sábado, 15 de novembro de 2014

DEBATENDO O SEMIÁRIDO II - Seca de 1991 à 1993. A ocupação da SUDENE como marco na vida dos povos do Semiárido.

“O problema do Nordeste não é a falta de chuva, mas, o sub-aproveitamento, da água, dos 700 bilhões de metros cúbicos que caem por ano, 92% se perdem porque não há reservatórios para captá-los e também pela ação normal da evaporação,” 
Revista Veja de 24 de março de 1993
Antonio Gomes Barbosa é sociólogo e coordena o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) da Articulação Semiárido (ASA).
Aproveito a repercussão positiva do relatório da ONU sobre a diminuição da fome no Brasil em mais de 50% para socializar o segundo artigo desta série: Debatendo o Semiárido. Neste, discutimos os efeitos da seca de 1991 à 1993, possivelmente a última grande seca em termos de impactos tão negativos na vida das pessoas que aqui viviam. A partir desta, o que se viu, foi um forte movimento da sociedade no intuito de não mais permitir tamanhas tragédias. Um nível de organização invejável em todo o mundo. Um povo que resolveu tomar a direção do rumo de sua vida. A gênese do Programa de Convivência com o Semiárido.
O ano de 1993 marca o fim de uma seca prolongada que havia se iniciado em meados de 1991 , embora em termos de intensidade não possa ser comparada à que findara em 1983, a não existência de estruturas ou políticas de estoque (água, alimentos e forragem para os animais), tornava seus efeitos tão drásticos quanto às grandes proporções. Para piorar a situação, depois de quase 100 anos sem nenhum registro no país, vivia-se um surto de cólera, com maior incidência nos estados do Nordeste, deste o ano 1992. Mais de nove milhões de pessoas, metade da população da região, estavam sujeitas a sorte. Registros oficiais dão contar de 250 casos para cada grupo de 100 mil pessoas. Uma epidemia.
Tentando sobreviver, muitas comunidades afetadas pela seca organizavam saques a armazéns públicos para abastecer suas famílias. Muitas famílias migravam para as médias e grandes cidades, em especial para São Paulo, região sudeste. A expectativa de vida no Brasil era de 68,4, no Nordeste, de 65,5.
Se em 83 a igreja e os intelectuais tiveram uma forte contribuição para chamar a atenção dos descasos do Estado e pautar que a questão da seca era política e não fruto da natureza, na década de 1990 são os movimentos locais, em especial os sindicatos rurais, as pastorais e as suas organizações de assessoria com atuação na região que cumpriram este papel de grande valia. Sujeitos locais pautando suas demandas e necessidades. A ocupação da SUDENE é um marco na vida dos povos do Semiárido. Ali juntam três questões de grande relevância: i) A denuncia da total ausência do Estado, ii) negava-se a aceitar e naturalização da seca e da tragédia humana decorrente dela, e iii) lançava-se as bases para a elaboração de uma proposta pautada na vida e nas soluções construídas localmente. Um passo importante para posteriormente a formação da ASA e do programa de convivência com o Semiárido.
Como elemento complementar, vale relatar o importante papel que cumpriu “As caravanas da cidadania” do então candidato a presidente da República pelo Partido dos Trabalhadores, embora normalmente não relacionada nos relatos do Semiárido, quero destacar a importância destas sobretudo para visibilizar e criar unidades do resto do Semiárido com o vale do Jequitinhonha. As caravanas dialogavam com as demandas do Betinho e reforçavam que os problemas na região eram políticos e não da natureza.
Para ajudar nas sinapses, é importante ressaltar que o conceito de convivência com o Semiárido, tal como entendemos hoje, surge na região muito a partir de conceitos como tecnologias adaptada, ou, tecnologias apropriadas. A termo convivência com o Semiárido, apesar de incipiente e pouco carregado de conteúdo, também já aparecia no início dos anos de 1990 em publicações de organizações como PATAC na Paraíba, Caatinga e CPT em Pernambuco e também passa a ganhar força na Bahia a partir de organizações mais ligadas a igreja católica. O centro eram as tecnologias adaptadas: cisternas de placa, barragens subterrâneas, barreiros, caxios. Para além de práticas como forragem, cobertura de solos, curva de nível e outras práticas agronômicas. Importa reforçar que o conceito de convivência com o Semiárido foi ganhando conteúdo a partir dos princípios de educação popular.

CONTEXTO HIST´RICO - Como personagens destacadas desse período temos O Itamar Franco, presidente da República, Cássio Cunha Lima, Superintendente da SUDENE, Dom Helder Câmara, Bispo de Olinda e Recife e os movimentos sociais com atuação na região, com destaque para o movimento sindical rural organizado na CONTAG.

DEBATENDO O SEMIÁRIDO I - De 1979 à 1983 - “O Genocídio do Nordeste”.

Antonio Gomes Barbosa é sociólogo e coordenador do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido: Uma Terra e Duas Águas (P1+2) da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA)
Começo aqui uma série de pequenos artigos que socializo especialmente neste espaço. Pelo limite do tamanho, são provocações e reflexões que necessitam aprofundamento. Hoje, números e informações sobre uma das maiores e mais perversas secas acontecidas recentemente no Nordeste.
Numa perspectiva de cadencia, a intenção é fazer uma leitura das ações, ou não ações, do Estado brasileiro. O parâmetro da análise será a relação das secas e seus efeitos no Semiárido e a criação do Programa Nacional de Cisternas acontecido ano passado.
De 1979 à 1983 - “O Genocídio do Nordeste”.
A criação do Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e Outras Tecnologias Sociais de Acesso à Água - “Programa Cisternas”, de iniciativa do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), regulamentado pelos Artigos 11 à 16 da Lei n, 12.873, de 24 de outubro de 2.013, além de ser uma ação proativa do governo brasileiro, é um marco na história do acesso a água e aos recursos naturais na região. É resultado concreto e simbólico da luta histórica das famílias camponesas no Semiárido. Expressa o acúmulo e o momento que vivem as famílias do meio rural semiárido, que organizadas, tomam pra si a construção de suas histórias, e a partir de suas necessidades, propõem e cobram ações de convivência com a região. É fruto das mobilizações de agricultores e agricultoras, a exemplo das acontecidas em Feira de Santana no ano 2008 e em Petrolina/Juazeiro no final de 2011. É também fruto das Romarias da Terra e das Águas, dos Gritos da Terra, dos Gritos dos excluídos, dos Abris Vermelho, das Marchas das Margaridas, e de tantas outras machas construídas em cada região do Semiárido. Traz na sua gênese os acúmulos e aprendizados dos povos de Canudos, Caldeirão do Beato Zé Lourenço, Pau de Colher, Palmares, Ligas Camponesas e tantas outras.
1983 – A possibilidade de construir um novo país.
A ano de 1983 marca o fim de um longo período de estiagem no Semiárido, período este que Tiniciara em 1979. O cenário era de terra arrasada. A expectativa de vida no Nordeste era de 52,6 anos. Haviam 22.227.520 flagelados da seca, destes, apenas 2.775 milhões trabalham nas frentes de emergência recebendo um terço do salário mínimo. A maioria das crianças com até 6 meses se alimentavam só com água e açúcar. Na zona canavieira a desnutrição infantil chegava a 69,8%. Males como esquistossomose, doença de Chagas, tuberculose e desnutrição atingiam milhões. Muitos, crianças e pessoas mais velhas, morriam por inanição. Números oficiais contabilizavam 35 milhões de crianças desnutridas e um número ainda maior em níveis de miséria absoluta. As periferias urbanas, destino dos flagelados das secas, inchavam dia após dia aumentando o exército de desempregados, e por sua vez, a marginalização, o subemprego, a desnutrição, as populações de rua, a favelização, a prostituição, a violência e a morte.
Em paralelo, por coincidência ou confluência, de 1979 à 1983, natureza e sociedade se expressam intensamente, de um lado, a seca que tudo devastava, do outro, a abertura política, a retomada de direitos civis e a reorganização de organizações sociais livres. A aprovação da lei Lei 6.683 em 28 de agosto de 1979, decretada a Anistia no país, o que beneficia cerca de 2.550 pessoas. Militares e civis. Vários exilados políticos retornam ao país, entre os quais: Luiz Carlos Prestes, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Gregório Bezerra, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que havia ficado conhecido nacionalmente pela referência feita por Aldir Blanc e João Bosco na canção “O bêbado e o equilibrista”, e também por ser irmão do cartunista Henfil, dentre tantos outros que voltavam. A coincidência dos fatos, crise política e seca severa no Nordeste, fazia setores expressivos da sociedade cobrar do governo respostas mais concretas para sanar os efeitos e consequências da seca. A abertura política, para além da legalização e criação de partidos e centrais sindicais, a exemplo do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), produziu um onda de organizações não governamentais criadas por profissionais que voltavam do exílio e tinha como proposta acumular forças a partir da produção de pesquisas socioeconômicas e da assessoria a grupos de trabalhadores urbanos e rurais.
É importante ressaltar que a criação destas organizações, somado a luta das pastorais sociais, sindicatos, associações e entidades criadas nas décadas de 60 e 70 em oposição ao Estado e ligadas a igreja católica, ou a movimentos ecumênicos internacionais , possibilitou trocas importantes de conteúdo, percepções e metodologias. Representou um reposicionamento de grupos e intelectuais orgânicos, que para além de elaborar propostas e experimentar soluções, percebeu ser ainda necessário denunciar os descasos do Estado. Neste campo, o sociólogo Herbert de Sousa, o Betinho, do IBASE, a partir de “O Genocídio do Nordeste ”, ação em parceria com igreja católica, com destaque para a Comissão Pastoral da Terra (CPT), denunciou a seca de 1979-1983 e suas consequências, não como fenômeno da natureza, mas, como fenômeno político, destacando que mais de um milhão de vidas haviam sido perdidas em decorrência da seca. Um genocídio provocado pelo Estado brasileiro.
No campo conceitual, genocídio aqui deve ser compreendido na mesma perspectiva trabalhada pelo Betinho, ou seja, “crime contra a humanidade que visa destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, por meio de atos que levem seus membros à morte, lesões à integridade física ou mental, condições de vida destrutivas, etc .”
Infelizmente, por não haver há época no país instrumentos legais para apurar as denúncias, a Constituição só seria aprovada em 1988, Betinho atribuiu posteriormente ao ministro Delfin Neto a responsabilidade pela não investigação e punição dos culpados.

CONTEXTO HISTÓRICO - Como personagens destacadas daquele período temos o general João Batista Figueiredo, presidente da República, o Ministro Delfin Neto, o sociólogo Herbert de Sousa (o Betinho) do IBASE e a CNBB. No Semiárido, dentre as organizações que surgiram os inícios dos anos 80 podemos citar, dentre tantas, no Ceará em 1981 o Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador (CETRA), e no Piauí, em 1982, o Centro Piauiense de Ação Cultural (CEPAC). Criadas nos anos 60 e 70, ligadas a igreja ou a movimentos ecumênicos internacionais, podemos citar na Bahia em 1967 o Movimento de Organizações Comunitárias (MOC) e na Paraíba, em 1970, o PATAC.

PREFÁCIO - Superação da pobreza rural no Semiárido brasileiro: a trajetória do Projeto Dom Hélder Câmara

 Antonio Gomes Barbosa1 “Ótimo que a tua mão ajude o vôo...Mas que ela jamais se atreva a tomar o lugar das asas...” (Dom Hélder Câmara) Ao ...