domingo, 15 de junho de 2025

Encontros e desencontros da extensão rural brasileira na construção coletiva de conhecimentos e saberes (2009)


 
Antonio Gomes Barbosa

1. Introdução

Qualquer reflexão sobre as atuais propostas de extensão rural com o intuito de contribuir para a construção de alternativas de desenvolvimento sustentável para o campo deveria procurar fazê-la em pelo menos três aspectos: partir das muitas experiências já vivenciadas pela extensão rural (oficial e não oficial); procurar entender quais eram os objetivos e as estratégias montadas para a consolidação da proposta e ter como certo que a extensão rural enquanto direito inalienável da agricultura familiar¹ ainda é uma realidade distante e precisa ser perseguida e consolidada.

Este artigo propõe ao leitor um passeio analítico nas trajetórias, olhares e opções metodológicas de organizações que fazem a extensão rural no Brasil, focando de forma especial a ação de algumas organizações não-governamentais que atuam no meio rural brasileiro. Para tanto, priorizar-se-á o surgimento da extensão rural no Brasil para ajudar no entendimento das estratégias construídas pelo Estado para o meio rural. No caminho da extensão rural vivenciada pelas organizações não-governamentais, observa-se a mudança na percepção dos papéis assumidos pelos agricultores e as muitas metodologias testadas no campo. Propõe-se que a extensão rural seja discutida a partir da observação, do diálogo e da compreensão do que é a agricultura familiar. Neste esforço, acredita-se necessário aprender com a própria agricultura familiar, compreender suas dinâmicas, processos de diálogo, trocas e complementaridades, estabelecendo uma lógica sistêmica característica da produção familiar.

Surgidas no seio da esquerda pós-anistia, com forte influência das Comunidades Eclesiásticas de Base (CEB) e marxista, muitas ONGs percebiam os trabalhadores como classe social, sujeitos coletivos capazes de fazer transformações profundas na sociedade, supervalorizando e priorizando a dimensão político-sindical. Quando esta percepção era transposta para o meio rural, invisibilizava os agricultores (trabalhadores rurais) como produtores e consumidores de alimentos e hábitos culturais. Sujeitos que se relacionam diretamente com a natureza.

Não podendo ignorar por muito tempo a realidade vivenciada pelos agricultores, sobretudo os que vivem no semiárido, muitas organizações foram percebendo que os agricultores, para além das questões sindicais, necessitavam de acompanhamento técnico-produtivo. Isso possibilitou uma pequena releitura do meio rural. Da condição de assessoria aos grupos sindicais, muitas entidades, de alguma forma, começaram a valorizar e a dialogar com o acompanhamento técnico às famílias agricultoras, iniciando uma nova trajetória na extensão rural brasileira.

Nesta caminhada foi se percebendo que as ações de organização e produção, materializadas nos mutirões, Associações Comunitárias de Produção e Consumo (ACPC), bancos comunitários de sementes, beneficiamento e comercialização, dentre outras formas que demandam cada vez mais uma assessoria especializada.

Durante os processos de desenvolvimento das estratégias e metodologias de acompanhamento aos agricultores e suas organizações, a experiência da Rede de Tecnologias Alternativas (Rede PTA) conseguiu influenciar muitas entidades para além da rede, que passaram a ter na agroecologia uma proposta de desenvolvimento para o campo. Como metodologia adotada, a difusão de tecnologias consideradas de baixo impacto, testadas em Unidades de Transferência Tecnológica (UTTs), ensinadas pelos técnicos e replicadas pelos agricultores experimentadores e/ou multiplicadores. A crítica ao modelo convencional não trouxe junto consigo o debate sobre a forma de construção de conhecimentos e saberes.

Construir a nova extensão rural significa refazer o debate sobre a produção do conhecimento. Para tanto, propõe-se como método partir de um estudo sobre os processos da agricultura familiar, reforçando a importância e eficácia dos intercâmbios e as sistematizações de experiências, processos de diálogo e observação das peculiaridades que apresentam as instituições de Ater no país, tendo como tarefa compreender a agroecologia como proposta de desenvolvimento sustentável, partindo da análise dos sistemas produtivos e de suas inter-relações, trabalhando a transição agroecológica como processo potencializado pelas experiências de convivência com os ecossistemas no fortalecimento de uma rede que tenha no centro de seu funcionamento os agricultores. Esta rede deve ser potencializada pela influência mútua entre agricultores, extensionistas e pesquisadores, possibilitando trocas e sistematização de experiências na construção coletiva de conhecimento e saberes.

2. O estado da arte da extensão rural no Brasil

2.1. A extensão do conhecimento “legitimado”

O conhecimento “legitimado”, sistematizado, imposto e institucionalizado sempre se constituiu como ferramenta importante na dominação de classe. É o conhecimento que estabelece o nível de interação na relação sociedade e natureza, determinando as formas “legítimas” de comportamento, práticas, formas e utilizações dos recursos naturais. Nessa perspectiva, a extensão rural e a agricultura são formas mais antigas de intervenção humana na natureza, ela é uma das principais responsáveis por uma das mudanças mais significativas na trajetória do comportamento humano: sair da condição de nômade para tornar-se sedentário. Esta nova forma de organização possibilitou a construção de novas relações sociais, acumulação de bens e conhecimentos e a formação do Estado. Ou seja, podemos afirmar, sem dúvida alguma, que a agricultura possibilitou a existência humana nos moldes atuais.

A chamada “agricultura moderna”, forma de produção agrícola convencional sustentada na “racionalidade” tecnológica moderna, tem sua origem ligada às descobertas do século XIX, no marco dos estudos conduzidos pelos cientistas Saussure (1797-1845), Boussingault (1802-1887) e Liebig (1803-1873), que, com seus experimentos, derrubaram a teoria do húmus, segundo a qual as plantas obtinham seu carbono a partir da matéria orgânica do solo. Liebig difundiu a tese de que o aumento da produção agrícola seria diretamente proporcional à quantidade de substâncias químicas incorporadas ao solo. Toda a credibilidade atribuída às descobertas de Liebig deu-se ao fato de estarem apoiadas em comprovações científicas, sendo considerado o maior precursor da “agroquímica”. As descobertas de todos esses cientistas marcam o fim de um longo período, da Antiguidade até o século XIX, no qual o conhecimento agronômico era essencialmente empírico. A nova fase será caracterizada por um período de rápidos progressos científicos e tecnológicos.

Após a Segunda Guerra Mundial, a “agricultura moderna” passou a ter como principal corrente a chamada “revolução verde”. Esta foi difundida rapidamente, apoiada por órgãos governamentais, universidades, centros de pesquisa agropecuária e pelas empresas produtoras de insumos (sementes híbridas, fertilizantes sintéticos e agrotóxicos), além, é claro, do incentivo de organizações mundiais como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a United States Agency for International Development (USAID – Agência Norte Americana para o Desenvolvimento Internacional), a Agência das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), dentre outras.

Para Weid (1997), no marco da “revolução verde”, que implica o uso de insumos industriais, variedades melhoradas e híbridas e a motomecanização, gerou-se uma consequente especialização da produção em monoculturas, homogeneizando as propriedades e regiões em função de produtos que tivessem vantagens competitivas no mercado e a perda dos vínculos com as lógicas locais voltadas para a reprodução das condições sociais e ambientais que favorecem a sustentabilidade nos agroecossistemas. As contradições geradas pelo modelo social inicialmente eram escancaradamente “dirigistas” e “enquadradas”.

A partir da década de 1980 o modelo agroindustrial começa a dar sinais de exaustão: desflorestamento, diminuição da biodiversidade, erosão e perda da fertilidade dos solos, contaminação da água, dos animais silvestres e dos agricultores por agrotóxicos e maior resistência de pragas e doenças passaram a ser decorrências quase inerentes à produção agrícola. A “revolução verde” provocou ainda mais a concentração das terras nas mãos de poucos e, por consequência, o êxodo de famílias inteiras para os grandes centros, além da perda de traços culturais no plantio, na criação e nas relações sociais.

2.2. Gênese da extensão rural no Brasil: uma investida para a desconstrução de saberes locais

No Brasil, os serviços oficiais de assistência técnica e extensão rural (Ater) foram iniciados na década de 50, durante o pós-guerra. Para Fonseca (1985), a gênese deste processo inicia-se no ano de 1948, quando foram realizados conversações e convênios entre o Brasil e os Estados Unidos, culminando na implantação do Programa Piloto de Santa Rita do Passa Quatro, no Estado de São Paulo, e na fundação da Associação de Crédito e Assistência Rural de Minas Gerais (ACAR-MG). Este processo foi conduzido pelo mensageiro especial da missão norte-americana, o sr. Nelson Rockefeller.

No discurso a extensão rural seria dirigida para a agricultura como um todo, a proposta de desenvolvimento – incluindo os créditos e a extensão rural – foi direcionada para os produtores médios e grandes, enquanto a agricultura familiar se mantinha marginalizada. No caminho contrário, a proposta de extensão rural desconsiderava qualquer outra forma de conhecimento que não a produzida nas universidades e centros de pesquisa, criando um abismo entre o técnico e o tradicional. Para a extensão rural, o saber dos agricultores era tido como atrasado e deveria ser combatido.

Inicialmente, a Ater foi implantada como um serviço privado ou paraestatal, com o apoio de entidades públicas e privadas. A partir de 1956, o presidente Juscelino Kubitschek criou a Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural (ABCAR), constituindo um sistema nacional articulado com a Associação de Crédito e Assistência Rural nos estados.

Em meados da década de 1970, o governo do presidente Ernesto Geisel criou o Sistema Brasileiro de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater) e executado nos estados pelas Empresas de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater).

A partir de 1990, sob uma nova orientação para o desenvolvimento nacional (política do “Estado mínimo”), o governo do presidente Fernando Collor de Melo extinguiu a Embrater, desativando o Sibrater, abandonando claramente alguns dos esforços antes realizados para a existência de serviços de Ater no país. Neste quadro de semiabandono, seria difícil a extensão rural apostar na agricultura familiar como setor importante da economia na produção de alimentos, uma vez que nem o Estado estava disposto a tal opção.

Os programas de ajuste estrutural, como a desobrigação do Estado de algumas políticas públicas e a abertura das economias aos fluxos do mercado internacional, impactaram de forma direta o sentido de desestruturação da agricultura familiar. Ao contrário dos setores mais favorecidos, esta se ressentiu mais rápido da crise ambiental provocada pela própria aplicação do modelo da “revolução verde”. Um dos principais efeitos disso foi a exacerbação de processos de concentração das melhores terras nas mãos de poucos, empurrando a agricultura familiar para áreas marginalizadas, em ecossistemas mais frágeis e com mínimas disponibilidades de terra. Este processo acirrou ainda mais o êxodo rural, provocando inchaço nos grandes centros, fome, miséria e violência.

Weid (1997), analisando os processos dos desequilíbrios ambientais e o agravamento da pobreza rural, destaca duas linhas no campo das instituições internacionais voltadas para a cooperação, o desenvolvimento e o financiamento. A linha dura do Banco Mundial, que insiste na política de globalização e desmonte dos Estados nacionais, admitindo uma transição dolorosa para um melhor dos mundos num futuro não definido, e a linha de outras instituições como FAO e PNUD, num esforço de tentar conciliar os princípios hegemônicos do neoliberalismo com a compreensão de que será preciso adotar políticas compensatórias para garantir a sobrevivência de uma agricultura familiar cuja desapropriação só faria engrossar as crises urbanas nos centros e até mesmo nos do norte. Nestas últimas começou-se também a se questionar a adaptabilidade do modelo da “revolução verde” para a agricultura familiar e a necessidade de buscar aumentos de produtividade reconhecendo a base social, ecológica, cultural e econômica.

Este conceito de “tecnologia apropriada” operou como um instrumento criticado, tanto pelos neoliberais como pelos marxistas, como sendo uma tecnologia subdesenvolvida. Mas antes de ser resolvido, o próprio conceito exemplifica esta definição ao aplicar o critério de temporalidade e durabilidade, associando tecnologia apropriada ao uso de recursos naturais e com vistas à sustentabilidade do modelo de desenvolvimento. Este novo conceito motomecanizado/biotecnológico, possibilitou seu questionamento, pois trouxe à atenção para o tempo limitado de uso de recursos não renováveis e a necessidade de uma agricultura que preserve os recursos naturais e o meio ambiente. Este conceito não golpeia apenas a adaptabilidade do modelo da “revolução verde” para a agricultura familiar, mas a própria sustentabilidade do modelo.

2.3. Na contestação do modelo agrodesenvolvimentista, o surgimento da agricultura alternativa

Foi justamente o agravamento dos efeitos catastróficos provocados pelo “progresso” da “agricultura moderna” sobre a natureza, gerando desastres e desequilíbrios ambientais e sociais, que impulsionou o surgimento de um movimento mais organizado de resistência ao padrão dominante de produção agrícola.

 

No início dos anos 70, esse movimento de oposição ao padrão produtivista agrícola convencional concentrava-se em torno de um amplo conjunto de propostas, denominadas “alternativas”, que ficou conhecido como agricultura alternativa. É quando se intensificam de fato os debates sobre sustentabilidade. A introdução do termo sustentabilidade na agricultura é reclamada pelo Movimento de Agricultura Orgânica e pela IFOAM³. Em 1977, realizou-se, na Suíça, a Primeira Conferência Científica da IFOAM, que recebeu o nome de “Rumo a uma agricultura sustentável”, segundo relata Bernward Geier, “o que mostra que a preocupação com a qualidade da produção agrícola remonta a quase trinta anos.

No Brasil, pesquisadores como Adilson Paschoal, Ana Maria Primavesi, Luis Carlos Machado, José Lutzenberger, dentre outros, contribuíram para contestar o modelo vigente e despertar para novos métodos de se praticar a agricultura. Em 1976, Lutzenberger lançou o Manifesto ecológico brasileiro: fim do futuro?, que propunha uma agricultura mais ecológica, influenciando profissionais, pesquisadores das ciências agrárias, produtores e a opinião pública em geral.

Em 1979, Adilson Paschoal, em sua obra Pragas, praguicidas e crise ambiental, faz um alerta para os altos patamares de consumo de agrotóxicos provoca o aumento no número de “pragas” nas lavouras, por eliminar também grande número de inimigos naturais. Esses trabalhos, dentre outros, despertaram o interesse da opinião pública pela questão ambiental, crescendo também o interesse pelas propostas ditas alternativas para a agricultura brasileira.

A partir da década de 1980, o movimento para uma agricultura alternativa ganhou força com a realização de três Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa (EBAA), ocorridos, respectivamente, nos anos de 1981, 1984 e 1987. Nos dois primeiros, as críticas se concentravam nos aspectos tecnológicos e na degradação ambiental provocada pelo modelo agrícola trazido pela “revolução verde”; já no terceiro, privilegiou-se o debate sobre as condições sociais da produção, sobrepondo-se as questões políticas sobre as questões ecológicas e técnicas.

Foi também na década de 1980 que surgiram várias organizações não-governamentais voltadas para a agricultura, a exemplo da rede PTA (Projeto Tecnologias Alternativas), de iniciativa da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase). A denominação “tecnologias alternativas” foi usada nesse período para designar as várias experiências de contestação à agricultura convencional.

O interesse da opinião pública pelas questões ambientais e a adesão de alguns pesquisadores à agricultura alternativa, sobretudo em função das adversidades dos métodos convencionais, tiveram desdobramentos importantes no âmbito da ciência e da tecnologia, como, por exemplo, a busca de fundamentação científica para suas propostas técnicas e os aspectos socioculturais da produção agrícola.

Em 1992, com a Conferência Mundial da ECO92, no Rio de Janeiro, Brasil, consolida-se o conceito de sustentabilidade como manifestação de uma nova ordem mundial que expressa a vontade das nações de conciliar ou reconciliar o desenvolvimento econômico e o meio ambiente, em integrar a problemática ambiental ao campo da economia. Mais do que um conceito que orienta a emergência de princípios e valores, a sustentabilidade manifesta e imprime lugar a uma problemática de aspectos múltiplos (científico, político, ético), oriunda da emergência de problemas ambientais em escala planetária e principalmente de percepção sócio substantiva. Amparado nesse contexto de coevolução social e ecológica, diferentes movimentos crescem com o propósito de frear os efeitos maléficos da “revolução verde”. Assim, movimentos sociais se mobilizam em torno de ações que garantam o uso e a difusão de práticas alternativas de produção.

Infelizmente o método utilizado para a difusão dos novos conhecimentos e tecnologias copiou a fórmula positivista, já utilizada nas universidades e centros de pesquisa, de experimentação em pequenas áreas, valorização do conhecimento técnico e necessidade de mediadores para a difusão. Em campo, este método se materializou na implantação de Unidades Demonstrativas (UDS) e Unidades de Transferência Tecnológica (UTTs). Os mediadores, responsáveis por difundir esses conhecimentos, foram chamados de agricultores multiplicadores e/ou agricultores experimentadores. O conhecimento produzido nas ONGs, embora diferente da “revolução verde”, muitas vezes constituiu pacotes para os agricultores.

Atentos a essa realidade, algumas ONGs e pesquisadores organizados na Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), vêm refletindo sobre os processos metodológicos adotados em campo nos últimos anos. Essa reflexão possibilita uma análise mais elaborada das práticas, posturas e opções adotadas. Na tentativa de consolidar proposições mais sustentáveis de acompanhamento técnico, reforça-se a agroecologia como princípio. No entanto, é preciso estar atento para não se correr o risco de transformar a agroecologia em um novo pacote para a agricultura familiar.

Nesse sentido, a agroecologia deve ser compreendida como ciência. Forma de relação e produção que prima pelo aproveitamento e utilização sustentável dos recursos naturais disponíveis, pela autonomia dos agricultores e agricultoras em relação à independência de insumos externos, pelas relações justas (de produção e consumo) e harmoniosas entre homens, mulheres, sociedade e natureza, dentre outros.

No esforço de precisar o que é agroecologia, Caporal e Costabeber, referindo-se aos estudos de Guzmán e Molina, a definem como sendo:

[...] um campo de estudos que pretende o manejo ecológico dos recursos naturais, para, através de uma ação social coletiva de caráter participativo, de um enfoque holístico e de uma estratégia sistêmica, reconhecer o curso alterado da coevolução social e ecológica, mediante controle das forças produtivas que estagnam seletivamente as formas degradantes e espoliadoras da natureza e da sociedade. Em tal estratégia, a dimensão local é vista como portadora de um potencial endógeno, que, por meio da articulação de saber local e conhecimento científico, permite impulsionar ações de desenvolvimento rural sustentáveis, potencializadoras da biodiversidade ecológica e da diversidade sociocultural. (Caporal e Costabeber, 2001, p. 26)

Fortalecer sistemas agroecológicos dentro de uma economia globalizada e flexível implica a retomada do debate sobre políticas públicas amplas e diferenciadas, reforma agrária, créditos, infraestruturas sociais e produtivas, fortalecimento da agricultura familiar, soberania, autonomia e segurança alimentar e nutricional. Nesse sentido, é preciso uma mudança no paradigma da pesquisa e da extensão rural, principalmente, porque estas se encontram atreladas às alterações sociopolíticas de caráter estrutural. Esta não é uma tarefa pequena, deve ser uma opção política, sendo imprescindível o esforço de todos.

A reflexão sobre uma “nova extensão rural” requer, portanto, um esforço coletivo, pautado numa visão sistêmica de mundo, plural e multidimensional, primando pela diversidade e construções coletivas de saberes, sem substituir conhecimentos, mas conjugando-os.

3. Repensando a extensão rural

3.1. Extensão rural como direito inalienável da agricultura familiar

A constituição de uma proposta de desenvolvimento sustentável para o campo tem que ter como pressuposto básico o direito inalienável dos agricultores familiares de acesso às políticas públicas: terra, habitação, crédito, pesquisa, extensão rural, educação contextualizada, saúde, saneamento etc. Esta proposta deve partir das necessidades e características peculiares da agricultura familiar: policultura-pecuária-extrativismo, biodiversidade, ecossistemas, produção e reprodução, mão-de-obra de base familiar, vida comunitária, expressões religiosas, crenças, dentre tantas outras.

Petersen (1998) acredita que a nova extensão rural tem que ter como objetivo proporcionar um ambiente sociocultural favorável ao desenvolvimento e irradiação dos conhecimentos técnicos de manejo agroecológico. Para que isto se faça ambiente, faz-se necessário tanto intervir nas condições culturais e sociais históricas que limitam o avanço do conhecimento quanto nas condições materiais que limitam a autonomia do pensamento e abram possibilidades de inovação e evolução do domínio do conhecimento agroecológico.

Nesse processo, a extensão rural não representa apenas um papel na construção coletiva dos conhecimentos e saberes não como mera correia de transmissão de técnicas, mas reconhecendo-a como produtora de conhecimentos autônomos, que têm o mesmo grau de importância dos conhecimentos produzidos por pesquisadores da Embrapa e das universidades. Conhecimento tão importante quanto os construídos pelos agricultores nas comunidades. Este entendimento vai possibilitar a construção coletiva de conhecimentos e saberes, possibilitando a reorientação da prática extensionista, reconhecendo que não existe um conhecimento único.

Sendo a extensão rural uma política pública, tem que ser encarada como parte de um projeto de desenvolvimento. O primeiro passo a ser dado por quem quer fazer a extensão rural é perceber que a agricultura familiar não é apenas uma unidade de produção e consumo, mas sim um modo de viver e interpretar a realidade. Este debate e os impactos destas reflexões precisam estar direcionados para a construção de uma nova política de Ater. Como referência deste projeto, vem sendo travado um intenso debate na Rede de Assessoria Técnica e Extensão Rural do Nordeste (Rede Ater-NE), rede que congrega 13 ONGs de quatro estados do Nordeste: Pernambuco (Centro Sabiá, Caatinga, Diaconia e Asocone), Bahia (MOC, Apaeb, Ascoob e Sasop), Paraíba (AS-PTA e Patac), Ceará (Esplar e Cetra) e Piauí (CEPAC). Esta rede tem possibilitado a essas entidades a reflexão sobre suas práticas institucionais.

Integrando a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a Rede Ater-NE surgiu no processo de diálogo sobre a nova política nacional de Ater, coordenada no Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), pelo Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural (Dater). No debate sobre o significado simbólico e prático do que tem sido a assistência técnica e extensão rural no Brasil, o GT Ater da ANA sugeriu definir este espaço como sendo um lugar de construção coletiva de conhecimentos, mudando assim a lógica positivista da extensão rural. Na construção coletiva de conhecimentos e saberes, todos os envolvidos – agricultores, extensionistas, pesquisadores, instituições – exercem papéis singulares e essenciais. Esta conceituação coloca no debate uma nova concepção de inter-relação entre produção de pesquisa e extensão. Este processo, que vem dialogando com as políticas públicas, poderá contribuir substancialmente para a formatação de um novo modelo de extensão rural para o Brasil.

3.2. Da extensão rural à construção coletiva de conhecimentos e saberes

O positivismo, corrente de pensamento que mais influenciou as práticas nas sociedades modernas, faz com que a nossa visão das coisas seja quase sempre compartimentalizada. Não tendo visão do todo, tendemos a priorizar as partes, suas especificidades, daí a valorização das especialidades, dos problemas em detrimento dos processamentos. Se possível, compartimentalizam-se até os processos, no intuito de simplificá-los. É o que Edgar Morin (2001) chama de inteligência parcelada, compartimentalizada, mecanicista, disjuntiva e reducionista, que desconsidera a complexidade do mundo, fraciona os problemas, perde a noção de totalidade. Infelizmente, são com essas lentes que a extensão rural oficial e as entidades não-governamentais, durante muito tempo, analisam os sistemas produtivos da agricultura familiar, olhando a parte como se fosse o todo.

Durante muito tempo foram priorizadas as tecnologias alternativas em subsistemas produtivos, quase sempre os roçados ou a criação de pequenos animais. Embora esta ação desenvolvida tenha sido importante, não podemos chamá-la de ação agroecológica; no máximo, de “boa vontade” agroecológica. Prova disso é que o longo tempo de trabalho nas UDS e UTTs não conseguiu potencializar a independência dos sistemas produtivos das famílias acompanhadas. Ao contrário, estas passaram a necessitar cada vez mais da ação da assessoria para conseguir manter os subsistemas em condições quase ideais.

Este processo ajudou a criar os agricultores “best seles”, técnicos dentro da técnica. Hoje muitas organizações não sabem como tratá-los.

Na verdade, a ação sempre foi bem pontual, centrada em experiências a serem difundidas pelos agricultores multiplicadores. Ganhavam cada vez mais destaque os dias de campo, espaços de difusão das tecnologias. Nas organizações o debate passou a ser sobre o que é e o que não é agroecologia, ou seja, a agroecologia precisava ser certificada por “especialistas”, donos do conhecimento. Pouco se avançou no processo de transição agroecológica dos sistemas produtivos.

Nessa trajetória, saiu-se da conceituação de trabalhadores rurais, sujeitos coletivos capazes de fazer mudanças sociais a partir da ação sindical, para o conceito de agricultores familiares, sujeitos de necessidades e sentimentos. Apesar dessa mudança substancial, durante muito tempo adotou-se o mesmo método da extensão oficial, de difusão de conhecimentos previamente construídos, não se permitindo o diálogo com outras formas de produção de saberes. Os chamados pacotes alternativos também apresentavam suas fórmulas prontas, verdades absolutas e a artificialização dos espaços. Neste debate, o ponto está propondo é discutir a extensão rural a partir da observação, do diálogo e da compreensão do que é a agricultura familiar. Neste esforço, é preciso reconhecer que a agricultura familiar, compreendida em sua diversidade, demanda uma lógica de diálogo, trocas e complementaridade, sendo reconhecida uma lógica sistêmica comum na produção familiar.

Na lógica convencional da extensão rural, o crédito e a assistência técnica cumprem papéis nefastos na desconstrução dos sistemas produtivos. São direcionados e atrelados a um único subsistema, na maioria das vezes a uma única cultura dentro do subsistema, negando a lógica da policultura e das inter-relações da agricultura familiar e condenando as famílias à lógica das monoculturas do já falido agronegócio. Esta lógica leva a agricultura familiar à desestruturação e a um forte endividamento. Na contramão das políticas de crédito e da assistência técnica atual, a nova extensão rural, que constrói coletivamente os conhecimentos, precisa trabalhar orientada pela observação das dinâmicas dos sistemas produtivos da agricultura familiar, que trocam insumos e energias entre seus subsistemas e se relacionam com outros sistemas no entorno. O crédito deve cumprir um papel dinamizador nos sistemas de produção familiar e potencializar as dinâmicas endógenas na produção de insumos, respeitando o patrimônio genético e cultural das comunidades e reforçando as infraestruturas produtivas e sociais.

Construir esta nova extensão rural significa construir novos valores, outras formas de ver e compreender o mundo. Sem transformação do indivíduo coletivo, não há transformação coletiva. Avançamos no sentido de reconhecer muitos erros históricos e querer mudá-los, porém a trajetória da nova extensão rural vai requerer investimentos em infraestrutura e formação.

Para delinear a “nova extensão rural” é preciso identificar rumos, conhecer os agricultores e agricultoras e suas formas de organização, sua dinâmica, sua lógica, seus valores, suas experiências, sua história e, por que não, suas pretensões. É imprescindível reconhecer que os agricultores têm experiências acumuladas, embora não sistematizadas. É preciso reconhecer a importância de tais experiências para iniciar qualquer diálogo. Este reconhecimento e valorização não podem ser artificiais; o extensionista precisa estar convencido desta premissa.

Este é um bom exercício para a construção coletiva de conhecimentos agroecológicos entre extensionistas e agricultores familiares. Não é uma barreira fácil de transpor, requer dedicação, qualificação das equipes técnicas, estudos, pesquisas, reflexões e elaborações sobre a produção de saberes. O resultado deste diálogo tem que ser materializado em elaboração teórica, sistematização, publicação de trabalhos e pesquisas participantes.

A aplicação de novos conhecimentos só se consolida se nossos esforços no estudo das práticas de produção; estas são importantes e ajudam na compreensão dos sistemas produtivos, pois o aprendizado coletivo ocorre no dia a dia e em comunidade, possibilitando o resgate de conhecimentos disruptados e transformados em mercadorias. Iniciar o processo de construção do conhecimento agroecológico não pode ser algo abstrato, deve partir de algo concreto. Nos sistemas produtivos o processo deve se concretizar a partir da transição agroecológica discutida, percebida e construída nas dimensões do desenvolvimento sustentável. Estabelecer uma nova forma de acompanhamento técnico, compreender a agricultura familiar e consolidar um diálogo entre o conhecimento técnico e os conhecimentos tradicionais dos agricultores, são os principais desafios da “nova extensão rural”. A tarefa posta para a extensão rural nesta conjuntura é a de compreender a agroecologia como proposta de desenvolvimento sustentável, partindo da análise dos sistemas produtivos e suas inter-relações, trabalhando a transição agroecológica como processo potencializado pelas experiências de convivência com os sistemas endógenos.

Favorecer o acompanhamento técnico requer oportunizar intercâmbios horizontais entre agricultores, e entre estes e os outros sujeitos do conhecimento, possibilitando acumulações e sistematização de experiências. O fortalecimento de uma rede que tenha como centro a lógica da agricultura familiar. Esse momento é a oportunidade de o Estado e as organizações da sociedade participarem da construção e consolidação de um projeto de desenvolvimento

sustentável que priorize os saberes, a produção de conhecimentos e, antes de tudo, as pessoas e suas representações construídas socialmente.

Definir a estratégia não significa a garantia da sua implantação na prática. Fatores externos e internos devem ser percebidos a cada momento; são as conhecidas ameaças e oportunidades. Muitas vezes falta o aporte financeiro, as demandas e dinâmicas do dia-a-dia em campo tendem a levar ao ativismo, dificultando os processos de internalização da proposta pelas equipes. Ainda se corre o risco de a proposta e as estratégias virarem pacotes de caráter alternativo. Ou seja, toda proposta bem-intencionada reflete fragilidades, equívocos nativos. 

Nesta caminhada, a ação em campo deve ser planejada, monitorada, avaliada e sistematizada de forma permanente. A visão sistêmica deve servir de referência para a ação interna, nortear os projetos e programas como parte da estratégia institucional para construir a estrada do desenvolvimento sustentável. O esboço do projeto estratégico de desenvolvimento sustentável deve ser fundamentado nos aprendizados das várias etapas vivenciadas na extensão rural, sendo reflexo dos processos e transformações. De debates pautados em análise de conjuntura, opções políticas, escolha de métodos e técnicas, estudos de caso e vivências locais e regionais e até de redefinição de linhas de ação e projetos institucionais.

Em muitos momentos nos afastamos do debate central e nos pautamos nas crises internas, refletindo a pouca clareza sobre as estratégias que devemos adotar em campo. Sem a clareza necessária do projeto de desenvolvimento, as equipes técnicas passam a construir seus próprios dilemas, alternativas e soluções. É preciso avaliar os erros e acertos e, sobretudo, as dúvidas construídas. A construção coletiva de conhecimentos, os processos vivenciados podem ajudar a extensão rural a construir respostas e formular questões para a prática cotidiana.

4. Considerações finais

As questões levantadas neste artigo significam uma pequena contribuição para as discussões e debates de uma “nova extensão rural”, que tenha como centro a construção coletiva de conhecimentos e saberes. Reflete em parte as análises elaboradas pelas entidades que se organizam na Rede Ater/NE. A efetivação destas propostas pressupõe um esforço concentrado dos sujeitos da extensão rural no país organizados no Estado (Ematers, Embrapas, universidades) e nas entidades da sociedade civil (ONGs, cooperativas de serviços, sindicatos e trabalhadores rurais, pastorais sociais etc.). Não podendo ser algo homogêneo, será preciso recorrer às peculiaridades das instituições para potencializar esta nova forma de fazer extensão rural.

Mais importante que a estratégia é o que se quer alcançar com ela. O compromisso da extensão rural tem que ser com o fortalecimento da agricultura familiar e de suas organizações na defesa da universalização das políticas públicas para o campo. É com este intuito que defendemos a agroecologia como proposta de desenvolvimento sustentável, pautada nos processos comunitários de transição agroecológica e diálogo de saberes. A agroecologia na agricultura familiar apresenta-se como o caminho para a construção desta nova extensão rural; por isso, não pode ser proposta como um simples programa de governo. Há um longo processo de aprendizagem a ser trilhado. Esta compreensão pode evitar a forte pressão dos gestores por pacotes, produtos e resultados imediatos. Talvez seja este o entendimento que de sobre a nova extensão rural precise construir internamente. Com isto, não está dito que o processo deva ser demorado. A transição agroecológica é um processo temporal.

Outros elementos que norteiam a nova extensão rural são a observação e o aprendizado com as características dos ecossistemas locais. Não se pode trabalhar igual do norte ao sul do país. Nesse sentido, é preciso aprender com os bons exemplos já articulados no Semi-Árido Brasileiro (ASA), rede com mais de 750 organizações que trabalham no Semi-Árido difundindo experiências apropriadas de convivência com o semiárido. A ação deve sempre partir das necessidades imediatas e, assim, ir construindo alternativas mais estruturantes. Na perspectiva de processo, é importante identificar os campos e potencializar a ação com parceiros e aliados. Nesse caminho, este deve ser o período dos diagnósticos participativos: diagnóstico das comunidades, diagnóstico das organizações, diagnóstico das aguadas, diagnóstico das sementes, diagnósticos das potencialidades agrícolas, diagnósticos dos ecossistemas etc.

A estratégia prioritária deve ser a constituição de redes que envolvam agricultores, técnicos e pesquisadores. Nessas redes devem estar todos os que estão direta ou indiretamente envolvidos na construção do projeto de desenvolvimento sustentável para o campo: mulheres, comunidades indígenas, quilombolas, pescadores, vazanteiros, geraizeiros, comunidades de fundo de pasto, quebradeiras de coco, demais comunidades tradicionais. Será preciso partir das características de cada sujeito local para facilitar o diálogo na construção de saberes.

Para potencializar a estratégia das redes, é importante favorecer os intercâmbios, encontros de capacitação, sistematização de experiências, possibilitar que os saberes e conhecimentos circulem e se encontrem. Estas frentes devem constituir parte dessa estratégia. É mais fácil para os agricultores, academia e centros de pesquisa, entender e apostar em experiências de transição agroecológica, quando comprovadas sua viabilidade. Daí a ênfase na realização dos intercâmbios e na troca de conhecimentos e saberes.

Concretizar essa estratégia não se apresenta como uma tarefa fácil, mesmo ainda exclusividade das organizações da sociedade civil, neste desafio o Estado é um parceiro estratégico. Para provocar as transformações sociais rumo a um mundo mais justo e igualitário, será preciso avançar na reflexão sobre os encontros e desencontros da extensão rural na construção coletiva de conhecimentos e saberes.

Referencias bibliográficas

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LANDIM, Leilah. Para além do mercado e do Estado – filantropia e cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Núcleo de Pesquisa/ISER, 1993. 

———. A invenção das ONGS – do serviço invisível à profissão sem nome. Rio de Janeiro, 1993b. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. 

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WEID, Jean Mac von der. A trajetória das abordagens participativas para o desenvolvimento na prática das ONG’s no Brasil. Rio de Janeiro: AS-PTA, 1997

¹ Agricultura familiar aqui compreendida enquanto sistema de produção, consumo e modo de vida estabelecido a partir das relações entre famílias agricultoras, baseado na policultura, na pecuária e no extrativismo, mediados por valores simbólicos construídos coletivamente.

2 Projeto Agroecológico e Vida Sustentável. Documentos CEPAC. Teresina: CEPAC, 2005.

³ International Federation on Organic Agriculture (IFOAM), fundada em Versalhes, na França, em 1972. No início, reuniu cerca de 400 entidades “agroambientalistas” e foi a primeira organização internacional criada para fortalecer um modelo de agricultura baseado no respeito à dinâmica ambiental. Suas principais atribuições passaram a ser a troca de informações entre entidades de associações, a harmonização internacional de normas técnicas e a certificação de produtos orgânicos (Ehlers, 2000).

⁴ A agricultura orgânica no mundo. Revista Agricultura Biodinâmica, IBD – Instituto Biodinâmico de Desenvolvimento Rural, nº. 80, outubro de 1998.


sábado, 14 de junho de 2025

Comentários de ANTÔNIO GOMES BARBOSA. Segundo livro de Nêgo Bispo (2015) - COLONIZAÇÃO, QUILOMBOS, MODOS E SIGNIFICADOS -



SAUDAÇÕES A BISPO, A MÃE ÁFRICA E AOS POVOS AFRO-PINDORÂMICOS.

Salve, Salve!

“Colonização, quilombos: modos e significações”, de autoria de Antônio Bispo e de sua ancestralidade, além de um primoroso tratado sobre as relações de poder vivenciadas nos últimos 500 anos entre os povos afro-pindorâmicos (politeístas, negros, índios, pagãos, policultores) e os europeus (brancos, cristão, judeus, monoteístas e monistas), é uma destacada contribuição para a reconstrução da historiografia do Brasil.

Partindo de identidades coletivas e modos de ler e interpretar o mundo, Bispo não se limita ao mítico ou ao fato isolado, traz ao debate temas atuais, quase arquetípicos, que se constroem e se legitimam nas inter-relações. Em síntese, analisa o desenvolvimento como ameaça e cobra ações imediatas de reparação aos povos.

No campo teórico, esta obra coloca-se em oposição à historiografia positivista, livra-nos dos modelos cartesianos e monótonos das explicações predominantes sobre a subjugação europeia aos povos do além-mar e desnuda o “massivamente aceitável”. Pode ser considerada a base filosófica de uma sociologia afro-pindorâmica. De forma atemporal, nos faz ver a aguda dívida do Estado brasileiro, não apenas com seu passado, mas, sobretudo, com o presente materializado nos grandes projetos contidos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Não estando preso a formalidades acadêmicas, apresenta a circularidade dos fatos sem perder a centralidade nas análises e constatações. Com sabedoria e simplicidade, presenteia-nos com contações de histórias.

Como no passado, com requintes de sofisticação, a face da colonização imputa a seus opositores a pecha de atrasados, de feios, de antinacionais, de empecilhos ao desenvolvimento, aliados do diabo, etc. Pelo tempo que conheço Bispo, estes são apenas alguns dos adjetivos a ele atribuídos.

O discurso dominante, que prega a igualdade e nega as diferenças, “todos somos iguais perante a lei”, constrói cortinas de fumaça e confunde antigos e atuais aliados. Muitos caem no canto da sereia, uns até rápido demais. Se antes facilmente distinguia-se quem eram os colonizadores e quem eram os contra-colonizadores (senhores, fazendeiros, usineiros, escravos, índios, quilombolas), hoje somos colocados à prova a todo o momento.

Nos muitos ensinamentos que a vida me possibilitou no convívio com Bispo, a temática colonização me faz lembrar diálogos sobre os sujeitos sociais e sua saída da estrutura sindical rural. Seu giro definitivo para a causa quilombola. Em leituras de paisagem, para além do capital e do trabalho, divisão por mim adotada, destacava tristemente o fato de muitos dos companheiros dirigentes estarem a serviço do outro lado, favorecendo os patrões. Os famosos pelegos, mais comuns do que se possa imaginar. No seu estilo pedagógico, analogamente, comparava-os a figura do “Capitão do Mato”, ser esdrúxulo, que embora seja destacadamente de um lado, está a serviço do outro, representando perigo por ser conhecedor dos lugares e das estratégias construídas pela e para a resistência. Mas sempre procurando compreender o porquê, a causa, e não simplesmente a mera constatação do fato, por sua vez, reconhecia nestes muito mais o papel de vítimas que algozes da história.

Hoje, usando sua exemplificação, pode-se afirmar que o número de capitães do mato aumentou consideravelmente, e para além do movimento sindical. Guardada as devidas proporções, caso emblemático e passivo de análise é o do ex-presidente Lula, operário, oriundo do sertão pernambucano, que com sua família teve que fugir para São Paulo por falta de água, terra e sementes, por falta de condições dignas de vida no meio rural. Quando pôde, cumpriu papel primordial na presidência, apoiou inúmeras iniciativas de convivência com o Semiárido e olhou de forma especial para a região. Na era Lula o Semiárido cresceu acima da média nacional. Porém, foi o mesmo Lula que ajudou a ampliar os perímetros irrigados, e, além de favorecer a transposição do rio São Francisco, publicamente disse que “só é contra a transposição quem nunca passou sede, quem bebe água mineral”, um contrassenso.

Inocente, culpado ou vítima? Como caracterizar estes casos? Ora, os principais beneficiados com a transposição do São Francisco são justo os que condenaram e condenam a morte milhares de crianças, mulheres e homens. Os mesmos que os expulsaram na infância.

ALGUMAS OUTRAS CONSIDERAÇÕES.

“Assim como em Canudos, Caldeirões e Pau de Colher, os colonizadores não se contentaram com o aniquilamento do povo e o desmantelamento da organização...”

Para mim, a centralidade deste livro de Bispo está na visibilidade que é dada às muitas estratégias de resistência. Suas aproximações e singularidades. O destaque de que a expropriação dos territórios não se dá apenas no campo material: das terras, das posses e das riquezas produzidas, mas, sobre tudo, no mundo simbólico, no imaterial: na cultura, nas danças, na língua, nos símbolos, na diversidade e nas divindades. Sua capacidade de exemplificar, como em Belo Monte, onde a posição do governo brasileiro é tática: O que é a história ou as riquezas dos povos do Xingu frente à produção de energia que conduzirá riquezas e benefícios a todos e à nação? Em nome de um desenvolvimento que pretende tornar o país cada vez mais autossuficiente em sabe-se lá o que.

O ataque e a negação dos conhecimentos tradicionalmente construídos são a face mais cruel dos colonizadores em oposição aos contra colonizadores.

Num outro viés, Bispo, que não trabalha com o conceito marxista de luta de classes, em muitos momentos pode induzir-nos a pensar a história da humanidade, no sentido macro, como marcada pela luta entre matrizes monoteístas e politeístas. Claro que esta seria uma simplificação das questões até aqui levantadas, merecendo aprofundamento, mas alguns elementos que se repetem no passado e no presente, possivelmente numa relação causa/efeito como sendo resultado dos modos e significações, construídos e ressignificados no transcorrer da história.

Na continuidade de suas reflexões, Bispo questiona a historiografia oficial quanto à classificação dos movimentos que se constituíram no sertão nordestino enquanto meramente messiânicos: Canudos, Caldeirão e Pau de Colher. Em momentos Bispo denomina-os como quilombos, em outros, destaca pormenorizadamente suas características que justificam tal classificação: a estrutura organizativa, as formas de apropriação e a divisão do resultado do trabalho coletivo.

Dessa forma, rompe com os que querem negar estes movimentos atribuindo sua existência apenas ao poder de seus destacados líderes: Antônio Conselheiro, Beato José Lourenço ou Sr. Quinziero. Se isto é de verdade, como questiona Bispo, porque então destruir tudo e todos ao redor? Como explicar suas capacidades de produzir tanto em tão pouco tempo e espaço? Porque então apagar tudo e destruir a memória destes fatos? Qual seria então a capacidade de reprodução destas experiências em outros espaços e tempos?

Fica a dívida e a certeza de poder fazer tudo diferente.

Salve, salve Dandara, Ganga Zumba e Zumbi

Salve, salve Antônio Conselheiro, Beato José Lourenço e Sr. Quinziera

Salve, salve Rosalina, Edileusa, Bispo, Joana Maria e Sabino

Salve, salve Palmares, Queimada Nova e Saco Curtume

Salve, salve povo negro

Salve, salve povo afro-pindorâmico

Antônio Gomes Barbosa

Sociólogo, coordenador do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com Semiárido Brasileiro: Uma Terra e Duas Águas (P1+2) da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA). No ano de 1997, foi assessor de Antônio Bispo na secretaria de Política Agrária e Meio Ambiente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Piauí (FETAG/PI)

*PREFÁCIO* - PRIMEIRO LIVRO NÊGO BISPO (2007) - QUILOMBOS, MODOS E SIGNIFICADOS

Prefaciar Quilombos: Modos e Significados constitui tarefa difícil, principalmente porque não se consegue, de forma sucinta, prefaciar ideias que representam o acúmulo de um povo, de uma raça, de identidades coletivas construídas na diversidade adversa — na resistência, nas festividades, nos terreiros, nas rodas, na roça, na cidade, no campo, na vida, na ancestralidade. É dessa complexidade que este livro trata. Portanto, embora pareça paradoxal, aproveito a oportunidade para dialogar com o guerreiro Antônio Bispo dos Santos — como sempre fizemos — ora concordando com suas análises, ora aprendendo com sua sabedoria, ora discordando, ora procurando entender melhor suas reflexões e afirmações.

O que Bispo apresenta nesta obra é o que poderíamos chamar de bases para uma filosofia da sociologia afro-pindorâmica. São embasamentos teóricos e práticos para a compreensão das diversas formas de organização social e de significação do universo. Durante todo o livro, ele dialoga com várias ideias e categorias de autores da sociologia (K. Marx, E. Durkheim, M. Weber, só para citar os clássicos).

Discute as bases morais do monoteísmo judaico-cristão; identifica suas estruturas; questiona a luta de classes como categoria para explicar as relações socioculturais do processo de colonização no país; confronta a pesada estrutura sindical — tudo isso com desenvoltura só possível a guerreiros e feiticeiros como ele — num processo que revela a sabedoria de sua ancestralidade africana.

Ao discutir ideias, Bispo questiona nossas verdades absolutas e incita-nos a refletir sob outro prisma; apresenta outras verdades e remete-nos a olhar a sociedade a partir de outros lugares. Ele nos força a sair da apatia, propõe lógicas circulares e confluentes.

Quero manifestar minha primeira discordância a Bispo: se este trabalho não tem caráter acadêmico, isso pouco importa. Certamente terá grande valor nas rodas para a reparação e reformulação das bases teóricas, metodológicas e práticas das identidades e coletividades dos povos africanos e pindorâmicos.

Continuando este diálogo, será preciso localizar e caracterizar alguns dos muitos debates contidos no livro. No decorrer deste prefácio, tomarei a liberdade de aludir a outros momentos e debates levantados por Bispo nos vários espaços que tive a oportunidade de compartilhar — onde sua percepção do mundo não se deixa passar despercebida — e assim sua filosofia da sociedade vai se consolidando, lembrando um dos mais belos princípios da dialética: a negação da negação.

Não pretendo fazer uma leitura linear do livro; quero falar da liberdade que ele prega, da sua poesia. Ele começa sua introdução colocando em xeque o Estado e o direito positivista, revelando o caráter excludente e cínico da sociedade branca:

Dá cadeia para quem me chamar de analfabeto…”, ora! — como diz — só não dá cadeia ao Estado que impõe o analfabetismo.

Bispo traz ao debate o papel do Estado como mediador de conflitos de raça internalizados nas várias culturas, localiza o debate na cor e no significado de ser negro no Brasil (e em grande parte do mundo).

Bem característico — e possivelmente sinalizador de estilo — é que Bispo usa o principal instrumento do catolicismo para desmontá-lo: as bulas papais, mostrando como se legitimou a escravidão. Sem um debate sectário, mas sim histórico, ele levanta trechos da Bíblia que referendam a prática da escravidão e os castigos a que muitos povos foram e são submetidos. É a fala de quem vive e luta.

Ao ler os primeiros capítulos, lembrei-me de uma passagem marcante de nossas vidas: em 1997, um grupo de pessoas — entre elas Rommel, Zilton, Rosana, Cristina, Sueli, eu, Bispo, Rosalina, Osvaldina, Seu Adrelino, Vanusa, Manuel Marinho, Ruimar Batista, Leosmar, Sabino — dentre poucas outras, discutíamos a necessidade de organização do movimento quilombola no Piauí — então muito incipiente — debatendo questões de preconceito, opressão materializadas em assassinatos, açoites, destratos, falta de terra e daquelas políticas necessárias às pessoas.

Bispo avaliou que deveria sair do movimento sindical (FETAG/PI) e dedicar-se integralmente à luta do povo negro. O intrigante é que ele fazia esse debate dentro da igreja católica central da cidade de São João do Piauí — que, à época, tinha como padre uma figura que já ocupou cargos públicos (secretário de Educação, deputado etc.) e se achava dono de tudo e de todos, principalmente do que deveria acontecer naquele espaço sagrado. Refiro-me ao padre Solon.

Lembro ainda quando o padre Solon interrompeu nossa reunião e tentou, de forma autoritária, emitir opinião contrária ao debate, justamente quando Bispo caracterizava o papel nefasto sempre desempenhado pela igreja. Não podia ser diferente: Bispo, mais uma vez, fez jus à luta de um povo contra seu opressor, confrontou de forma dura e direta o padre dizendo, em voz alta: “Eu sou o diabo.”

Bispo tinha razão. Para aquele padre — que representava as igrejas naquele momento — e para tantos outros, os negros e as negras, os povos que aqui vivem e resistem, são o diabo. Aquele dia marcou profundamente todas e todos nós. Caracterizo-o como um marco em nossa luta.

Associar o escravismo ao cristianismo não é novidade alguma. Afinal, como diz Marx:

As ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante dessa mesma época.

O que Bispo propõe é olharmos a história a partir das particularidades e da diversidade de seu povo e de sua raça, ver a realidade a partir das matrizes culturais — independentemente de virem da África ou de cá —, pois ambos foram escravizados e colonizados.


Na outra ponta, ele apresenta a matriz do povo europeu branco sob o bastão da igreja e suas leis, colonizando em nome de Deus e de seus interesses.

Cupim que vai pra festa de mambira, não volta.”

Aprendi com Bispo que, nessa história, somos cupins; portanto, precisamos montar nossas estratégias e definir nossas armas. Este livro é uma delas.

Como cupins fazem parte da natureza, compartilho ideias construídas a respeito do trabalho — tão caro aos cristãos e às sociedades capitalistas (sociedades do “trabalho”).

Concordo inteiramente com o que está exposto. E, não obstante, quero acrescentar ao debate outra forma de olhar a teoria marxista do trabalho — não que esse olhar não exista, apenas é pouco explorado por seus estudiosos ou seguidores. Se não me faltam razões, vejamos: para Marx, o trabalho existe para suprir as necessidades, tendo como função proporcionar gozo e prazer às pessoas.

Infelizmente, em muitas sociedades, o trabalho foi apropriado e mercantilizado, tornando-se muitas vezes castigo, não cumprindo seu papel de inter-relação com a natureza e as divindades.

Bispo introduz questões novas no debate, entre as quais a de situar a luta do Caldeirão do Beato Frei Lourenço à luta do povo quilombola, retirando o caráter messiânico atribuído por historiadores e antropólogos que estudam a região. Ele nos faz pensar que não apenas Caldeirão, mas também Canudos, Pau de Colher e tantos outros são estudados apenas como resistências messiânicas, negando características de classe, gênero, raça e etnia.

Ele apresenta outra forma de conceituar quilombos — presente na cultura da farinhada, das pescarias, das danças de roda, da capoeira, entre tantas outras Brasil afora. Mostra que o quilombo — à semelhança dos quilombos fixos — é plural, e somos nós que o construímos dia após dia com nossas resistências.

Bispo encerra sua obra com fortes provocações, especialmente ao movimento sindical, do qual já fez parte. Ele questiona a luta de classes e afirma que patrões e empregados utilizam a mesma matriz para continuarem existindo. Questiona os teóricos do movimento e conclui dizendo que sua forma de interpretar o mundo (quilombo) não substitui outras formas; o fato de ser “99” ou “66” depende de quem e de que lugar se olha.

Tenho algumas discordâncias com o que Bispo diz e defende, porém, de uma coisa estou certo: estou dialogando com quem constrói, na prática, aquilo que muitos conhecem apenas no discurso. Estou dialogando com um GUERREIRO.

Quero terminar este prefácio com o último parágrafo deste livro:

Quem sabe, ao invés de identificar e punir os culpados, encontraremos meios de solucionar muitos dos problemas que assolam as sociedades e assim, como nos quilombos, viveremos a unidade na diversidade, considerando que os quilombos não são alternativas a nenhuma das outras organizações sociais nem pretendem a elas serem comparados. Quilombo é apenas uma filosofia de vida capaz de conviver com as demais.

Bom debate para todas e todos nós.

Que este livro cumpra seu papel histórico.

Antônio Gomes Barbosa


A construção social do Nordeste (2013)

Antônio Barbosa 

Centro Sabiá - Barbosa, combate à seca ou convivência com o Semiárido? 

Antônio Barbosa - Convivência com o Semiárido com certeza. Primeiro porque seca não se combate, essa é uma discussão já antiga e conviver com a região é a grande saída. A seca é milenar, desde que existe a história do Nordeste, pelo menos quando vai mudando o planeta, você tem seca. E seca você não tem só no Brasil, você tem em vários outros lugares do mundo, inclusive nos Estados Unidos (que este ano vive uma das maiores secas dos últimos 40 anos), na Austrália, na Ásia, na África e também no Brasil. Seca é um fenômeno natural, então, se é da natureza é comum, é aceitável, convive-se com ela, previne-se. Seca deve ser associada, sobretudo, à ideia de convivência com o Semiárido, porque conviver é estocar. E estocar principalmente água e alimentos para os períodos de estiagem. 

Centro Sabiá - A gente tem vivido um momento em que se é colocado que é a maior seca dos últimos 30 ou 40 anos e, por isso, temos visto um movimento dos governos federais e estaduais de ações emergentes para esse período. Essas ações emergenciais e as ações que poderiam minimizar esse efeito não são ações que têm sido tardias? Porque se a seca é um fenômeno natural, temos que conviver com ela. O que você observa sobre isso? 

Antônio Barbosa - Queria dividir essa discussão em duas partes. Primeiro, dizer que as grandes secas têm ciclos em torno de 30 anos. Existem outras, que vou chamar de médias secas, mas que não são tão comuns; e têm secas, mais frequentes. No geral, temos na média, secas que acontecem a cada seis anos. Estudos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) dão conta, a partir de monitoramentos e/ou de relatos de historiadores e pesquisadores que estudam o Nordeste, sobretudo às secas, de quando os portugueses chegaram ao Brasil, no ano de 1500, até os dias atuais, da existência de 72 secas, um número considerável. Dessas, 40 foram anuais, ou seja, aconteceram em um ano, e pelo menos 32 foram plurianuais, ou seja, aconteceram para além de um ano. Essa que nós estamos vivendo em 2012 é plurianual. Começou de forma mais forte no Ceará ainda no ano de 2010. Ela se expande agora para muitos estados, mas é uma seca que não começa em 2012 e tende ir até o final do próximo ano.  Então essa é uma das maiores secas dos últimos 30, 40 ou 50 anos, ou em alguns casos, dos últimos 60 anos. Essa é uma situação preocupante. No caminho das secas, igual a essa, a gente teve uma em 1982; igualmente tivemos em 1932; outra grande seca em 1915. Vale destacar que esta seca está diretamente associada à criação do Nordeste enquanto espaço. 

O Nordeste, tal como conhecemos hoje, é bem recente. O Imaginário de Nordeste, enquanto lugar seco, de péssimas e frágeis condições, de terra rachada, de vaca morta, de criança doente; essa imagem é midiática, foi construída pela mídia e tem uma data para isso. No final do império, tivemos uma grande seca que aconteceu entre 1877 e 1878, e um jornal do Rio de Janeiro, chamado O Besouro, publicou imagens sobre a seca no Ceará. Essas imagens são, inclusive, um marco no fotojornalismo brasileiro e nelas aparecem crianças distorcidas e pessoas totalmente sub-humanas. Então, a partir dessa seca do final do século XIX, construiu-se a ideia de Nordeste enquanto espaço administrativo e simbólico. Até então, nós ainda éramos Norte, não existia Nordeste, que passa a existir apenas no começo do século XX, para identificar uma região que é seca. Então, o que devemos observar é que a região Nordeste surgiu a partir da seca. Esse espaço (Nordeste) surgiu para determinar a área de atuação da Inspetoria (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas - IFOCS) que hoje é o DNOCS. Nós tivemos durante todo esse período, ou seja, da seca de 18771878 até os dias atuais, uma situação de criação do Nordeste em função das situações de seca. 

Anterior a essa seca, em 1845, tivemos outra logo no início do governo de Dom Pedro II, consideramos que nesta seca se inaugurou a Indústria da Seca. As condições para a Indústria da Seca surgem no Brasil a partir da criação, pelo governo de Dom Pedro I, da ideia de uma ajuda para os períodos de calamidades, prevista na primeira Constituição. Porém, é o governo de Dom Pedro II que executa essa lógica de ajuda, de dinheiro pros fazendeiros. A ideia é construir açudes. A ação de Dom Pedro I foi em razão de outra grande seca que aconteceu logo após a chegada da família real ao Brasil. A família real chega em 1808, e em 1816 nós tivemos uma grande seca, dessas que são em ciclo de 30 anos. Essa seca (de 1816) dialoga, inclusive, com a história de Pernambuco, porque se acredita que ela aconteceu nesse período, no Nordeste, e foi um dos elementos que contribuiu, inclusive, pra a Revolução Pernambucana. Ou seja, o povo passava tanta fome que aderiu às ideias da Revolução. Então os registros são os mais variáveis possíveis. A primeira seca que se tem registro é de 1559, então, se os portugueses chegaram aqui em 1500 e 59 anos depois, na região da Bahia, já existe registro de um padre sobre a seca, essa é uma questão que se repete. 

Isso tudo é para dizer que a seca se repete, ela tem prazos, se a gente for levar em conta o registro que aconteceu em 1559 até o momento, são 72 secas. Então temos uma média de seis anos de duração de cada seca e o Brasil se preveniu pouco para lidar com essa realidade. Preveniu-se pouco porque tinha uma opção clara de beneficiar os fazendeiros, os políticos locais, os coronéis, beneficiar a lógica da Indústria da Seca; essa é uma situação. Dizer que essa seca, que estamos passando agora em 2012, é igual às secas passadas, é verdade. Dizer que o Estado brasileiro está nas mesmas condições do passado não é verdade, porque o próprio Estado brasileiro foi pressionado pela sociedade. Por isso a seca de 1982 foi um marco no sentido da participação da sociedade civil nessa caminhada e o início do diálogo da Convivência com o Semiárido, pois as ações partem dessa seca de 1982, que foi a última grande seca. Porque é a partir dela, inclusive, que os bancos de sementes que a gente conhece - então sementes da paixão, sementes da resistência, casas 19 de sementes - são oriundos da sociedade civil, coordenados  pela CNBB, sobretudo no Nordeste, desenvolvendo atividades de estoque de semente, ou seja, a ideia do estoque surge de forma forte e permanece até hoje. A partir do período da seca de 1993, que é uma seca intermediária, uma seca média, mas com grandes efeitos, houve a ocupação da Sudene, quando o movimento sindical teve um peso e participação significativos. Durante essa ocupação, começaram a construir uma carta dizendo que não queriam mais isso, “nós queremos estocar água pras pessoas”, acho que, de lá pra cá, houve certa caminhada. 

Se fosse pra dizer - por que às vezes é fácil - não à seca e sim à convivência com o Semiárido, porque a seca está associada à lógica da Indústria da Seca, de grandes dinheiros, que significa também dizer grandes obras, caras e distantes. Vale a pena frisar que a Convivência com o Semiárido está associada a pequenas obras, baratas e perto das pessoas. Porque as saídas são próximas, são locais. A sociedade civil ajudou o próprio Estado brasileiro a refletir sobre isso e hoje, obviamente, temos um conjunto de outras ações que são importantes. Está longe de resolver a situação; quando se tem uma grande seca você vê normalmente a perda de todos os animais, você olha para o estado de Pernambuco, por exemplo, e para as grandes feiras que a gente tem e que comercializavam cerca de 600 animais por semana, agora estão comercializando 6 mil animais. As lavouras são perdidas, os agricultores perdem suas sementes, você começa a ter problemas pra alimentar a sua própria família, daí você cria uma lógica, um imaginário do Nordeste que é a história do retirante, ou seja, há pessoas que migram de um lugar para outro; então quando você não tem o que comer, quando não tem o que beber, as pessoas começam a morrer, as pessoas começam a migrar. 

Existe uma caminhada significativa e as organizações da ASA têm uma trajetória imprescindível sobre isso, pois pressionaram o Estado brasileiro a fazer algo diferente. Então, quando hoje você tem no governo da Presidenta Dilma um programa chamado Água Para Todos, que privilegia a construção de cisternas, embora com um conjunto de erros como as cisternas de plástico, é característico, e isso é algo importante. Mas em momentos como esse, de seca, há a volta de um discurso errado, para além das nossas ações que ajudam as famílias a construírem alternativas, pois também voltam outros discursos muito forte como a Transposição do Rio São Francisco e as grandes açudagens. 

A Convivência é uma ideia, um paradigma, mas não é hegemônico. A ideia do combate à seca ainda é hegemônico, mas eu acho que a gente já caminhou consideravelmente e o Estado brasileiro tem dado passos importantes, inclusive com algumas ações, como o Bolsa Família. Pode parecer estranho, mas essa ação ajuda as pessoas, nesse período, a se alimentarem, e possibilita um conjunto de outras iniciativas paliativas; elas poderiam ser melhoradas. Ou seja, o governo foi pego de surpresa, quando na verdade ele já sabia que essa seca também existiria. 

Centro Sabiá - Que relações políticas são construídas nessa história do combate à seca ou dessa vivência que a gente tem feito parte agora? 

Antônio Barbosa – Primeiro, dizer que é um retrocesso você ouvir de um ministro, ouvir da presidenta, de um parlamentar, de um governador, de qualquer autoridade a ideia de Combate à Seca. É uma incoerência, porque seca não se combate. Mas essa fala não é desprovida de sentido. Quando se fala em combater a seca, sabe-se do que se está falando; quem está falando isso tem consciência do que diz. Está falando em carro pipa; está falando em grandes açudes; está falando em transferir recursos para um conjunto de políticos que eternamente se beneficiaram, que antigamente eram os coronéis, hoje é o agronegócio, o hidronegócio; está falando em perdoar créditos em relação a bancos para grandes e médios produtores, inclusive, para a área de irrigação; está falando em criar o que os municípios fazem, que são os estados de emergência, ou seja, com o decreto do estado de emergência não se precisa mais fazer licitação, não é preciso pedir nenhuma permissão ao legislativo, em outras palavras, entra-se numa situação que vale tudo, e em um ano eleitoral. Essa é uma situação complicada.  Falar em Combate à Seca é complicado, mas é uma fala que - diferente de anos passados, das secas passadas - dói no ouvido. 

Os agricultores também já estão cansados, porque sabem que seca não se combate, então tem alguma coisa errada aí, a gente precisa avançar num conjunto de outras ações que não são de combate à seca. A sociedade civil precisa fazer o debate político, o debate teórico, o debate de dizer que seca não se combate, seca se convive, que as alternativas que a gente quer são outras. Imagine que quem está nos ouvindo tem uma cisterna calçadão, uma barragem subterrânea, um tanque de pedra, que está dizendo “poxa, como a minha vida tá diferente ou como a vida do vizinho tá diferente”. Totalmente diferente de quem mora mesmo do lado do Rio São Francisco e não tem água. Essas situações são de convivência com o Semiárido e nós precisamos cobrar do Estado brasileiro, precisamos usar a rede que construímos de controle social; então as comissões municipais, os sindicatos, as cooperativas, as Igrejas, todas essas instâncias precisam cobrar. Primeiro porque água é direito. Se o governo não se preveniu, ele precisa ter políticas emergenciais, então se você não teve políticas estruturantes, políticas emergenciais são necessárias. 

Quem tem sede tem pressa, quem tem fome tem pressa, então você precisa garantir uma quantidade de carros pipas abastecendo as cisternas, abastecendo as famílias.  É imperioso garantir, inclusive, distribuição de sementes, para as pessoas guardarem as suas sementes e poder usar outras para se alimentar. É necessário construir estratégias de manutenção dos animais ou, pelo menos, de garantir o reprodutor, de garantir suas matrizes.  Que as famílias não se desfaçam dos seus rebanhos, mas, para isso elas vão precisar de alimentos para os seus animais. É importante também, ter uma lógica de controle da qualidade da água que vai ser distribuída. Então, tem um conjunto de ações emergenciais que são importantes, que a gente precisa cobrar e o governo precisa colocar e tem colocado de uma determinada forma. Existe muito dinheiro para isso, esse é que é o problema - como fazer para que esse dinheiro chegue às pessoas? Que esse orçamento vai sair do governo federal vai; se vai chegar às pessoas isso depende muito da nossa cobrança, de nossa capacidade de denunciar. A ASA, inclusive, vai apresentar uma proposta ao TSE e aos TREs do Nordeste, no sentido de construir uma campanha nesse período eleitoral, de dizer que a água é um direito. Se alguém está lhe cobrando voto porque está lhe dando água, denuncie! Água é direito de todo mundo, garanta seu direito, garanta a convivência. Vender o voto está associado à Indústria da Seca e a Cidadania está associada à Convivência com o Semiárido. 

Esse é um caminho que a gente precisa construir. Falta muita coisa e, infelizmente, muita gente está sofrendo, muita gente vai morrer; isso é uma realidade. Ou por falta de água ou por ingestão de água contaminada, por isso é necessário fazer um controle considerável em relação à distribuição de água. Precisamos cobrar para que nas próximas secas a gente não sofra como está sofrendo agora. Possivelmente, em torno de 2040, nós vamos ter outra grande seca como essa e a gente espera que as pessoas não tenham que viver mais como estão vivendo agora. 

Centro Sabiá - Você citou que outras ações estão sendo construídas, em contraponto, às ações emergenciais, que não garantem uma convivência com o Semiárido. Que ações a sociedade civil tem construído no Semiárido junto com as famílias e por que elas são de fato estruturantes, ao contrário das ações emergenciais que estão sendo colocadas pelo governo nesse momento? 

Antônio Barbosa - A saída para cada família precisa ser individualizada. Então, para cada família, para cada pessoa, é necessário se garantir água e alimento. Muitas vezes o que o governo brasileiro faz é trabalhar com estatística ou com média. Se há três crianças, então são três pães. A criança que tem mais  dinheiro come dois pães, a que tem mais ou menos como um pão e a que não tem dinheiro não come nenhum. Para a estatística, na média, cada criança comeu um pão, mas na verdade, só teremos duas crianças alimentadas, a terceira terá a morte como única saída. A solução precisa ser por família, tem que chegar a todas as pessoas. Eu falo isso porque essa é uma das questões que a ASA tem levantado; ou seja, cada família no Semiárido que não tem água pra beber, que não tem água pra produzir, que não tem sementes, que não tem terra para produzir, que não tem os meios, ela tem que ser atendida. A nossa ação é chegar a essas famílias. A ideia do Programa Um Milhão de Cisternas é para que todas as famílias tenham água. Quando se constrói o P1+2, que é o Programa Uma Terra e Duas Águas, é para que todas as famílias possam ter água para produzir, pra que todas as famílias possam estocar suas sementes, que tenham sua autonomia o que, obviamente, gera um conjunto de outras coisas. Ela lhe permite ficar livre do mercado, ela lhe permite plantar o que você quer, ela lhe permite construir o seu patrimônio, a identidade genética dos seus pais e passar isso para os seus filhos. A ideia da ASA é investir no sentido de se montar uma infraestrutura no meio rural do Semiárido. Nós não somos só o Semiárido Rural mais povoado do mundo, somos, no Brasil, a região mais povoada no meio rural. O Semiárido tem muito mais gente do que tem o Cerrado, do que tem a região Amazônica, do que tem a Mata Atlântica, do que tem a região dos Pampas. Nós somos a região rural mais habitada. Então, é preciso olhar pra esse povo com ações nessa perspectiva, ações que estão associadas a um benefício, mas estão principalmente associadas a um direito. 

Nós temos problemas seríssimos com a questão da terra, a estrutura fundiária no Semiárido, sobretudo. Pautar essa discussão, fazer isso, é resolver essa situação. O Brasil e o Semiárido serão felizes quando cada família tiver sua água para beber, sua água para produzir, tiver sua semente pra guardar, tiver seus animais para criar, tiver uma educação voltada para essa região, que leve em consideração as suas questões do dia a dia, tendo em vista o que é específico de cada região. São essas ações que a gente acredita que sejam estruturantes, podem parecer pequenas, mas são as pequenas coisas que juntas formam grandes coisas. Nós não somos contrários a outras ações, acho que é importante dizer isso. Somos a favor de ampliar a infraestrutura hídrica, precisamos ampliar a oferta hídrica no Semiárido e isso significa criar estruturas hídricas que levem em consideração a própria região. Se temos uma região com grande incidência de raios solares, com uma grande capacidade de evaporação, temos que guardar água em reservatório fechado, então as cisternas e barragens subterrâneas têm um peso considerável nisso, porque terão em conta as características da própria região. É preciso avançar nessa perspectiva. Garantir água, mas garantir um conjunto de outras coisas como estrada, fazer com que as pessoas guardem suas sementes e possam comercializar, mas hoje nós temos ações que são importantes. Acho que o PAA e o PNAE são ações substantivas e é preciso cobrar do governo brasileiro, sobretudo, que suspenda a lógica das cisternas de plástico, que construa cisternas de placas, porque elas empregam as pessoas. Elas fazem com que o dinheiro circule, e o dinheiro circulando significa dizer água, alimento, educação, enfim, um conjunto de outros fatores como cidadania, vida diferente e, sobretudo, convivência com o Semiárido. Por isso acho que são essas ações que a gente precisa caminhar, pra construir um Brasil e um Semiárido melhores e felizes. 

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Vozes da convivência com o semiárido. / organizadora:Wedna Galindo; entrevistas: Catarina de Angola, Daniel Lamir, Laudenice Oliveira, Nathália D’Emery; colaboração: Sara Brito. Recife : Centro Sabiá, 2013..                                                                                                                                               

As soluções para o Semiárido precisam partir da realidade local. Entrevista especial com Antônio Barbosa (2020)

 De acordo com o coordenador do Projeto Daki – Semiárido Vivo, as populações das áreas áridas e semiáridas precisam de políticas estruturantes para sair de vez da situação de fome, pobreza e insegurança alimentar em que se encontram


Por: Patricia Fachin | 04 Setembro 2020

As regiões áridas e semiáridas da América Latina, como o Semiárido brasileiro, o Chaco Trinacional, que abrange áreas da ArgentinaParaguai e Bolívia, e o Corredor Seco, que atravessa a América Central, passando por sete países, entre eles, El SalvadorGuatemalaHonduras e Nicarágua, têm em comum, além das características climáticas, o fato de serem abandonadas pelos governos nacionais. Com acesso restrito a recursos e políticas públicas por causa da falta de investimento público, a população que vive nesses territórios enfrenta situações de extrema pobreza e insegurança alimentar.

No Corredor Seco, onde ocorre um dos maiores fluxos migratórios da América Latina, a população de HondurasEl Salvador e Guatemala foge da fome, da violência e do narcotráfico, e este cenário lembra a situação do Semiárido brasileiro nos anos 1970 e 1980, em que inúmeras pessoas migravam para o Sudeste em busca de oportunidades. “Uma parte considerável do fluxo migratório do Corredor Seco se deve ao fato de o Estado negar o lugar onde as pessoas vivem, dizendo que nesse ambiente não é possível produzir nada, que a melhor opção para as pessoas é abandonarem o território”, diz Antônio Barbosa à IHU On-Line.

Segundo ele, apesar do descaso dos Estados nacionais com essas regiões do continente, é perfeitamente possível garantir a convivência com o Semiárido e expandir a produção de alimentos nesses territórios a partir da valorização do conhecimento dos povos tradicionais. Dar visibilidade a esse conhecimento e garantir o intercâmbio entre os agricultores é objetivo do Projeto Daki - Semiárido Vivo, que propõe identificar e sistematizar as experiências locais e transformá-las em políticas públicas. “A nossa proposta não é romântica, mas visa partir do conhecimento local para ampliá-lo, de modo que o conhecimento de um agricultor chegue até outro e os povos possam ter liberdade de produção em seus territórios”, afirma.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp, Barbosa explica as propostas desse projeto, que está sendo desenvolvido pela Articulação Semiárido Brasileiro - ASA e pela Plataforma Semiáridos, com financiamento do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola - Fida, ligado à Organização das Nações Unidas - ONU, e relata como iniciativas desse tipo permitiram alterar a realidade do Semiárido brasileiro nas últimas décadas. “Hoje, o Semiárido já é, para 200 mil famílias, uma das regiões que mais produz alimentos saudáveis no Brasil. (...) Se for possível garantir o acesso à água, o manejo adequado das florestas e dos biomas, associado às práticas locais, ao manejo agroflorestal, aos quintais produtivos, aos roçados agroecológicos, ao uso dessas sementes e à criação de animais adaptados a essas regiões, será possível produzir mais alimentos, preservar a natureza, melhorar a vida das pessoas e construir um mundo melhor”, assegura.

 

Antônio Barbosa (Foto: Arquivo pessoal)

Antônio Barbosa é sociólogo e coordenador do Projeto Daki-Semiárido Vivo e de dois programas da ASA que favorecem o estoque de água para produção de alimentos, o Programa Uma Terra e Duas Águas - P1+2 e o Programa Sementes do Semiárido.

 Confira a entrevista.

 IHU On-Line - O que é o Projeto ‘Daki - Semiárido Vivo’ e como surgiu essa iniciativa?

Antônio Barbosa – A estratégia e o objetivo principal do projeto Daki é gerar capacidade para as populações viverem e se adaptarem melhor às mudanças climáticas em cada uma das três regiões: no Semiárido brasileiro, no Chaco Trinacional e no Corredor Seco. Para isso, o programa fez duas opções que são muito importantes. A primeira delas é partir das experiências que já existem nessas regiões, que têm grande capacidade de resiliência e um poder inventivo significativo, e sistematizá-las. A segunda é transformar essas experiências em um processo de formação de gestores, ou seja, transformar a prática e a experiência de modo que elas possam se tornar políticas públicas. Iniciaremos um processo de formação de técnicos, de extensionistas, de agricultores, mas também de gestores públicos. A essência do programa é esta: gerar capacidades a partir do conhecimento local e do processo de formação e, a partir disso, influenciar em cada um dos espaços.

 IHU On-Line - O projeto será desenvolvido no Chaco argentino, no Nordeste brasileiro e na parte do Corredor Seco, em El Salvador. O que essas regiões têm em comum do ponto de vista ambiental e social?

Antônio Barbosa – Este projeto atua em três regiões: no Semiárido brasileiro, que é imenso; no Chaco Trinacional, uma área contínua que abrange três países, ArgentinaParaguai e Bolívia; e no Corredor Seco da América Central, que inicia no México e passa por países que estão em situações difíceis, sobretudo El SalvadorHonduras e Guatemala.

 

 Três áreas secas da América Latina unidas por uma ação que prevê intercâmbios e formações | Arte: Cleto Campos/Ascom ASA

Essas regiões têm em comum o fato de serem semiáridas, ou seja, têm características muito parecidas em relação ao acesso à água e à disponibilidade hídrica. Elas são consideradas difíceis do ponto de vista da produção, especialmente para quem entende que a produção está associada a lugares com maior disponibilidade de água. Além disso, uma parte significativa da população é empurrada para esses locais. Por exemplo, no Brasil mais de quatro milhões de famílias vivem no meio rural; destas, a metade vive no Nordeste, a maioria delas no Semiárido. Então, a primeira situação é esta: existe uma quantidade muito grande de populações que vivem nessas regiões. No Chaco há uma densidade populacional menor e no Corredor Seco a densidade populacional é maior. Mas a pobreza, a extrema pobreza, a fome, a miséria e o não acesso às políticas públicas e a recursos talvez sejam as principais características dessas regiões.

 A pobreza, a extrema pobreza, a fome, a miséria e o não acesso às políticas públicas e a recursos talvez sejam as principais características dessas regiões - Antônio Barbosa

A perspectiva de desenvolvimento dominante segue um padrão e, por conta disso, há uma tendência histórica de tentar modificar essas regiões. Sempre tentaram transformar o Semiárido em perímetro irrigado, mas essa não é a sua característica. No Chaco e no Corredor Seco ocorre o mesmo, onde todo o desenvolvimento histórico consiste em negar sua situação, mudar sua vegetação e sua cultura. Essas regiões são muito próximas nesta perspectiva de negação do seu povo e das suas características e da negação do acesso aos recursos que as pessoas precisam ter.

Quando se nega a natureza de um determinado local, a situação se torna muito mais difícil – e essas regiões são marcadas por tentativas de artificialização a partir de um conceito de produção e desenvolvimento que foge à realidade. Mas, ao mesmo tempo, são regiões que se aproximam muito pelas experiências e resistências. Resumindo, diria que as características que mais aproximam essas regiões são a negação do espaço, a negação do povo e a dificuldade de acessar um conjunto de políticas.

 IHU On-Line – Como as comunidades conseguem produzir e sobreviver nessas regiões e como as experiências de uma comunidade podem ajudar a outra?

Antônio Barbosa – A população dessas regiões tem uma capacidade imensa de resiliência. Imagine como é viver no Semiárido brasileiro, no Chaco ou no Corredor Seco, sem acesso à terra, a recursos, a políticas públicas. Mas a população vive, resiste, produz, e temos registros de experiências belíssimas.

 As características que mais aproximam essas regiões são a negação do espaço, a negação do povo e a dificuldade de acessar um conjunto de políticas - Antônio Barbosa

No imaginário das pessoas há uma ideia de que no Semiárido não se produz nada; pelo contrário, tem muita diversidade e uma agrobiodiversidade considerável, mesmo com pouquíssimos recursos. Então, a pergunta é: como esse povo consegue viver em situações tão difíceis? É isso que precisamos conhecer, aprender e sistematizar. Como vivem as populações que têm pouca água, pouca terra e que não têm acesso a um conjunto de recursos? Elas têm estratégias para isso e essas experiências estão invisíveis.

Na Articulação Semiárido Brasileiro - ASA, partimos de um pressuposto muito caro para nós: os agricultores e agricultoras têm uma capacidade de criar, produzir e inventar. Além disso, eles têm a capacidade de conhecer uma determinada realidade e adaptar as suas experiências a essa realidade, com um poder de comunicação muito grande. Partindo desses pressupostos, podemos dizer que as experiências existem e precisamos dar visibilidade a elas, fazendo com que outras pessoas as conheçam. Uma solução que uma família encontra para determinada situação pode servir para outra família que se encontra numa situação parecida. Então, a perspectiva é olhar para essas experiências e fazer com que elas sirvam para o processo de formação dos agricultores e técnicos, porque as experiências existem, mas o Estado não as vê, as universidades e os centros de pesquisa não as veem e, tentam, inclusive, encontrar outras soluções para resolver os problemas. As soluções para o Semiárido nunca partem do zero; elas partem da realidade local.

 O Programa Daki também visa transformar em política pública as experiências existentes no Chaco e no Corredor Seco - Antônio Barbosa

Experiências locais como fontes para políticas públicas

Quando observamos o Programa Um Milhão de Cisternas, o Programa Uma Terra e Duas Águas e o Programa Sementes do Semiárido, estamos falando de ações que já existiam no Semiárido. A ASA contribuiu com esses programas sistematizando, organizando e transformando essas experiências em políticas públicas. Nesse sentido, o Programa Daki também visa transformar em política pública as experiências existentes no Chaco e no Corredor Seco. Não estamos dizendo que somente essas experiências importam, mas elas podem gerar outras experiências ou serem aperfeiçoadas. O ponto é que precisamos partir delas e não de experiências de outros lugares. Essas populações querem e precisam ser valorizadas a partir do seu conhecimento. É nesse modelo que o projeto aposta.

Precisamos olhar para essas experiências de modo integrado e não como algo isolado, porque não é uma cisterna ou um tipo de manejo que muda a vida das pessoas; o que muda a vida das pessoas é a relação disso tudo em suas comunidades. Então, a perspectiva da sistematização desse projeto é feita a partir de um território, considerando o seguinte: uma família, que vive a partir de uma realidade, está inserida numa comunidade e essa comunidade está dentro de um território, onde acontecem várias interações sociais, comerciais, de disputa, de educação etc. Nós olhamos para esse espaço e para as interações que ocorrem no território a fim de observar onde as pessoas vivem melhor, por que vivem melhor, e sistematizamos essas informações para que a comunidade de um território possa aprender com a outra.

 IHU On-Line - Qual o lugar do conhecimento dos povos das áreas semiáridas neste projeto?

Antônio Barbosa – Todo o debate sobre o desenvolvimento parte do conhecimento e, em função da modernização, há uma lógica de negação do conhecimento dos povos dessas regiões. Os povos tradicionais têm conhecimentos variados, mas há uma tendência da sociedade de se apropriar desses conhecimentos para depois negá-los. A produção de medicamentos e cosméticos parte do conhecimento tradicional, e depois se diz que o único conhecimento válido é o científico. Esse é um erro tremendo. Precisamos dar visibilidade e valorizar o conhecimento dos povos indígenas, das comunidades quilombolas, dos ribeirinhos, porque são essas populações que sabem em qual período e quais sementes plantar, em que regiões determinado plantio se adapta melhor e qual é a forma mais indicada de fazer o manejo.

 A produção de medicamentos e cosméticos parte do conhecimento tradicional, e depois se diz que o único conhecimento válido é o científico. Esse é um erro tremendo - Antônio Barbosa

Disputa pelo conhecimento

Quero reforçar que tudo gira em torno da disputa pelo conhecimento. Toda vez que se quer escravizar alguém ou algum povo, se diz que o conhecimento dele não vale. No caso dos povos tradicionais, por exemplo, dizem que as sementes deles não são sementes. A disputa e a negação do conhecimento desses povos acabam gerando o que chamamos de violência simbólica: nega-se o conhecimento dos povos e eles passam a acreditar que o seu conhecimento não vale, que sua terra é ruim, suas sementes não são boas, passam a acreditar no que os outros falam sobre eles e passam, inclusive, a negar o seu próprio conhecimento.

Semiárido brasileiro foi vítima disso durante muito tempo, quando se dizia que as pessoas da região eram coitadas e precisavam de ajuda. Todo final de ano, no Natal, as pessoas do Centro-Oeste e do Sul enchiam caminhões de roupas e comidas e mandavam para o Nordeste para ajudar os flagelados. Não é isso que queremos. Queremos que valorizem o conhecimento que esse povo tem, de modo que ele possa ser usado para transformar as regiões. O Semiárido é parte desse processo e posso dizer que a região hoje, em comparação com a de 20 anos atrás, é outro lugar. Há 20 anos, o Semiárido era um lugar seco, visto como um local de pessoas incapazes. Hoje, nós vivemos no semiárido mais chuvoso do mundo, o povo voltou a valorizar a sua cultura, as suas sementes, seus animais, suas expressões culturais no campo da arte e da dança, ou seja, passou a ser um povo produtivo. Mas veja, trata-se do mesmo povo; o que mudou foi a forma de valorização desses espaços e isso parte da disputa pelo conhecimento.

conhecimento dos agricultores é válido e não quer suplantar o conhecimento da academia. Não se trata de valorizar ou o conhecimento da academia ou o conhecimento dos agricultores. Quem avalia assim é míope, porque o conhecimento é uma tábua sem fim, e esses dois tipos de conhecimento não estão em oposição; eles precisam colaborar. Se trabalharmos com essa perspectiva, vamos perceber que o conhecimento dos agricultores pode ser aperfeiçoado e o da academia também. Esse tema está na centralidade da ação; não existe desenvolvimento nenhum que não parta do conhecimento, especialmente do conhecimento local, porque é esse povo que conhece a sua região.

 

 

IHU On-Line - O manejo e o acesso a recursos são os grandes desafios dessas regiões?

Antônio Barbosa – O grande desafio está mais associado à questão do acesso aos recursos e não tanto ao manejo. O censo agropecuário publicado no ano passado mostra um dado assustador: de todos os estados do BrasilPernambuco é o único em que a agricultura familiar consegue chegar a 51% das terras. Nos demais estados, o percentual de terras que está na mão dos agricultores é muito menor. Entretanto, não existe desenvolvimento sem terra. Isso não tem a ver com o MST, mas com a economia clássica. Quem estuda economia, seja marxista ou liberal, há de convir que não se desenvolve nada sem terra, capital e trabalho. A terra, nesse sentido, é um elemento central, mas muitos agricultores estão na terra e não têm a posse dela. No Chaco e no Corredor Seco, por exemplo, não há documentação sobre a terra.

 

 

Falta de acesso à infraestrutura

Além de não terem terra, esses agricultores não têm capital, entendido aqui como tecnologia. Uma família que não tem uma cisterna vive numa situação diferente de uma família que tem; uma família que tem sua área cercada vive de modo diferente daquelas que não têm. Essas infraestruturas requerem dinheiro e não adianta adotar o princípio da economia liberal, segundo o qual, para ter estrutura, é preciso economizar. Estamos falando de uma população que não tem condições de economizar, porque vive no limite da economia. Por isso, o Estado precisa cumprir a sua ação de prover infraestrutura para que as famílias tenham condições de fazer o manejo das suas áreas, infraestrutura para estocar água, para que possam, inclusive, produzir riqueza.

É muito importante valorizar os programas de distribuição de renda nessas regiões, mas as famílias não querem permanecer a vida toda sendo dependentes desses programas. Se elas tiverem condições de produzir, elas dão conta por si só. Hoje 200 mil famílias no Semiárido brasileiro têm água para produção, e a situação dessas famílias é infinitamente superior à daquelas que não têm água. A situação delas, inclusive, é superior à de famílias de outras regiões que, inclusive, não têm água para fazer o manejo. Então, quando se trata de analisar as condições de manejo e acesso, precisamos perceber que as famílias estão privadas de infraestrutura e, por isso, muitas vivem em situação de fome. Existem famílias no Semiárido que não têm acesso à cisterna nem para beber água; estamos falando de 350 mil famílias nessa condição. Um milhão e 100 mil famílias têm água para beber, mas 350 mil não têm, por isso a possibilidade de essas famílias terem uma vida de privações, de fome, é infinitamente maior. Portanto, as famílias precisam de condições; se a família tem terra, água, sementes, ela consegue ter perspectiva. Precisamos avançar na perspectiva do acesso, especialmente da terra, da infraestrutura dos bens comuns, como bancos de acesso de sementes, estruturas coletivas e comunitárias. Essas iniciativas e soluções já existem, mas as famílias precisam ter acesso a elas.

 

 

IHU On-Line - É possível estimar qual é o nível de pobreza e desnutrição nessas regiões? A que atribui esse cenário?

Antônio Barbosa – Sem acesso à terra, às políticas públicas, à água, à alimentação, à educação, muitas famílias vivem na pobreza e na miséria, mas, ao mesmo tempo, como mencionei antes, é comum entre esses agricultores a capacidade inventiva, de criação, no sentido de que as pessoas encontram soluções para viver em condições com poucos recursos.

 

Semiárido brasileiro

Entre 1979 e 1983, quando ocorreu uma grande seca no Semiárido brasileiro, em cada município da região morriam de cinco a sete crianças por dia. Naquele período, aproximadamente um milhão de pessoas morreram em decorrência da seca, seja por falta de alimentos, por falta de água, seja pela ingestão de água contaminada. Nessa época, o Índice de Desenvolvimento Humano - IDH do Brasil era um e o do Nordeste, outro. Os indicadores do Semiárido eram os mesmos da África Subsaariana: mortalidade infantil altíssima, mortalidade materna também altíssima, níveis de educação quase zero, falta de trabalho para a população, ou seja, as pessoas viviam em situações muito difíceis. Ainda no período do governo Fernando Henrique, em 2001, segundo dados do IBGE, a cada cinco minutos morria uma criança. Mas essa realidade foi sendo alterada depois que se implantou uma política pública de acesso à água, um programa de renda mínima e um programa de alimentação escolar.

 

 

Chaco e Corredor Seco

No Chaco, a situação ainda é muito parecida com aquela do Brasil dos anos 1980: existem populações indígenas em situação de miséria absoluta, sem acesso a políticas públicas. Essas comunidades entram numa perspectiva de isolamento social, em que a situação piora cada vez mais, porque a pobreza traz consigo a violência, as drogas etc.

Existem no mundo hoje dois grandes fluxos migratórios populacionais. Um ocorre na África Subsaariana, onde as populações atravessam o deserto para chegar à Europa, fugindo da fome e da violência. O outro fluxo migratório acontece nas regiões áridas e semiáridas da América Central. As pessoas caminham em marcha, tentando entrar nos EUA. Essa população, sobretudo de Honduras, El Salvador e Guatemala, foge da fome, da violência e do narcotráfico. Mães com filhos querem salvá-los para que eles não tenham que servir ao narcotráfico e possam mudar de vida. Uma parte considerável do fluxo migratório do Corredor Seco se deve ao fato de o Estado negar o lugar onde as pessoas vivem, dizendo que nesse ambiente não é possível produzir nada, que a melhor opção para as pessoas é abandonarem o território. Isso gera a ilusão de que existe um lugar fictício que é o melhor lugar do mundo, neste caso, os EUA, porque quem mudar para lá vai “se dar bem”, quando na verdade, o “se dar bem” está associado ao lugar no sentido de valorizá-lo e construir uma outra identidade. Esses povos que tentam migrar são vítimas. Quando migram, eles enfrentam inúmeros outros problemas, como a separação das famílias e as prisões arbitrárias. Mas tudo isso é fruto da não valorização dos lugares onde as pessoas vivem e da falta de oportunidades.

 


Trajeto de 3.500 quilômetros percorrido pela maioria dos migrantes da América Central rumo aos EUA (Arte: Natália Froner | IHU)

 

A área em laranja abrange o território do Sahel, na África Subsaariana, área que é atravessada pelos migrantes (Mapa: stepmap.de)

Semiárido hoje vive outra realidade, mas nós já fomos como o Corredor Seco. Quem não lembra que a perspectiva de quem vivia no Semiárido brasileiro anos atrás era ir para O Sudeste, porque quem ia para o Sudeste “se dava bem” e quem ficava aqui não tinha perspectiva? Hoje, vivemos um processo inverso: pessoas que estavam no Centro-Oeste voltaram para o Nordeste porque este é um lugar que produz, que tem valor. Então, a valorização dos espaços é importante e precisa ser desenvolvida a partir da perspectiva da convivência, do viver bem.

Hoje temos essa perspectiva muito presente no Semiárido brasileiro e precisamos valorizá-la no Chaco e no Corredor Seco, onde milhares de pessoas estão em situação de vulnerabilidade total. É possível construir outra identidade; nós fizemos isso no Semiárido brasileiro e é possível fazer o mesmo em outras regiões. Justamente por essa razão, é importante que uma região aprenda com a outra.

 

 

IHU On-Line - O Projeto ‘Daki - Semiárido Vivo’ é uma iniciativa da sociedade civil organizada que atua na América do Sul, com apoio do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrário - Fida. De que forma essa ação pode influenciar as políticas públicas dos países com áreas secas para que as medidas sejam adotadas pelo poder público?

Antônio Barbosa – O projeto Daki é uma grande inovação porque dá escala a algumas atividades. No Semiárido, apesar das secas, sempre foram feitas ações, seja por parte de pessoas, organizações ou da Igreja, para tentar amenizar os impactos da seca. No final de 1999, veio a ideia de fazermos uma ação em rede e, assim, surgiu a ASA, como uma rede de redes. Nesse contexto, chamamos a atenção para a importância de o Estado cumprir a função de atender às necessidades da população, e a nossa principal necessidade no Semiárido era de acesso à água. A partir disso construímos o Programa Um Milhão de Cisternas, por meio de parcerias, trazendo outros sujeitos para este debate, incluindo as pessoas que estavam excluídas e fazendo com que o Estado as reconhecesse. Estou mencionando essa história porque o Daki faz exatamente isto: amplia as ações locais, que estão acontecendo no Chaco, no Corredor Seco e no Semiárido, para juntar as organizações dessas regiões, de modo que elas possam atuar em rede, e chama os governos para refletirem sobre essa situação. É importante construir isso a partir dos mecanismos da Organização das Nações Unidas - ONU que financiam ações de agricultura e têm financiado regiões com projetos. Quando partimos de experiências concretas, como os projetos de convivência com o Semiárido no Brasil, é possível rediscutir as propostas de desenvolvimento. Esse é um passo importante, e o Daki é uma oportunidade nesse campo.

Nessa ação atuam duas grandes redes. Uma é a ASA, que tem uma atuação no Semiárido brasileiro, e a outra é a Plataforma Semiáridos da América Latina, que tem dialogado com a ASA há um bom tempo no intuito de construir soluções locais. Essa Plataforma tem levado cisternas para a Argentina e para o Corredor Seco, sempre na perspectiva de planejar o desenvolvimento das comunidades a partir das bacias e microbacias e do manejo da vegetação, percebendo que um lugar impacta o outro. Especialmente no Corredor Seco isso é muito forte, pois quem vive na montanha precisa ter um determinado comportamento para que quem está embaixo tenha acesso à água. Da mesma forma, quem está embaixo precisa ter um determinado comportamento para que quem vive na montanha possa ter acesso às florestas e também à água.

 

Construção de novas redes

Daki tem atuado em várias frentes e cada pessoa tem uma tarefa. Estamos convidando a Embrapa para esse debate, para saber como ela atua nessas regiões e para que ela faça o debate com o Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária - Inta, na Argentina, e com o Centro Nacional de Tecnologia Agropecuária e Florestal Enrique Álvarez Córdova - Centa, em El Salvador, e com outros institutos de pesquisa nessas regiões, de modo que eles possam desenvolver pesquisas a partir do conhecimento e das contribuições dos agricultores e das agricultoras. A proposta é montar uma rede no campo da pesquisa, voltada para o Semiárido. Outro objetivo importante do Daki é constituir uma frente de universidades, com pesquisadores, em parceria com a Universidade Federal Rural de Pernambuco e outras universidades federais e estaduais que atuam no Semiárido brasileiro. O desafio é aproximar esses pesquisadores das universidades que estão no Chaco e no Corredor Seco de modo a transformar isso em uma rede de pesquisa sobre os semiáridos da América Latina e uma rede de gestores.

Esta é uma oportunidade única de criar outras redes de pesquisa, de ensino, de extensão, de gestores, de organizações, e de garantir intercâmbios entre os agricultores, quilombolas e povos indígenas. Temos o limite da língua, porque no Brasil falamos português e nos demais países se fala espanhol, mas a ASA já promoveu outros intercâmbios, então o idioma é o que menos importa, porque os agricultores falam a partir do seu conhecimento. De todo modo, esse é um elemento que não podemos perder de vista.

 

IHU On-Line - Segundo dados da ASA, a região Nordeste é a área semiárida que abriga 59,1% de todos os brasileiros em extrema pobreza do país (9,6 milhões de pessoas) e é onde estão 32,7% dos municípios com alta vulnerabilidade alimentar e nutricional. Qual é o nível de insegurança alimentar no Semiárido do Nordeste hoje?

Antônio Barbosa – Nunca podemos perder de vista o debate sobre a insegurança alimentar porque ela significa ausência ou a falta de acesso a alimentos em quantidade e qualidade necessárias para suprir as necessidades das pessoas. Para produzir alimentos, é preciso ter terra, água, sementes disponíveis, animais e é justamente isso que as populações das áreas semiáridas não têm. Diante desse cenário, obviamente, a insegurança alimentar volta.

A nossa sorte, no Semiárido, é que neste ano choveu – porque não chovia com intensidade desde 2009 –, então, as famílias que têm acesso à água e à terra estão numa situação um pouco melhor. Mas aí, começou a pandemia de covid-19, o que fez com que as pessoas não pudessem interagir umas com as outras e isso também gerou insegurança alimentar, porque as pessoas deixaram de vender e passaram a produzir menos.

 



Políticas estruturais para reduzir a fome e a pobreza

No ano passado, a ASA denunciou o aumento da fome e da pobreza, que está relacionado à negação das políticas públicas. O Estado é necessário para garantir a infraestrutura e os insumos iniciais para que as famílias possam garantir sua sobrevivência, mas ele está se retirando deste debate. Desde o governo Temer, e principalmente no governo Bolsonaro, os investimentos para o Nordeste minguaram e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES não aplica mais recursos na região, o que explica a atual situação social.

A novidade agora é mudar o nome do Programa Bolsa Família, aumentar o recurso – que é importante, inclusive –, mas para além disso o governo precisa garantir que o programa chegue a quem necessita. No caso específico do Semiárido, é preciso ainda garantir o retorno das políticas públicas de acesso à água, porque hoje o Estado não investe um único centavo nessas ações. O governo simplesmente acabou com os programas que eram desenvolvidos, os quais garantiam que as pessoas não precisassem do Bolsa Família. O governo inverteu a ordem: primeiro, disse que o Bolsa Família era um programa para miseráveis e que era preciso fazer programas estruturantes, mas agora abandonou os programas estruturantes e tenta investir em programas emergenciais.

Eu disse anteriormente que hoje 350 mil famílias não têm acesso à água para beber, mas há um número ainda mais alarmante: 800 mil famílias não têm acesso à água para a produção, e elas precisam de tecnologias para conseguir sair de vez da situação de fomepobreza e insegurança alimentar em que se encontram. Hoje, o Semiárido já é, para 200 mil famílias, uma das regiões que mais produz alimentos saudáveis no Brasil. Então, a volta da fome no país é resultado do fim das políticas sociais e do fim das políticas estruturantes. Precisamos de auxílio emergencial, mas se tivermos uma política estruturante, pode ser que não precisemos mais de políticas emergenciais.

indústria da seca, por exemplo, é uma política emergencial. A diferença da política da indústria da seca para a política de convivência no Semiárido é justamente esta: a convivência com o Semiárido trabalha com as políticas emergenciais, mas traz consigo as políticas estruturantes para que a comunidade não fique refém somente das políticas emergenciais. O que a política da seca faz é justamente o contrário: torna as pessoas dependentes.

Apesar desse cenário, vale destacar que o Nordeste tem um conjunto de iniciativas importantes, como um consórcio de governadores para discutir o desenvolvimento da região, com um comitê científico formado por pesquisadores de diversas áreas, que refletem e pensam o Nordeste. O que provocou a miséria no Nordeste foi a falta de investimentos, mas se ampliarmos as políticas de infraestrutura, é possível construir um novo caminho.

 

 

IHU On-Line - A ASA também informa que na região semiárida do Chaco, na Argentina, 80% dos moradores vivem na pobreza, com alta incidência de pessoas desnutridas, e nas áreas do Corredor Seco da América Central, 2,2 milhões de pessoas vivem em situação de pobreza e vulnerabilidade climática. As causas da pobreza e da desnutrição nessas regiões são as mesmas do Brasil?

Antônio Barbosa – A situação no Chaco e no Corredor Seco é muito pior do que aquela que vivemos no Semiárido hoje. Em relação ao Corredor Seco, vou mencionar dois países como referência: Guatemala e El Salvador. Em El Salvador, o recurso que mais faz girar a economia é o das remessas, ou seja, o dinheiro que pessoas dos EUA enviam para pessoas que vivem em El Salvador – tanto é assim, que a economia de El Salvador é baseada em dólar americano. O segundo recurso que mais circula no país é o dinheiro do narcotráfico e o terceiro é o do Estado. Na Guatemala, o primeiro recurso que mais circula no país é o dinheiro do narcotráfico e o segundo, o das remessas. Estamos falando de regiões em que o Estado praticamente inexiste e não conhece a sua população. Algumas pessoas nascem e morrem sem serem registradas.

Nós vivemos situações parecidas no Brasil até a década de 1990, ou seja, a fome e a miséria são consequência da ausência do Estado. Veja que o Estado é ausente nessas regiões porque elas não interessam; inclusive, ele quer que essas regiões virem outra coisa, porque a perspectiva de desenvolvimento é outra. É justamente isso que gera fome, miséria e faz, sobretudo, que essas duas regiões sejam assim. Apesar de a Argentina ser mais desenvolvida, o Norte do país também é esquecido. No caso do Corredor Seco, estamos falando de uma região onde ocorre um dos maiores fluxos migratórios do planeta, sem estar associado à guerra. Nessas regiões as mães vivem de forma desesperadora: não sabem se no dia seguinte terão alimentos e água para seus filhos. Isso é prova de que o modelo de desenvolvimento que construímos está falido.

 

IHU On-Line - Dados da Fiocruz apontam que metade dos 800 milhões de pessoas que passam fome no mundo trabalha com agricultura familiar e vive em áreas secas de todo o planeta. Como é possível reverter esse cenário?

Antônio Barbosa – O cenário de fome hoje é inexplicável. Existe, de fato, um contingente enorme de pessoas vivendo no meio rural e na extrema pobreza. É importante dizer que essas pessoas não têm acesso à terra e foram expulsas de seus territórios. A pobreza é um fenômeno muito doloroso e leva as pessoas ao isolamento social. Uma família que não tem o que comer não diz isso para ninguém, porque passar fome é vergonhoso, e essa situação empurra as pessoas para uma situação ainda mais difícil.

É possível reverter essa situação com a agricultura familiar, que tem como finalidade a produção de alimentos. A questão é que, em muitos locais, os agricultores não têm condições de produzir e, portanto, onde existe fome, é porque as condições de produção não estão colocadas. Como eu mencionei antes – e é importante destacar –, a proliferação da fome nas regiões semiáridas ocorre por causa da negação do lugar, do território, dos direitos e dos recursos, porque os Estados insistem em produzir em condições impróprias para a região. A solução é fazer a reforma agrária, garantir o acesso à terra, o direito aos territórios dos povos e infraestrutura para que essas pessoas possam mudar suas vidas.

 

 

IHU On-Line – Como a agricultura familiar pode ser uma alternativa para a produção de alimentos, considerando o avanço das mudanças climáticas? De que forma este tipo de produção ajuda igualmente no enfrentamento das mudanças climáticas?

Antônio Barbosa – Todo o debate que se faz hoje no mundo está associado às mudanças climáticas, sobretudo por causa do aquecimento global. Nessa discussão, as regiões áridas e semiáridas ganharam importância porque as pessoas passaram a se perguntar como essas populações conseguem viver em regiões com altas temperaturas, uma vez que o planeta caminha para situações semelhantes. Os agricultores conseguem plantar nessas regiões porque eles têm os recursos apropriados. Aí está a importância das sementes crioulas para as regiões semiáridas, porque são sementes adaptadas àquela temperatura, às condições de acesso à água, aos nutrientes da terra. Se seguíssemos a lógica das sementes crioulas, teríamos outra perspectiva, porque é possível produzir em escala e garantir a diversidade. Além disso, a agricultura familiar, assim como os povos indígenas e quilombolas, protege a natureza, ao contrário das grandes empresas e do agronegócio.

Hoje, a estratégia em torno das sementes está diretamente associada ao aquecimento global, as sementes dos agricultores das regiões áridas e semiáridas ganharam importância e estão sendo estudadas para saber como elas se adaptaram a essas regiões e como é possível produzir em determinadas situações climáticas. Se for possível garantir o acesso à água, o manejo adequado das florestas e dos biomas, associado às práticas locais, ao manejo agroflorestal, aos quintais produtivos, aos roçados agroecológicos, ao uso dessas sementes e à criação de animais adaptados a essas regiões, será possível produzir mais alimentos, preservar a natureza, melhorar a vida das pessoas e construir um mundo melhor.

 

 

IHU On-Line - Quais são os principais entraves que dificultam a expansão da agricultura familiar no Brasil hoje?

Antônio Barbosa – No Brasil, o principal entrave continua sendo a questão da terra, porque a concentração ainda é muito grande e vários agricultores não têm onde plantar. Somente em Pernambuco os agricultores familiares têm mais terras do que o agronegócio. Além disso, os agricultores não têm acesso à infraestrutura para armazenarem o que produzem e não têm apoio para comercializar, ou seja, todas as políticas garantidas ao agronegócio não são garantidas aos agricultores. Sem infraestrutura não é possível produzir ou se produz muito pouco. Além disso, a política de sementes no país é um desastre: elas chegam quando para de chover e como o agricultor não conhece essas sementes, ele não sabe como e quando plantá-las, porque elas precisam de venenos e de acompanhamento para serem cultivadas. Mesmo assim, apesar das dificuldades, a agricultura familiar no Brasil é responsável pela produção da maioria dos alimentos que estão na mesa das famílias.

A saída alternativa para o campo, que é a saída para as cidades, é apoiar o conhecimento desses povos e, nesse sentido, o Daki propõe dar visibilidade a esse conhecimento, para que ele dialogue com outros conhecimentos. Daí a importância do diálogo com as universidades e os institutos de pesquisa, como a Embrapa, o Inta, e com o poder público, no sentido de reconhecer e respeitar tanto os espaços quanto os conhecimentos locais. A nossa proposta não é romântica, mas visa partir do conhecimento local para ampliá-lo, de modo que o conhecimento de um agricultor chegue até outro e os povos possam ter liberdade de produção em seus territórios. Por isso, será fundamental criar uma rede de comunicação para as regiões semiáridas e dar visibilidade para os semiáridos da América Latina. Eles são belos, produzem riquezas, e temos a oportunidade de usar isso para criar um modelo de desenvolvimento sustentável, em que todas as pessoas possam ser incluídas.


PREFÁCIO - Superação da pobreza rural no Semiárido brasileiro: a trajetória do Projeto Dom Hélder Câmara

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