sábado, 14 de junho de 2025

[entrevista: Antônio Barbosa] sementes crioulas resistem ao desmonte do Brasil

 

selecionadas e plantadas por famílias do semiárido, sementes garantiram alimento e sustento após seca histórica e durante o pior período da pandemia de Covid-19

As sementes crioulas revelam a potência que a ação humana é capaz mesmo em regiões ignoradas pelo poder público. Ilustração: Marina Kinas

SEMENTES CRIOULAS RESISTEM AO DESMONTE DO BRASIL

selecionadas e plantadas por famílias do semiárido, sementes garantiram alimento e sustento após seca histórica e durante o pior período da pandemia de Covid-19

No final de setembro participei do evento Explorando Pautas Alimentares, da Agência Bori, e lá conheci Adriana Amância, assessora de imprensa da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). Em uma de suas falas, Adriana mencionou um dado impressionante: 70% das famílias do semiárido brasileiro que estocam e plantam sementes crioulas mantiveram o volume normal de produção de alimentos mesmo durante o período mais crítico da pandemia de Covid-19. 

Este é um dos resultados da pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO–ONU) e ASA entre julho e dezembro de 2020 com uma amostra representativa das 200 mil famílias atendidas pelo programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) da ASA. O programa acrescenta uma cisterna para uso de água para produção de alimentos a famílias que possuem uma cisterna para armazenar a água para usar em higiene e limpeza em casa, construídas pelo Programa 1 Milhão de Cisternas, do governo brasileiro.

O sociólogo Antônio Barbosa, coordenador dos programas Uma Terra e Duas Águas e Sementes do Semiárido, ambos da Articulação Semiárido Brasileiro. Foto: Arquivo pessoal

Por isso quis conversar com Antônio Gomes Barbosa, sociólogo, mestre em agroecologia, coordenador do DAKI – Semiárido Vivo. Ele coordenou o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) e o Programa Sementes do Semiárido, ambos da ASA.

Foram entrevistados moradores do semiárido em nove estados brasileiros: Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais. A região sofreu com a pior seca já registrada entre 2012 e 2018 – em alguns lugares, a seca começou em 2010; em outros, estendeu-se até 2019 – e na sequência teve de lidar com a pandemia do novo coronavírus.

A pesquisa tinha como objetivo medir o impacto que o isolamento social e o fechamento do comércio teve na vida dessa população. A maior parte dos entrevistados é mulher, tem entre 40 e 50 anos, mora com mais de três pessoas, possui cisterna para uso na casa e para o cultivo, plantam principalmente cereais, oleaginosas, frutas, verduras, tubérculos, mas também flores e outros cultivos comerciais. Há também a criação de animais em pequenos rebanhos, para subsistência.

O P1+2 é um programa da ASA iniciado em 2007 com o objetivo de garantir o acesso à água para plantação e pecuária a famílias que já estejam atendidas com acesso à água para beber. "O que a pesquisa mostra é que o programa de acesso à água para beber e para produção faz as famílias mudarem de condição: deixam de ser famílias que precisam ser assistidas por programas de distribuição de renda para serem famílias que produzem alimentos e geram riqueza para a região", diz Barbosa.

Mulher alimenta porcos na Comunidade de Craúno, no município piauiense de São João da Serra. Foto: Maurício Pokemon/ASACOM

Os principais obstáculos que se impõem sobre essas famílias não é o clima do semiárido, e sim a falta de investimento do Estado em cisternas e outras estratégias que permitam estocar água; a descontinuação de linhas de crédito que eram contratadas pelas famílias para investir na propriedade e melhorar sua produção; e a monocultura de transgênicos na região, que acaba contaminando as roças e canteiros de sementes crioulas com a propagação de seu pólen.

"É preciso retomar a caminhada do que chamamos de ação de convivência com o semiárido", resumiu Barbosa em sua última resposta. Ele respondeu em áudio uma série de perguntas que lhe enviei por WhatsApp, e a entrevista abaixo está organizada e editada para melhor compreensão.

Quando falamos de sementes crioulas no semiárido, temos como exemplificar as principais espécies e explicar como se faz esse trabalho de seleção, guarda e troca de sementes? 

São muitas espécies. O feijão é uma das espécies e essa espécie tem variedades. Melancia é a mesma situação. No semiárido, tem variedades de feijão e milho em maior quantidade, mas também favas, tubérculos e um conjunto de outros materiais genéticos que as famílias guardam para plantar de novo. Fizemos uma pesquisa com famílias do programa de sementes do semiárido brasileiro, e a maior parte das sementes guardadas por elas são da própria família através dos anos. Depois, vêm os materiais adquiridos da comunidade, ou seja, de outra família.

Quando falamos de semente crioula não estamos falando só questão genética, estamos falando inclusive de serem plantas adaptadas ao clima e também do conhecimento agregado àquele material que as famílias mantêm: qual o melhor lugar para plantar, se deve ser plantado consorciado, qual o tempo correto para plantar, o que não se deve fazer. 

Banco de sementes em Itinga, Minas Gerais. Foto: Caldeirão Ripper/ASACOM

As famílias do semiárido só plantam quando há chuva e aí separam as sementes entre o grão que é alimento e o que será guardado como semente. É uma tradição de muitas famílias agricultoras de todo o Brasil. Os agricultores do semiárido foram perdendo suas sementes, houve uma erosão genética. E, mesmo assim, eles montam suas estratégias: em vez de plantar no roçado, plantam no quintal para produzir sementes. Para a nossa grata surpresa, a pesquisa mostra que quem guardou as sementes teve mais autonomia. Num período em que estava tudo fechado, até pra acessar sementes [de outros lugares, como empresas e cooperativas] era mais difícil. 

Quem mora no semiárido sai da região quando não é época de chuva. Vai para o Norte, Sudeste, Sul, e se ele vê uma semente que não conhece, traz junto na volta. Isso faz com que o semiárido possivelmente seja a área mais biodiversa no campo de sementes do país. Os agricultores plantam essas novas sementes em pequena quantidade e vão testando e construindo o conhecimento. A troca acontece muito também: se um vê um feijão, planta e dá uma semente para outra família. Também há sementes crioulas que não são vegetais, como os caprinos – 93% do rebanho de caprinos está no Nordeste e maior parte dos rebanhos do Nordeste está no semiárido.

Estamos falando de 1,1 milhão de famílias cuja base está em guardar, proteger e trocar, testar e adaptar sementes crioulas. É um trabalho que acaba sendo também um serviço ambiental. Só o milho [tem uma história de cultivo de] uns seis mil anos sendo selecionado. A seleção massal [feita a partir do fenótipo, ou seja, das características visíveis da planta ou animal], em que selecionam manualmente – "opa, esse grão é melhor que esse outro, então vou separar" – é um trabalho manual de cuidado e de conhecimento associado que é algo grandioso e encantador.

Adriana havia mencionado que as sementes crioulas de milho da região do semiárido correm o risco de serem contaminadas pela transgenia. Quais são os estados e regiões que essas plantações estão ameaçadas e que medidas a sociedade pode tomar para apoiar o pequeno produtor? 

Hoje a principal ameaça é a contaminação dessas sementes por transgenia, sobretudo o milho. Na ASA, fizemos testes de contaminação e os números foram aumentando com o passar do tempo. Atualmente estamos com ASA e Embrapa juntas no programa que se chama Agrobiodiversidade do Semiárido [lançado em 2019 com 53 municípios nos estados de Sergipe, Bahia, Paraíba, Pernambuco e Piauí], que trabalha em sete territórios. Não existe nenhum estado do semiárido que não tenha contaminação, que acontece das mais variadas formas, ora distribuído por casas de sementes.

Debulha do milho para selecionar sementes que serão guardadas e as que serão consumidas. Em Indaiabira, Minas Gerais. Foto: Léo Drummond/ASACOM

Existe muito material transgênico e o pólen do milho é o que tem a propagação mais fácil. Em todos os lugares e regiões, tem material que está de 60 a 100 anos na família sendo contaminado. Não há no Brasil nenhuma política de proteção aos agricultores e de seus materiais. Não existe política de punição das empresas que contaminam, porque hoje se consegue saber que empresa produziu aquele transgênico. A política do Brasil hoje em dia é de ampliação da transgenia com tudo o que ela tem direito. 

O Estado promove uma política distributiva de sementes e não de incentivo à produção de sementes, de estocagem e de valorização do material genético local.

Temos trabalhado com políticas de proteção para esse material, para que os agricultores colham, façam testes de transgenia e não plantem aquelas sementes no próximo ano. Aí plantem uma parte e façam o teste de novo: se estiver contaminado, guarde o primeiro material e recoloque-o.

A principal cultura do semiárido é o milho, que representa toda uma lógica de divindade e de celebração, e esse material em grande parte está contaminado. Estamos construindo alternativas com a Embrapa como perspectivas de como proteger esse material, discutindo com as casas de sementes, construindo cópias de segurança desse material genético. 

A pesquisa mostrou que produtores com acesso suficiente a insumos, extensão, crédito e serviços pós-colheita mantiveram a renda normal no período de pandemia. Como isto é ofertado na região? No caso do crédito, a maior parte é de bancos do estado, mas e a infraestrutura de insumos e de serviços pós-colheita? 

A pesquisa mostra que famílias que têm mais terra e mais acesso a recursos e aos materiais disponíveis, assistência técnica e crédito produzem muito mais, e confirma que o caminho correto é dotar as famílias de água para beber, de água para a produção, construir estratégias de bancos e de casas comunitárias de sementes crioulas e construir estratégias de circuitos curtos de comercialização, como feiras agroecológicas, espaços de troca, espaços de comercialização, como bodegas e quitandas.

Mas o que temos na maior parte das vezes é o não acesso. 

O crédito, sobretudo o Pronaf, quase desapareceu. Antes tinha linhas do Pronaf específicas para o semiárido, para agroecologia, para a juventude, para as mulheres. Mas essas políticas estão basicamente desmontadas e os agricultores têm muita dificuldade de conseguir, porque o governo não diferencia mais por tamanho de propriedade. 

Uma das formas de obter crédito é pelo assessoramento técnico [dentre os critérios para solicitar crédito, há o de participação de programas de educação no campo, por exemplo], tanto estatal quanto das organizações que fazem esse acompanhamento gratuitamente. Se você desmonta essa estrutura [ou seja, diminui a disponibilidade de formações técnicas na região e a presença de pesquisadores e profissionais que possam auxiliar o agricultor a trabalhar melhor sua terra], você prejudica o agricultor, que não pode construir outras rendas. A pesquisa reflete a questão da pandemia: a pessoa não tem crédito, saiu de uma grande seca, finalmente vai ter água, tem parte das suas sementes guardadas e agora que poderiam voltar a plantar, não conseguem comercializar. 

É muito difícil mensurar porque são vários desmontes. A própria política de água está sendo desmontada: parou no início do governo Temer [no orçamento para 2017, o governo cortou em 92% a verba para implantação de cisternas no semiárido] e o governo Bolsonaro tenta boicotar qualquer ação de água no semiárido [em 2020, o Programa 1 Milhão de Cisternas teve o pior desempenho desde sua criação, em 2003].

Se você apresenta serviços de assistência técnica, disponibiliza crédito e terra a essas famílias, elas não precisam ser beneficiárias de programas de distribuição de renda. Com acesso à água para beber e para produção, as famílias deixam de precisar de assistencialismo para serem famílias que produzem alimentos e geram riqueza para a região. Esse estudo que representa 200 mil famílias do semiárido prova que em plena situação de pandemia quem teve água para a produção teve geração de renda. 

Família trabalha na horta com a disponibilidade de água por meio de cisterna do P1+2. Riacho do Mocó, Jaguarari, Bahia Foto: Manuela Cavadas/ASACOM.

Olhando para os resultados dessa pesquisa e para a realidade do Brasil hoje, em que a agricultura familiar fica cada vez mais sem apoio, é possível que essas comunidades sigam resilientes com estas práticas por quanto tempo? 

Passamos pela maior seca da história que temos conhecimento desde a chegada dos portugueses, e mesmo com a falta de água não se viu êxodo rural, não se viu saque, não se viu crianças desnutridas. E não se viu porque essas famílias tinham água para beber, não precisavam sair de suas casas. Essa água pode ser coletada de chuva, se não tem chuva, distribui-se via caminhão pipa. Nunca haverá um rio ou riacho permanente na região do semiárido, mas pode haver sempre água se eu construir estratégias para ampliar o armazenamento de modo que a água não evapore, sobretudo com cisternas, e com a construção de estratégias para criar sistemas integrados de acesso à água de qualidade. Se essa política avançar, a vida no semiárido muda.

Semiárido verde com cisterna. O casal Antônio e Raimunda Alves da comunidade Enjeitado, em Triunfo, Pernambuco. Foto: Vladia Lima/ASACOM.

Mesmo que os dados da pesquisa mostrem que parte dos entrevistados ampliou sua produção e que vive agora uma situação de segurança alimentar, essas pessoas tiveram grandes dificuldades. O Estado não estava ali para desempenhar sua função. Eles foram construindo suas estratégias, como venda por WhatsApp e Facebook, por exemplo. Foi o poder criativo dessas famílias que as fez sair do isolamento. Esses elementos a pesquisa não conseguiu medir por causa do tempo. 

Tem-se que ampliar e permitir acesso ao Plano de Aquisição de Alimentos, permitir que comercializem seus produtos e os beneficiem para agregar valor. Estamos falando de quem gera o alimento consumido naquela região, de quem gera segurança e identidade alimentar. É preciso retomar a caminhada do que chamamos de ação de convivência no semiárido. 

Sem pensar no cenário desolador do Brasil de hoje, que ações do Estado você considera que os resultados deste estudo poderiam inspirar? 

O país está num momento de desmonte. Essa região do semiárido teve poucas políticas públicas, além do Programa 1 Milhão de Cisternas. Hoje há 1,2 milhão de cisternas. E a ASA tem uma ação de segunda água, são 200 mil famílias no semiárido que são privilegiadas se comparar às outras, porque elas têm a segunda água para usar na produção. Se essas famílias não precisam da assistência do Estado, qual o problema delas? Elas não precisam acessar crédito sempre, mas precisam vender sua produção.

O desmonte do Programa Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) tem um impacto significativo na vida dessas famílias. Imagine para as outras famílias, as que não têm acesso de água para produção? Tem famílias que precisam também de acesso à terra, porque se construírem uma cisterna em seu terreno ficam sem espaço para plantar.


ANTES DE VOCÊ IR EMBORA

É inevitável pensar que, se uma região esquecida pelo Estado como o semiárido brasileiro viceja ao usar saberes tradicionais, imagine a potência que esse sistema alimentar baseado em sementes crioulas teria em uma região hidricamente favorecida e com políticas do governo?


Do projeto à política: a proposta EMBRAPA/EMBRATER de 1982 na trajetória da convivência com o Semiárido

 Antonio Gomes Barbosa*

1. Introdução

Este artigo se inscreve nas comemorações dos 50 anos da Embrapa Semiárido como uma contribuição à memória crítica da presença da instituição no território nordestino. A partir da revisão da proposta elaborada por EMBRAPA e EMBRATER em 1982, busca-se compreender seu papel como marco técnico e institucional na trajetória das políticas públicas voltadas ao Semiárido brasileiro. Longe de constituir um documento isolado ou alheio aos processos históricos mais amplos, essa proposta antecipou diretrizes que seriam, anos mais tarde, apropriadas, reinterpretadas e resignificadas por redes sociotécnicas, organizações da sociedade civil, movimentos sociais, pelo próprio Estado brasileiro e pela Embrapa em seus ciclos institucionais mais recentes.

A análise aqui apresentada integra um esforço maior de reconstrução crítica da história das políticas públicas para o Semiárido, estabelecendo conexões entre a proposta de 1982 e outros três documentos fundamentais para a compreensão das transformações paradigmáticas na região. O plano do GTDN (1959), formulado sob a liderança de Celso Furtado, introduz a noção de planejamento regional a partir de uma lógica desenvolvimentista e centralizadora; o documento do Fórum Nordeste (1993), construído no contexto da redemocratização, propõe uma ruptura epistêmica com a lógica do combate à seca e valoriza os saberes locais; já a Declaração do Semiárido (1999), marco fundacional da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), afirma a convivência com o Semiárido como projeto político-pedagógico ancorado no protagonismo das populações rurais.

A comparação entre essas formulações revela não apenas continuidades e rupturas, mas sobretudo as disputas de sentido que marcaram quatro décadas de elaboração de políticas públicas para o Semiárido. Mais do que reconstituir uma trajetória institucional linear, este artigo propõe uma leitura situada das múltiplas vozes, tensionamentos e alianças que, ao longo do tempo, contribuíram para transformar o modo como se concebe a ciência, o território e a própria política na região semiárida do Brasil.

2. A proposta EMBRAPA/EMBRATER (1982)

Elaborada por EMBRAPA e EMBRATER em 1982, durante a vigência do regime militar brasileiro, a Proposta de Implantação de Sistemas de Exploração de Propriedades Agrícolas para Assegurar a Convivência do Homem com a Seca foi concebida como uma resposta técnico-institucional aos desafios estruturais impostos pela seca no Semiárido. Produzido em um contexto de gestão centralizada e de baixa participação da sociedade civil na formulação de políticas públicas, o documento representa um momento de inflexão dentro da abordagem tecnocrática dominante, ao introduzir elementos que posteriormente viriam a fundamentar experiências mais democráticas e territorializadas de convivência com o Semiárido.

A proposta parte de um diagnóstico claro da vulnerabilidade das famílias agricultoras frente à irregularidade climática e à escassez de políticas estruturantes. Reconhece-se, ali, a necessidade de desenvolver sistemas produtivos integrados e adaptados às condições ecológicas locais, antecipando preocupações que ganhariam centralidade nas décadas seguintes. Apesar de manter-se ancorada em uma lógica vertical e estatal, sua formulação técnica sinaliza uma transição importante: do paradigma do enfrentamento da seca — historicamente baseado em grandes obras hídricas e ações emergenciais — para uma abordagem mais sistêmica, ancorada na estruturação de unidades produtivas familiares resilientes e na valorização de tecnologias apropriadas.

Do ponto de vista programático, o documento estabelecia metas ambiciosas. Propunha a implantação de 6.000 unidades produtivas adaptadas ao Semiárido, a criação de 1.440 propriedades demonstrativas como unidades-modelo, a capacitação de 1.000 técnicos e o atendimento direto ou indireto de cerca de 151.440 famílias. O modelo de ação estava organizado em três níveis articulados: o domiciliar (com hortas, cisternas, pomares e saneamento); o comunitário (com barreiros, poços e crédito grupal); e o institucional (com centros demonstrativos e formação contínua). O tempo previsto para execução era de cinco anos, com orçamento estimado em 45 milhões de dólares, valor expressivo para a época, voltado à infraestrutura, assistência técnica, capacitação e monitoramento.

Mesmo inscrita no marco de uma política tecnocrática, a proposta revela avanços conceituais relevantes. Reconhece a importância da diversificação produtiva, do uso de tecnologias adaptadas à realidade do Semiárido e da formação técnica territorializada. Mais do que um conjunto de metas operacionais, o documento antecipa uma nova racionalidade de intervenção no território, ainda que de forma embrionária e limitada por seu contexto político.

Nesse sentido, a proposta de 1982 ensaia também um deslocamento discursivo que não pode ser ignorado. A própria escolha do título — convivência do homem com a seca — marca uma ruptura simbólica inicial com a lógica do combate. Ainda atrelada ao vocabulário técnico e institucional da época, essa formulação sinaliza uma abertura semântica, uma inflexão conceitual que viria a ser aprofundada posteriormente por outros atores sociais. Esse processo não se deu de forma isolada: estava em consonância com o que começavam a formular, em seus territórios, diversas organizações da sociedade civil do Semiárido, que experimentavam o uso da palavra “convivência” em suas práticas, narrativas e estratégias político-educativas.

Assim, a proposta deve ser compreendida não apenas como um marco técnico, mas também como uma referência na reconstrução das palavras e de seus significados. Foi, ao seu modo, uma semente institucional e discursiva — ainda imprecisa e incompleta — que, anos depois, floresceria em projetos político-pedagógicos mais amplos, profundamente enraizados no protagonismo das agricultoras e agricultores do Semiárido.

3. Três documentos paradigmáticos e a transição na política para o Semiárido

No esforço de analisar a transição de paradigmas na formulação das políticas públicas para o Semiárido, é essencial considerar três documentos fundamentais: o plano do GTDN (1959), o documento do Fórum Nordeste (1993) e a Declaração do Semiárido (1999). Esses marcos, junto ao documento de 1982, expressam diferentes racionalidades, temporalidades e disputas em torno da construção do Semiárido como território de políticas públicas e de direitos.

O plano elaborado pelo Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), em 1959, sob a liderança de Celso Furtado, inscreve-se na tradição estruturalista da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe). Identificava a pobreza nordestina como efeito de um processo histórico de marginalização econômica, defendendo a necessidade de uma intervenção estatal planejada para superar o subdesenvolvimento.

Suas propostas articulavam um diagnóstico estrutural das desigualdades regionais com estratégias voltadas à integração do Nordeste ao desenvolvimento nacional. O plano priorizava grandes investimentos em infraestrutura hídrica, energética e de transporte, o incentivo à industrialização regional com base em polos produtivos, uma reforma agrária moderada voltada à contenção de tensões sociais e à modernização da produção agrícola, além da ampliação da educação técnica e da qualificação da força de trabalho. Introduzia também o planejamento regional como instrumento de ação estatal contínua, resultando posteriormente na criação da SUDENE.

Ainda que inovador para seu tempo ao propor ações estruturantes de longo prazo, o PNDNE reproduzia a lógica centralizadora do Estado e a visão da população local como beneficiária passiva de políticas concebidas no centro do poder, com pouca ou nenhuma participação dos sujeitos territoriais na definição das prioridades.

Três décadas depois, o documento do Fórum Nordeste (1993) representou uma inflexão importante na trajetória das políticas públicas para o Semiárido. Elaborado no contexto da redemocratização e da emergência de novos atores sociais, consolidou uma crítica contundente à lógica do combate à seca, denunciando seu uso político e sua função de perpetuar relações clientelistas.

Embora ainda não utilizasse expressões como “agroecologia” ou “convivência com o Semiárido” — que seriam consolidadas mais tarde —, o documento já antecipava os fundamentos desses paradigmas ao propor um novo modelo de desenvolvimento para a região. Suas diretrizes baseavam-se na valorização dos saberes locais, na adaptação ecológica das práticas produtivas, na democratização do acesso à água, na educação contextualizada e na justiça ambiental.

Entre suas propostas centrais estavam: o reconhecimento das potencialidades do Semiárido; a rejeição ao assistencialismo; a defesa de tecnologias sociais apropriadas; a reorientação da técnica como instrumento de autonomia; a promoção de formas participativas de gestão das políticas públicas; e o fortalecimento da organização comunitária como base da transformação territorial.

Nesse novo marco, a seca deixava de ser tratada como causa da pobreza e passava a ser compreendida como fenômeno natural agravado pela ausência de políticas públicas adequadas. A técnica, por sua vez, deveria ser reapropiada pelas comunidades, guiada por seus modos de vida e transformada em ferramenta de emancipação e construção de alternativas sustentáveis. O documento do Fórum Nordeste, assim, foi um divisor de águas: resgatou a dignidade dos sujeitos do Semiárido e antecipou, com clareza política, as bases do paradigma que viria a ser consolidado nos anos seguintes pelas organizações da sociedade civil articuladas na ASA.

A Declaração do Semiárido, aprovada em 1999 por ocasião da fundação da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), representou a consolidação de um novo paradigma político, ético e territorial para a região. Elaborado coletivamente por organizações da sociedade civil, movimentos sociais, sindicatos, igrejas e entidades de assessoria técnica, o documento marcou a ruptura definitiva com a lógica do combate à seca e afirmou, de maneira direta e propositiva, a convivência com o Semiárido como horizonte estratégico de transformação.

A Declaração reconhecia o Semiárido como um território historicamente marcado pela resistência de seus povos, dotado de diversidade ecológica e cultural, e rejeitava a noção de que a seca seria a responsável pela pobreza. Defendia, ao contrário, que a exclusão e a vulnerabilidade social resultavam da ausência de políticas públicas adequadas e da apropriação autoritária dos recursos naturais.

Entre suas propostas centrais estavam: o reconhecimento do direito humano à água e à alimentação; a valorização dos saberes das agricultoras e agricultores como produtores de conhecimento; a adoção de tecnologias sociais de acesso à água; o fortalecimento da agroecologia como base produtiva; a democratização das políticas públicas com participação popular efetiva; e a reorganização das ações estatais a partir da realidade dos territórios.

A convivência com o Semiárido era apresentada como uma proposta política e pedagógica, profundamente enraizada nas práticas de base, que articulava autonomia, justiça hídrica, diversidade epistêmica e protagonismo dos sujeitos do campo. Mais do que uma simples carta de intenções, a Declaração tornou-se uma referência mobilizadora, orientando ações, programas e disputas institucionais ao longo das décadas seguintes, e estabelecendo um marco fundacional para a construção de políticas públicas estruturantes, sustentáveis e emancipadoras no Semiárido brasileiro.

Ao analisar em conjunto esses quatro documentos, percebe-se uma transformação profunda no campo político e epistemológico das políticas públicas para o Semiárido. Passa-se de uma racionalidade instrumental, centrada no Estado, para uma lógica territorializada, participativa e pluriepistêmica. Essa mudança tem implicações não apenas para a formulação de políticas, mas para a própria concepção de ciência, desenvolvimento e democracia nos territórios do Semiárido brasileiro.

4. Análise comparativa: racionalidades, rupturas e continuidades

Quando comparado à proposta EMBRAPA/EMBRATER de 1982, o plano do GTDN, elaborado em 1959, revela um contraste complementar. Enquanto o GTDN apresenta densidade estratégica e formula propostas de transformação estrutural do território, carece de instrumentos técnicos adaptados à realidade ecológica do Semiárido. Sua concepção centralizadora e modernizante não reconhecia a diversidade socioecológica da região nem incluía os sujeitos do território como agentes ativos. Já a proposta de 1982, embora tecnicamente mais sensível às particularidades do Semiárido, permanecia presa a uma lógica vertical e tecnocrática, típica do regime militar. Ambas as formulações expressam diferentes faces de uma mesma busca por alternativas ao paradigma do combate à seca, cada uma limitada por sua origem institucional e pelo contexto histórico em que foi produzida.

Ao analisarmos a formulação do documento do Fórum Nordeste, em 1993, é importante reconhecer, que a proposta de 1982 não apenas antecipou elementos técnicos posteriormente associados à convivência com o Semiárido, como também contribuiu diretamente para muitos dos princípios operacionais ali ensaiados – como a diversificação produtiva, a adaptação ecológica, o enfoque domiciliar-comunitário-institucional e a valorização da formação técnica no território – servindo de base empírica e metodológica para que os movimentos sociais pudessem reapropriá-los sob uma nova racionalidade. O documento do Fórum Nordeste inova ao romper com ambas as formulações anteriores, introduz o papel ativo das comunidades como produtoras de conhecimento e da técnica como ferramenta de emancipação. Nesse sentido, opera uma inflexão política e epistemológica, reposicionando os sujeitos do território como protagonistas e abrindo espaço para a construção de uma política de base agroecológica e popular. Essa reinterpretação crítica se apoiou, em grande parte, da proposta de 1982, uma matriz técnica sobre a qual estruturou alternativas de base social.

Essa trajetória de reinterpretação e aprofundamento atinge um novo patamar com a Declaração do Semiárido, aprovada em 1999 por ocasião da fundação da ASA. A Declaração consolida a convivência com o Semiárido como um projeto político, pedagógico e territorial. Nela, a técnica, o território e a democracia deixam de ser categorias abstratas ou subordinadas ao saber técnico-científico hegemônico e passam a ser práticas enraizadas nas lutas concretas por água, autonomia e justiça ambiental. A convivência é apresentada como horizonte de transformação, ancorado na valorização dos saberes locais, na agroecologia e na atuação direta das populações do Semiárido como sujeitos de direitos e produtores de conhecimento.

Com isso, a proposta da EMBRAPA/EMBRATER de 1982 ocupa uma posição intermediária, mas estratégica: tecnicamente inovadora para seu tempo, forneceu insumos metodológicos e organizativos que foram mais tarde apropriados, resignificados e reterritorializados por redes como a Articulação Semiárido Brasileiro. Sua comparação com os demais documentos permite compreender a coexistência de racionalidades conflitantes e complementares ao longo de quatro décadas de formulação de políticas públicas no Semiárido brasileiro.

5. Considerações finais

A análise histórica dos documentos que marcaram a trajetória das políticas públicas no Semiárido brasileiro revela uma profunda transformação nos modos de conceber e intervir nesse território. Do plano do GTDN, que expressava uma racionalidade desenvolvimentista e tecnocrática, passando pela proposta técnico-institucional da EMBRAPA/EMBRATER de 1982, até as formulações de base popular do Fórum Nordeste (1993) e da Declaração do Semiárido (1999), delineia-se uma transição de paradigma: do combate à seca à convivência com o Semiárido.

No marco dos 50 anos da Embrapa Semiárido, este artigo propõe uma releitura crítica da proposta de 1982, não apenas como um documento técnico isolado, mas como uma das formulações que, ainda sob a lógica centralizadora da ditadura, antecipou elementos que mais tarde seriam apropriados e ressignificados por sujeitos sociais e redes territoriais comprometidas com a construção de uma nova racionalidade. A diversificação produtiva, a valorização de tecnologias apropriadas, a estruturação por níveis de ação e o reconhecimento da necessidade de formação técnica territorializada constituíram uma base importante para os programas e estratégias que seriam promovidos nas décadas seguintes.

Essa contribuição, no entanto, não se limita ao plano técnico-operacional. Ao incorporar a expressão “convivência com a seca” em seu título, a proposta de 1982 participa de um deslocamento discursivo mais amplo, que já se fazia sentir entre organizações da sociedade civil no Semiárido. Ainda que não rompesse com o paradigma dominante, o uso do termo sinaliza uma brecha semântica e uma antecipação de sentidos que seriam posteriormente apropriados, ampliados e politizados pelas redes territoriais. Assim, o documento pode ser visto também como um marco na reconstrução das palavras, antecipando a virada linguística e epistemológica que transformaria o próprio modo de nomear e imaginar o Semiárido.

Contudo, é de conhecimento público que a contribuição da Embrapa não se esgota nesse marco fundacional. Ao longo de cinco décadas, a atuação da Embrapa Semiárido se deu em meio a tensões, avanços e reconfigurações internas, refletindo os próprios embates presentes na sociedade brasileira. Por um lado, desenvolveu projetos de pesquisa participativa, aprofundou ações junto a comunidades, fortaleceu campos como a agroecologia institucional e contribuiu para consolidar espaços de articulação entre ciência e território. Por outro, também foi atravessada por disputas sobre os rumos de sua atuação, sobre o lugar da pesquisa pública e sobre o reconhecimento dos saberes dos povos do Semiárido.

Exemplo notável dessa ambivalência é o Semiárido Show, que, de um espaço de exposição de produtos voltados ao agronegócio, se tornou um dos principais fóruns de intercâmbio e coprodução de conhecimentos entre pesquisadores, agricultoras e agricultores, organizações da sociedade civil e instituições públicas. Nesses encontros, a ciência institucional encontra os saberes do campo, não como opostos, mas como linguagens que podem dialogar e gerar soluções mais eficazes, enraizadas e justas. A incorporação do Marco Referencial de Agroecologia pela Embrapa é um sinal concreto dessa inflexão, ainda em disputa, que aponta para a possibilidade de uma ciência pública comprometida com a transição ecológica e a justiça territorial.

Reconhecer essas contribuições, no entanto, não significa ignorar os limites ainda existentes. A convivência com o Semiárido permanece como horizonte em construção, que exige novas formulações, pactos e práticas colaborativas entre Estado, organizações da sociedade civil, universidades, institutos públicos de pesquisa e os próprios sujeitos dos territórios. O desafio não é apenas técnico, mas ético, político e epistemológico: avançar em políticas que reconheçam a diversidade de saberes, a centralidade da vida no campo e a urgência de respostas territoriais à crise climática, à desigualdade e à injustiça hídrica.

A proposta de 1982, portanto, deve ser compreendida como parte de uma genealogia em disputa — uma semente institucional que, apropriada e transformada por novos sujeitos e contextos, ajudou a semear alternativas. O futuro das políticas públicas no Semiárido dependerá da capacidade de transformar essa memória em potência, alimentando caminhos coletivos que façam da convivência com o Semiárido não apenas um paradigma técnico, mas um projeto civilizatório alternativo, plural e enraizado nos territórios.

Referências Bibliográficas

Acselrad, H. (2004). Justiça ambiental: a emergência de um novo campo de políticas públicas. In: Revista Estudos Avançados, 18(50), 185–204.

Altieri, M. A. (2002). Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. Porto Alegre: Editora UFRGS.

Bispo dos Santos, A. (2015). Colonização, Quilombos: modos e significações. In: Revista O Social em Questão, 18(33), 117–132.

Bispo dos Santos, A. (2021). A terra dá, a terra quer. São Paulo: Elefante.

DUQUE, J. G. Alguns aspectos da ecologia do Nordeste e as lavouras xerófilas. Mossoró: Fundação Vingt-Un Rosado, 1996. (Coleção Mossoroense. Série B, n. 1352).

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FÓRUM NORDESTE. Ações permanentes para o desenvolvimento do Nordeste semi-árido brasileiro: propostas da sociedade civil. Recife: Contag, 1993.

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Silva, J. M. (2012). A seca e o discurso da modernização do Semiárido: o legado da Sudene. Recife: Editora Universitária da UFPE.

sábado, 7 de junho de 2025

Programa Cisternas em primeira pessoa

Escuta do MDS revela a visão das famílias sobre a política pública de acesso à água

 Por Antônio Gomes Barbosa, sociólogo, coordenador dos programas Uma Terra e Duas Águas (P1+2) e Sementes do Semiárido da Articulação Semiárido Brasileiro.

O Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) divulgou os resultados de uma pesquisa de satisfação realizada com beneficiários do Programa Cisternas. A pesquisa atendeu às exigências do Decreto nº 8.726/2016 e da Lei nº 13.019/2014, que estabelecem a obrigatoriedade de escuta das usuárias e usuários em parcerias com organizações da sociedade civil, como é o caso do Termo de Colaboração nº 896886/2019, celebrado com a Associação Programa Um Milhão de Cisternas (AP1MC).

Apesar do uso de um instrumento remoto e da amostra reduzida, os resultados obtidos são reveladores. De 473 tentativas de contato com beneficiários de cinco estados do Semiárido (MG, PB, PE, RN e SE), 130 pessoas responderam integralmente à pesquisa via WhatsApp. Desse total, 98,5% afirmaram estar satisfeitas ou muito satisfeitas com a qualidade da cisterna recebida. Para 95,9% dos entrevistados, houve redução significativa no tempo antes dedicado à busca de água. Além disso, 98,5% disseram ter recebido formação adequada sobre o uso e a manutenção da tecnologia, e 96,2% avaliaram positivamente o trabalho das equipes executoras.

Os dados apresentam coerência com outras avaliações nacionais. O estudo do IPEA (2021) destaca que o Programa Cisternas contribuiu para a redução de doenças de veiculação hídrica, melhoria na permanência escolar e fortalecimento do papel das mulheres como lideranças comunitárias.

O Programa Cisternas recebeu reconhecimento internacional por sua efetividade socioambiental e inovação social. Em 2009, o Programa Cisternas foi agraciado com o SEED Award, promovido pela iniciativa SEED, uma parceria entre o PNUD, PNUMA, IUCN e outras organizações internacionais, reconhecendo-o como uma iniciativa exemplar de sustentabilidade em países em desenvolvimento. Em 2017, o Programa Cisternas recebeu o Prêmio Prata do Future Policy Award, concedido pelo World Future Council, em parceria com a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD), reconhecendo-o como uma das melhores políticas públicas globais no combate à desertificação e na promoção da convivência com o Semiárido. Esses reconhecimentos internacionais reafirmam a relevância do programa como referência mundial em adaptação climática, segurança hídrica e resiliência socioambiental baseada em tecnologias sociais.

Outro elemento que reforça a confiabilidade dos resultados é o fato de que a percepção das famílias entrevistadas se alinha ao que estudos qualitativos anteriores também apontaram: as cisternas de placas e calçadão são vistas não apenas como soluções técnicas, mas como marcos de dignidade, cuidado e autonomia. Conforme apontam Maluf e Burlandy (2022), políticas sustentáveis requerem não apenas infraestrutura, mas também formação cidadã e participação popular. Nesse sentido, o Programa Cisternas tem promovido uma transformação paradigmática na relação entre Estado e sociedade, pautada na escuta e no protagonismo territorial.

O uso de ferramentas digitais, como o WhatsApp, pode trazer limitações metodológicas, sobretudo em regiões com baixa conectividade. Ainda assim, os altos índices de satisfação indicam não apenas a aprovação das tecnologias, mas também a capacidade do programa em manter seu valor estratégico mesmo em contextos de retração de recursos e mudanças institucionais. Além disso, a metodologia adotada pela pesquisa do MDS está em conformidade com o previsto legalmente, o que confere legitimidade formal às conclusões apresentadas.

Mais do que confirmar a eficiência do Programa Cisternas, a pesquisa atual aponta para a necessidade de sua expansão. A escuta dos beneficiários deve se tornar prática permanente, e não apenas dispositivo legal. A efetividade de políticas públicas se mede também pelo grau de adesão simbólica, pelo reconhecimento social de seu valor e pela capacidade de provocar mudanças duradouras. O Programa Cisternas, com mais de 1,3 milhão de reservatórios instalados em todo o Brasil até 2021, demonstra que é possível construir soluções simples, eficazes e justas quando há escuta, território e confiança.

Referências

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS). Relatório da Pesquisa de Satisfação do Termo de Colaboração nº 896886/2019. Brasília: MDS, 2025.

FAO – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ALIMENTAÇÃO E A AGRICULTURA. Marco de referência para sistemas alimentares e clima. Roma: FAO, 2022. Disponível em: <https://www.fao.org/3/cc3511pt/cc3511pt.pdf>. Acesso em: 6 jun. 2025.

IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Avaliação do Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e outras Tecnologias Sociais (Programa Cisternas). Brasília: IPEA, 2021. Disponível em: <https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/11009>. Acesso em: 6 jun. 2025.

IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Programa Cisternas já beneficiou mais de um milhão de pessoas. Revista Desafios do Desenvolvimento, n. 61, nov.–dez. 2009. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1451:catid=28&Itemid=23>. Acesso em: 6 jun. 2025.

MALUF, R. S.; BURLANDY, L. Sistemas alimentares, desigualdades e saúde no Brasil: desafios para a transição rumo à sustentabilidade e promoção da alimentação adequada e saudável. Rio de Janeiro: CERESAN/UFRRJ, 2022. (Texto para discussão nº 81). Disponível em: <https://www.ceresan.net.br/wp-content/uploads/2022/07/Maluf-RS-Burlandy-L_Sistemas-alimentares-desigualdades-e-saude-no-Brasil_TD_81_final-1-1.pdf>. Acesso em: 6 jun. 2025.

SEED INITIATIVE. 2009 SEED Award Winners. Bonn: SEED Initiative, 2009. Disponível em: <https://seed.uno/articles/seed-award-winners/2009-seed-award-winners.html>. Acesso em: 6 jun. 2025.

WORLD FUTURE COUNCIL. Future Policy Award 2017: celebrating best policies to combat desertification. Hamburgo: WFC, 2017. Disponível em: <https://www.worldfuturecouncil.org/p/2017-desertification/>. Acesso em: 6 jun. 2025.

segunda-feira, 6 de março de 2017

200 anos da Revolução que mudou o Brasil

– Texto I (06 de março de 2017)
Antonio Gomes Barbosa é sociólogo e escreve sobre o Semiárido brasileiro.

Se neste ano de 2017 o mundo inteiro celebra os 100 anos da grande Revolução Russa, aqui no Brasil, 100 anos antes, tivemos a Revolução Pernambucana, iniciada em 06 de março de 1817, se estendeu até 19 de maio do mesmo ano. Foram 75 dias que mudariam, de uma vez por todas, a relação Brasil/Portugal. Muito dos valores e das crenças que temos, tiveram raízes nesta experiência. Muito das formas de fazer política e administrar a coisa pública, para o bem ou para o mal, também remonta este período. A Revolução Pernambucana foi a primeira experiência de uma nação republicana em território brasileiro, 72 anos antes da proclamação da República em 1889.
A Revolução Pernambucana de 1817, apesar de ter este nome, não se resumiu ao território pernambucano, estendeu-se pelas províncias da Paraíba, Rio Grande, Ceará, Alagoas e Bahia, ou seja, poderia muito bem ser chamada de Revolução Nordestina.
Como chave de leitura, é importante perceber o contexto em que a Revolução Pernambucana acontece. É contemporânea das grandes mudanças que estão acontecendo no mundo, traz em tela o ideário de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa, e se ancora na possibilidade de uma nova estrutura social/organizativa de Estado. Referencia-se na constituição dos Estados Unidos, e segue o mesmo curso de independência de muitos países vizinhos na América Latina que se levantam contra o julgo da coroa espanhola.
Antes da Revolução de 1817, Pernambuco já tinha participado de diversas lutas libertárias, a primeira e mais importante tinha sido a Insurreição Pernambucana, em 1645. Depois, na Guerra dos Mascates em 1710/1711, foi aventada a possibilidade de proclamar a independência de Olinda. A revolução de 1817 alimentou e inspirou a Confederação do Equador em 1824, e teve ainda reflexo na Revolução Praieira de 1848-1850.
Como é corrente nos estudos sobre a Revolução Pernambucana, três fatores contribuíram decisivamente para o seu acontecimento: i) os altos e abusivos impostos praticados pela Coroa, a exemplo do pagamento de uma taxa para a iluminação pública da cidade do Rio de Janeiro, sede da coroa; ii) a influência das ideias iluministas fortalecidas pelas lojas maçônicas, padres e jovens que estudavam no Europa; iii) e os efeitos da seca 1816 na produção de alimento e na economia de forma geral, que ganhará relevo na análise.
Embora pareça pouco, “uma simples estiagem contribuir para a deflagração de uma Revolução”, quem conhece o Semiárido brasileiro sabe que o pior deste fenómeno não está na perda de produção, muito menos nos prejuízos econômicos, e sim, no flagelo humano que ele gera. A seca de 1816 teve enorme impacto nas estruturas social e econômica de Pernambuco. Maior que seu efeito na economia, foi o pavor que trouxe aos governantes e senhores de engenho. Para compreender tal reação, se faz necessário recorrer a uma outra seca, de maior proporção, uma tragédia humanitária que deixou marcas e rastros, que assustavam mentes e corações. A grande seca do ano de 1793 ainda apavorava o estado de Pernambuco. A questão que se colocava era o que esta nova seca poderia provocar no comportamento do povo pobre e dos povos escravizados.
A título de comparação, a seca de 1816 está para a grande seca 1793 em Pernambuco, assim como, a seca de 1915 está para a grande seca de 1877/1878 no Ceará.
Voltando ao ponto da estrutura econômica, o porto do Recife era um dos mais importantes do Brasil, e dada esta importância, quando aconteceu a Revolução em 1817, Recife abrigava a embaixada dos Estados Unidos, a primeira das Américas, e contava com representação diplomática do governo Inglês.
Pernambuco era uma das províncias mais ricas e viáveis do Brasil. Juntas, Recife e Olinda possuíam uma população de cerca de 40 mil habitantes, o Rio de Janeiro contava com cerca de 60 mil. A população brasileira girava entre 3 a 4,3 milhões de pessoas, maior parte na área rural. Pernambuco tinha uma das três maiores populações de pessoas escravizadas, o que tornava o campo um lugar de grandes possibilidades. Quando a família real se instala no Rio de Janeiro, com quase 15 mil pessoas da corte, e passa comandar o país de lá, trouxe consigo o ingrediente que faltava para impulsionar novos movimentos revolucionários por liberdade.
O clima de desconfiança entre brasileiros e portugueses era cada vez maior, e com o passar do tempo foi ficando cada vez mais escancarado. De um lado os exageros da coroa para manter seus privilégios às custas de altos impostos e corrupção, do outro, o fortalecimento das lojas maçônicas, que reuniam secretamente e conspiravam contra o poder central. Destes grupos participavam civis e militares, padres e comerciantes.
O governo português monitorava os muitos boatos sobre possíveis levantes contra seu governo, tinham mapeado os nomes das pessoas que avaliavam conspirar contra a monarquia. Cada governador tratava estas informações de forma diferenciada. O receio era que uma onda de descontentamento ganhasse força. Temia-se que um levante contra o governo português pudesse ganhar a adesão de escravos e camponeses empobrecidos em situação de penúria, agravada pelos os efeitos da seca. Por outro lado, estas populações também não simpatizavam com a elite pernambucana composta, em grande parte, por senhores de engenho. Estes boatos se espalhavam e os grupos contrários à monarquia não paravam de crescer. A preocupação se concentrava nas quatro maiores províncias, as que mais sentiam os altos impostos e os descompassos da Coroa: Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e o próprio Rio de Janeiro.
É neste ambiente que no início do mês de março de 1817, o português Manuel de Carvalho Medeiros encaminhou uma denúncia sobre suposta conspiração a José da Cruz Ferreira, o Ouvidor da Comarca do Sertão. Caetano Pinto de Miranda Montenegro, então governante da província Pernambucana, que não gostava de enfrentar grandes problemas, estava sendo pressionado pelos seus pares portugueses e teve que se posicionar favoravelmente aos interesses destes. Porém, antes de anunciar sua decisão, nos dias 4 e 5 daquele mês, buscou trazer o apoio da população afirmando que todos serviam ao mesmo soberano, fez menções heroicas ao exército e solicitou que os fortes recifenses se mantivessem em alerta geral.
Seguindo o protocolo, reuniu seu conselho e na manhã do dia 6 de março de 1817, Caetano Pinto expediu ordem de prisão para encarcerar os suspeitos civis e militares da conspiração. Acredita-se que ao menos 13 ordens de prisão foram expedidas, mas somente as dos civis foram executadas. Contudo, o inesperado acontece e desencadeia um movimento que leva Pernambuco a declarar a primeira República em território brasileiro.
José de Barros Lima, conhecido como Leão Coroado, capitão do Exército, após receber voz de prisão do comandante do seu regimento, brigadeiro Manuel Joaquim Barbosa de Castro, ignorou a ordem, sacou a espada e matou o brigadeiro. É este episódio que fez eclodir a Revolução Pernambucana de 1817.  
A partir deste texto, até o dia 19 de maio, data do desfecho e fim de uma das experiências mais consistentes que viveu o Brasil, publicarei algumas análises sobre esta Revolução. Em cada texto será destacado algum personagem ou fato especifico com contribuição e relevância para compreendermos a grandiosidade da Revolução Pernambucana.
O LEÃO COROADO
José de Barros Lima, o Leão Coroado, entre os anos 1794 e 1796, após pedir baixa da carreira militar, foi nomeado diretor da aldeia de índios de Limoeiro. Cursou Matemática em Lisboa e depois voltou ao Exército, lotado no Regimento de Artilharia. Dado seu feito que desencadeou a Revolução Pernambucana, ao empunhar sua espada e matar o brigadeiro Manuel Joaquim Barbosa de Castro, foi promovido, pelo Governo Revolucionário, ao posto de coronel em 26 de março daquele ano. Quando as tropas reais conseguiram debelar o movimento revolucionário, saiu de Recife e foi para o Engenho Paulista. Em 6 de julho de 1817 foi detido, e quatro dias depois foi julgado e enforcado. Teve a cabeça cortada e fincada num poste em Olinda. Suas mãos foram decepadas e expostas no Quartel de Artilharia. O restante do corpo foi amarrado a um cavalo e arrastado pelas ruas do Recife até o sepultamento.

Nova Roma de bravos guerreiros, Pernambuco, imortal, imortal!

Bibliografia Consultada:

TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução Pernambucana em 1817. 3 Edição Comemorativa do Primeiro Centenário. Imprensa Industrial. Recife, 1917.
http://www.museudeimagens.com.br/revolucao-pernambucana-1817-brasil/
http://blogs.diariodepernambuco.com.br/historiape/index.php/project/a-nossa-primeira-independencia/
http://brasil500anos.ibge.gov.br/estatisticas-do-povoamento/evolucao-da-populacao-brasileira.html

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

PREFÁCIO - Superação da pobreza rural no Semiárido brasileiro: a trajetória do Projeto Dom Hélder Câmara

 Antonio Gomes Barbosa1 “Ótimo que a tua mão ajude o vôo...Mas que ela jamais se atreva a tomar o lugar das asas...” (Dom Hélder Câmara) Ao ...