante de nossas vidas: em 1997, um grupo de pessoas — entre elas Rommel, Zilton, Rosana, Cristina, Sueli, eu, Bispo, Rosalina, Osvaldina, Seu Adrelino, Vanusa, Manuel Marinho, Ruimar Batista, Leosmar, Sabino — dentre poucas outras, discutíamos a necessidade de organização do movimento quilombola no Piauí — então muito incipiente — debatendo questões de preconceito, opressão materializadas em assassinatos, açoites, destratos, falta de terra e daquelas políticas necessárias às pessoas.

Bispo avaliou que deveria sair do movimento sindical (FETAG/PI) e dedicar-se integralmente à luta do povo negro. O intrigante é que ele fazia esse debate dentro da igreja católica central da cidade de São João do Piauí — que, à época, tinha como padre uma figura que já ocupou cargos públicos (secretário de Educação, deputado etc.) e se achava dono de tudo e de todos, principalmente do que deveria acontecer naquele espaço sagrado. Refiro-me ao padre Solon.

Lembro ainda quando o padre Solon interrompeu nossa reunião e tentou, de forma autoritária, emitir opinião contrária ao debate, justamente quando Bispo caracterizava o papel nefasto sempre desempenhado pela igreja. Não podia ser diferente: Bispo, mais uma vez, fez jus à luta de um povo contra seu opressor, confrontou de forma dura e direta o padre dizendo, em voz alta: “Eu sou o diabo.”

Bispo tinha razão. Para aquele padre — que representava as igrejas naquele momento — e para tantos outros, os negros e as negras, os povos que aqui vivem e resistem, são o diabo. Aquele dia marcou profundamente todas e todos nós. Caracterizo-o como um marco em nossa luta.

Associar o escravismo ao cristianismo não é novidade alguma. Afinal, como diz Marx:

As ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante dessa mesma época.

O que Bispo propõe é olharmos a história a partir das particularidades e da diversidade de seu povo e de sua raça, ver a realidade a partir das matrizes culturais — independentemente de virem da África ou de cá —, pois ambos foram escravizados e colonizados.


Na outra ponta, ele apresenta a matriz do povo europeu branco sob o bastão da igreja e suas leis, colonizando em nome de Deus e de seus interesses.

Cupim que vai pra festa de mambira, não volta.”

Aprendi com Bispo que, nessa história, somos cupins; portanto, precisamos montar nossas estratégias e definir nossas armas. Este livro é uma delas.

Como cupins fazem parte da natureza, compartilho ideias construídas a respeito do trabalho — tão caro aos cristãos e às sociedades capitalistas (sociedades do “trabalho”).

Concordo inteiramente com o que está exposto. E, não obstante, quero acrescentar ao debate outra forma de olhar a teoria marxista do trabalho — não que esse olhar não exista, apenas é pouco explorado por seus estudiosos ou seguidores. Se não me faltam razões, vejamos: para Marx, o trabalho existe para suprir as necessidades, tendo como função proporcionar gozo e prazer às pessoas.

Infelizmente, em muitas sociedades, o trabalho foi apropriado e mercantilizado, tornando-se muitas vezes castigo, não cumprindo seu papel de inter-relação com a natureza e as divindades.

Bispo introduz questões novas no debate, entre as quais a de situar a luta do Caldeirão do Beato Frei Lourenço à luta do povo quilombola, retirando o caráter messiânico atribuído por historiadores e antropólogos que estudam a região. Ele nos faz pensar que não apenas Caldeirão, mas também Canudos, Pau de Colher e tantos outros são estudados apenas como resistências messiânicas, negando características de classe, gênero, raça e etnia.

Ele apresenta outra forma de conceituar quilombos — presente na cultura da farinhada, das pescarias, das danças de roda, da capoeira, entre tantas outras Brasil afora. Mostra que o quilombo — à semelhança dos quilombos fixos — é plural, e somos nós que o construímos dia após dia com nossas resistências.

Bispo encerra sua obra com fortes provocações, especialmente ao movimento sindical, do qual já fez parte. Ele questiona a luta de classes e afirma que patrões e empregados utilizam a mesma matriz para continuarem existindo. Questiona os teóricos do movimento e conclui dizendo que sua forma de interpretar o mundo (quilombo) não substitui outras formas; o fato de ser “99” ou “66” depende de quem e de que lugar se olha.

Tenho algumas discordâncias com o que Bispo diz e defende, porém, de uma coisa estou certo: estou dialogando com quem constrói, na prática, aquilo que muitos conhecem apenas no discurso. Estou dialogando com um GUERREIRO.

Quero terminar este prefácio com o último parágrafo deste livro:

Quem sabe, ao invés de identificar e punir os culpados, encontraremos meios de solucionar muitos dos problemas que assolam as sociedades e assim, como nos quilombos, viveremos a unidade na diversidade, considerando que os quilombos não são alternativas a nenhuma das outras organizações sociais nem pretendem a elas serem comparados. Quilombo é apenas uma filosofia de vida capaz de conviver com as demais.

Bom debate para todas e todos nós.

Que este livro cumpra seu papel histórico.

Antônio Gomes Barbosa


A construção social do Nordeste (2013)

Antônio Barbosa 

Centro Sabiá - Barbosa, combate à seca ou convivência com o Semiárido? 

Antônio Barbosa - Convivência com o Semiárido com certeza. Primeiro porque seca não se combate, essa é uma discussão já antiga e conviver com a região é a grande saída. A seca é milenar, desde que existe a história do Nordeste, pelo menos quando vai mudando o planeta, você tem seca. E seca você não tem só no Brasil, você tem em vários outros lugares do mundo, inclusive nos Estados Unidos (que este ano vive uma das maiores secas dos últimos 40 anos), na Austrália, na Ásia, na África e também no Brasil. Seca é um fenômeno natural, então, se é da natureza é comum, é aceitável, convive-se com ela, previne-se. Seca deve ser associada, sobretudo, à ideia de convivência com o Semiárido, porque conviver é estocar. E estocar principalmente água e alimentos para os períodos de estiagem. 

Centro Sabiá - A gente tem vivido um momento em que se é colocado que é a maior seca dos últimos 30 ou 40 anos e, por isso, temos visto um movimento dos governos federais e estaduais de ações emergentes para esse período. Essas ações emergenciais e as ações que poderiam minimizar esse efeito não são ações que têm sido tardias? Porque se a seca é um fenômeno natural, temos que conviver com ela. O que você observa sobre isso? 

Antônio Barbosa - Queria dividir essa discussão em duas partes. Primeiro, dizer que as grandes secas têm ciclos em torno de 30 anos. Existem outras, que vou chamar de médias secas, mas que não são tão comuns; e têm secas, mais frequentes. No geral, temos na média, secas que acontecem a cada seis anos. Estudos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) dão conta, a partir de monitoramentos e/ou de relatos de historiadores e pesquisadores que estudam o Nordeste, sobretudo às secas, de quando os portugueses chegaram ao Brasil, no ano de 1500, até os dias atuais, da existência de 72 secas, um número considerável. Dessas, 40 foram anuais, ou seja, aconteceram em um ano, e pelo menos 32 foram plurianuais, ou seja, aconteceram para além de um ano. Essa que nós estamos vivendo em 2012 é plurianual. Começou de forma mais forte no Ceará ainda no ano de 2010. Ela se expande agora para muitos estados, mas é uma seca que não começa em 2012 e tende ir até o final do próximo ano.  Então essa é uma das maiores secas dos últimos 30, 40 ou 50 anos, ou em alguns casos, dos últimos 60 anos. Essa é uma situação preocupante. No caminho das secas, igual a essa, a gente teve uma em 1982; igualmente tivemos em 1932; outra grande seca em 1915. Vale destacar que esta seca está diretamente associada à criação do Nordeste enquanto espaço. 

O Nordeste, tal como conhecemos hoje, é bem recente. O Imaginário de Nordeste, enquanto lugar seco, de péssimas e frágeis condições, de terra rachada, de vaca morta, de criança doente; essa imagem é midiática, foi construída pela mídia e tem uma data para isso. No final do império, tivemos uma grande seca que aconteceu entre 1877 e 1878, e um jornal do Rio de Janeiro, chamado O Besouro, publicou imagens sobre a seca no Ceará. Essas imagens são, inclusive, um marco no fotojornalismo brasileiro e nelas aparecem crianças distorcidas e pessoas totalmente sub-humanas. Então, a partir dessa seca do final do século XIX, construiu-se a ideia de Nordeste enquanto espaço administrativo e simbólico. Até então, nós ainda éramos Norte, não existia Nordeste, que passa a existir apenas no começo do século XX, para identificar uma região que é seca. Então, o que devemos observar é que a região Nordeste surgiu a partir da seca. Esse espaço (Nordeste) surgiu para determinar a área de atuação da Inspetoria (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas - IFOCS) que hoje é o DNOCS. Nós tivemos durante todo esse período, ou seja, da seca de 18771878 até os dias atuais, uma situação de criação do Nordeste em função das situações de seca. 

Anterior a essa seca, em 1845, tivemos outra logo no início do governo de Dom Pedro II, consideramos que nesta seca se inaugurou a Indústria da Seca. As condições para a Indústria da Seca surgem no Brasil a partir da criação, pelo governo de Dom Pedro I, da ideia de uma ajuda para os períodos de calamidades, prevista na primeira Constituição. Porém, é o governo de Dom Pedro II que executa essa lógica de ajuda, de dinheiro pros fazendeiros. A ideia é construir açudes. A ação de Dom Pedro I foi em razão de outra grande seca que aconteceu logo após a chegada da família real ao Brasil. A família real chega em 1808, e em 1816 nós tivemos uma grande seca, dessas que são em ciclo de 30 anos. Essa seca (de 1816) dialoga, inclusive, com a história de Pernambuco, porque se acredita que ela aconteceu nesse período, no Nordeste, e foi um dos elementos que contribuiu, inclusive, pra a Revolução Pernambucana. Ou seja, o povo passava tanta fome que aderiu às ideias da Revolução. Então os registros são os mais variáveis possíveis. A primeira seca que se tem registro é de 1559, então, se os portugueses chegaram aqui em 1500 e 59 anos depois, na região da Bahia, já existe registro de um padre sobre a seca, essa é uma questão que se repete. 

Isso tudo é para dizer que a seca se repete, ela tem prazos, se a gente for levar em conta o registro que aconteceu em 1559 até o momento, são 72 secas. Então temos uma média de seis anos de duração de cada seca e o Brasil se preveniu pouco para lidar com essa realidade. Preveniu-se pouco porque tinha uma opção clara de beneficiar os fazendeiros, os políticos locais, os coronéis, beneficiar a lógica da Indústria da Seca; essa é uma situação. Dizer que essa seca, que estamos passando agora em 2012, é igual às secas passadas, é verdade. Dizer que o Estado brasileiro está nas mesmas condições do passado não é verdade, porque o próprio Estado brasileiro foi pressionado pela sociedade. Por isso a seca de 1982 foi um marco no sentido da participação da sociedade civil nessa caminhada e o início do diálogo da Convivência com o Semiárido, pois as ações partem dessa seca de 1982, que foi a última grande seca. Porque é a partir dela, inclusive, que os bancos de sementes que a gente conhece - então sementes da paixão, sementes da resistência, casas 19 de sementes - são oriundos da sociedade civil, coordenados  pela CNBB, sobretudo no Nordeste, desenvolvendo atividades de estoque de semente, ou seja, a ideia do estoque surge de forma forte e permanece até hoje. A partir do período da seca de 1993, que é uma seca intermediária, uma seca média, mas com grandes efeitos, houve a ocupação da Sudene, quando o movimento sindical teve um peso e participação significativos. Durante essa ocupação, começaram a construir uma carta dizendo que não queriam mais isso, “nós queremos estocar água pras pessoas”, acho que, de lá pra cá, houve certa caminhada. 

Se fosse pra dizer - por que às vezes é fácil - não à seca e sim à convivência com o Semiárido, porque a seca está associada à lógica da Indústria da Seca, de grandes dinheiros, que significa também dizer grandes obras, caras e distantes. Vale a pena frisar que a Convivência com o Semiárido está associada a pequenas obras, baratas e perto das pessoas. Porque as saídas são próximas, são locais. A sociedade civil ajudou o próprio Estado brasileiro a refletir sobre isso e hoje, obviamente, temos um conjunto de outras ações que são importantes. Está longe de resolver a situação; quando se tem uma grande seca você vê normalmente a perda de todos os animais, você olha para o estado de Pernambuco, por exemplo, e para as grandes feiras que a gente tem e que comercializavam cerca de 600 animais por semana, agora estão comercializando 6 mil animais. As lavouras são perdidas, os agricultores perdem suas sementes, você começa a ter problemas pra alimentar a sua própria família, daí você cria uma lógica, um imaginário do Nordeste que é a história do retirante, ou seja, há pessoas que migram de um lugar para outro; então quando você não tem o que comer, quando não tem o que beber, as pessoas começam a morrer, as pessoas começam a migrar. 

Existe uma caminhada significativa e as organizações da ASA têm uma trajetória imprescindível sobre isso, pois pressionaram o Estado brasileiro a fazer algo diferente. Então, quando hoje você tem no governo da Presidenta Dilma um programa chamado Água Para Todos, que privilegia a construção de cisternas, embora com um conjunto de erros como as cisternas de plástico, é característico, e isso é algo importante. Mas em momentos como esse, de seca, há a volta de um discurso errado, para além das nossas ações que ajudam as famílias a construírem alternativas, pois também voltam outros discursos muito forte como a Transposição do Rio São Francisco e as grandes açudagens. 

A Convivência é uma ideia, um paradigma, mas não é hegemônico. A ideia do combate à seca ainda é hegemônico, mas eu acho que a gente já caminhou consideravelmente e o Estado brasileiro tem dado passos importantes, inclusive com algumas ações, como o Bolsa Família. Pode parecer estranho, mas essa ação ajuda as pessoas, nesse período, a se alimentarem, e possibilita um conjunto de outras iniciativas paliativas; elas poderiam ser melhoradas. Ou seja, o governo foi pego de surpresa, quando na verdade ele já sabia que essa seca também existiria. 

Centro Sabiá - Que relações políticas são construídas nessa história do combate à seca ou dessa vivência que a gente tem feito parte agora? 

Antônio Barbosa – Primeiro, dizer que é um retrocesso você ouvir de um ministro, ouvir da presidenta, de um parlamentar, de um governador, de qualquer autoridade a ideia de Combate à Seca. É uma incoerência, porque seca não se combate. Mas essa fala não é desprovida de sentido. Quando se fala em combater a seca, sabe-se do que se está falando; quem está falando isso tem consciência do que diz. Está falando em carro pipa; está falando em grandes açudes; está falando em transferir recursos para um conjunto de políticos que eternamente se beneficiaram, que antigamente eram os coronéis, hoje é o agronegócio, o hidronegócio; está falando em perdoar créditos em relação a bancos para grandes e médios produtores, inclusive, para a área de irrigação; está falando em criar o que os municípios fazem, que são os estados de emergência, ou seja, com o decreto do estado de emergência não se precisa mais fazer licitação, não é preciso pedir nenhuma permissão ao legislativo, em outras palavras, entra-se numa situação que vale tudo, e em um ano eleitoral. Essa é uma situação complicada.  Falar em Combate à Seca é complicado, mas é uma fala que - diferente de anos passados, das secas passadas - dói no ouvido. 

Os agricultores também já estão cansados, porque sabem que seca não se combate, então tem alguma coisa errada aí, a gente precisa avançar num conjunto de outras ações que não são de combate à seca. A sociedade civil precisa fazer o debate político, o debate teórico, o debate de dizer que seca não se combate, seca se convive, que as alternativas que a gente quer são outras. Imagine que quem está nos ouvindo tem uma cisterna calçadão, uma barragem subterrânea, um tanque de pedra, que está dizendo “poxa, como a minha vida tá diferente ou como a vida do vizinho tá diferente”. Totalmente diferente de quem mora mesmo do lado do Rio São Francisco e não tem água. Essas situações são de convivência com o Semiárido e nós precisamos cobrar do Estado brasileiro, precisamos usar a rede que construímos de controle social; então as comissões municipais, os sindicatos, as cooperativas, as Igrejas, todas essas instâncias precisam cobrar. Primeiro porque água é direito. Se o governo não se preveniu, ele precisa ter políticas emergenciais, então se você não teve políticas estruturantes, políticas emergenciais são necessárias. 

Quem tem sede tem pressa, quem tem fome tem pressa, então você precisa garantir uma quantidade de carros pipas abastecendo as cisternas, abastecendo as famílias.  É imperioso garantir, inclusive, distribuição de sementes, para as pessoas guardarem as suas sementes e poder usar outras para se alimentar. É necessário construir estratégias de manutenção dos animais ou, pelo menos, de garantir o reprodutor, de garantir suas matrizes.  Que as famílias não se desfaçam dos seus rebanhos, mas, para isso elas vão precisar de alimentos para os seus animais. É importante também, ter uma lógica de controle da qualidade da água que vai ser distribuída. Então, tem um conjunto de ações emergenciais que são importantes, que a gente precisa cobrar e o governo precisa colocar e tem colocado de uma determinada forma. Existe muito dinheiro para isso, esse é que é o problema - como fazer para que esse dinheiro chegue às pessoas? Que esse orçamento vai sair do governo federal vai; se vai chegar às pessoas isso depende muito da nossa cobrança, de nossa capacidade de denunciar. A ASA, inclusive, vai apresentar uma proposta ao TSE e aos TREs do Nordeste, no sentido de construir uma campanha nesse período eleitoral, de dizer que a água é um direito. Se alguém está lhe cobrando voto porque está lhe dando água, denuncie! Água é direito de todo mundo, garanta seu direito, garanta a convivência. Vender o voto está associado à Indústria da Seca e a Cidadania está associada à Convivência com o Semiárido. 

Esse é um caminho que a gente precisa construir. Falta muita coisa e, infelizmente, muita gente está sofrendo, muita gente vai morrer; isso é uma realidade. Ou por falta de água ou por ingestão de água contaminada, por isso é necessário fazer um controle considerável em relação à distribuição de água. Precisamos cobrar para que nas próximas secas a gente não sofra como está sofrendo agora. Possivelmente, em torno de 2040, nós vamos ter outra grande seca como essa e a gente espera que as pessoas não tenham que viver mais como estão vivendo agora. 

Centro Sabiá - Você citou que outras ações estão sendo construídas, em contraponto, às ações emergenciais, que não garantem uma convivência com o Semiárido. Que ações a sociedade civil tem construído no Semiárido junto com as famílias e por que elas são de fato estruturantes, ao contrário das ações emergenciais que estão sendo colocadas pelo governo nesse momento? 

Antônio Barbosa - A saída para cada família precisa ser individualizada. Então, para cada família, para cada pessoa, é necessário se garantir água e alimento. Muitas vezes o que o governo brasileiro faz é trabalhar com estatística ou com média. Se há três crianças, então são três pães. A criança que tem mais  dinheiro come dois pães, a que tem mais ou menos como um pão e a que não tem dinheiro não come nenhum. Para a estatística, na média, cada criança comeu um pão, mas na verdade, só teremos duas crianças alimentadas, a terceira terá a morte como única saída. A solução precisa ser por família, tem que chegar a todas as pessoas. Eu falo isso porque essa é uma das questões que a ASA tem levantado; ou seja, cada família no Semiárido que não tem água pra beber, que não tem água pra produzir, que não tem sementes, que não tem terra para produzir, que não tem os meios, ela tem que ser atendida. A nossa ação é chegar a essas famílias. A ideia do Programa Um Milhão de Cisternas é para que todas as famílias tenham água. Quando se constrói o P1+2, que é o Programa Uma Terra e Duas Águas, é para que todas as famílias possam ter água para produzir, pra que todas as famílias possam estocar suas sementes, que tenham sua autonomia o que, obviamente, gera um conjunto de outras coisas. Ela lhe permite ficar livre do mercado, ela lhe permite plantar o que você quer, ela lhe permite construir o seu patrimônio, a identidade genética dos seus pais e passar isso para os seus filhos. A ideia da ASA é investir no sentido de se montar uma infraestrutura no meio rural do Semiárido. Nós não somos só o Semiárido Rural mais povoado do mundo, somos, no Brasil, a região mais povoada no meio rural. O Semiárido tem muito mais gente do que tem o Cerrado, do que tem a região Amazônica, do que tem a Mata Atlântica, do que tem a região dos Pampas. Nós somos a região rural mais habitada. Então, é preciso olhar pra esse povo com ações nessa perspectiva, ações que estão associadas a um benefício, mas estão principalmente associadas a um direito. 

Nós temos problemas seríssimos com a questão da terra, a estrutura fundiária no Semiárido, sobretudo. Pautar essa discussão, fazer isso, é resolver essa situação. O Brasil e o Semiárido serão felizes quando cada família tiver sua água para beber, sua água para produzir, tiver sua semente pra guardar, tiver seus animais para criar, tiver uma educação voltada para essa região, que leve em consideração as suas questões do dia a dia, tendo em vista o que é específico de cada região. São essas ações que a gente acredita que sejam estruturantes, podem parecer pequenas, mas são as pequenas coisas que juntas formam grandes coisas. Nós não somos contrários a outras ações, acho que é importante dizer isso. Somos a favor de ampliar a infraestrutura hídrica, precisamos ampliar a oferta hídrica no Semiárido e isso significa criar estruturas hídricas que levem em consideração a própria região. Se temos uma região com grande incidência de raios solares, com uma grande capacidade de evaporação, temos que guardar água em reservatório fechado, então as cisternas e barragens subterrâneas têm um peso considerável nisso, porque terão em conta as características da própria região. É preciso avançar nessa perspectiva. Garantir água, mas garantir um conjunto de outras coisas como estrada, fazer com que as pessoas guardem suas sementes e possam comercializar, mas hoje nós temos ações que são importantes. Acho que o PAA e o PNAE são ações substantivas e é preciso cobrar do governo brasileiro, sobretudo, que suspenda a lógica das cisternas de plástico, que construa cisternas de placas, porque elas empregam as pessoas. Elas fazem com que o dinheiro circule, e o dinheiro circulando significa dizer água, alimento, educação, enfim, um conjunto de outros fatores como cidadania, vida diferente e, sobretudo, convivência com o Semiárido. Por isso acho que são essas ações que a gente precisa caminhar, pra construir um Brasil e um Semiárido melhores e felizes. 

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Vozes da convivência com o semiárido. / organizadora:Wedna Galindo; entrevistas: Catarina de Angola, Daniel Lamir, Laudenice Oliveira, Nathália D’Emery; colaboração: Sara Brito. Recife : Centro Sabiá, 2013..                                                                                                                                               

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