De Dom João VI, em 1816, a Dilma Rousseff, em 2012: Estado, secas e histórias de vidas, mortes e ausências. (I)
Antonio
Gomes Barbosa.
Sociólogo, coordenador do Programa Uma
Terra e Duas Águas (P1+2) da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA).
“As
secas do extremo norte delatam, impressionadoramente, a nossa imprevidência,
embora seja o único fato em nossa vida nacional, ao qual se pode aplicar o
princípio da previsão”
(Euclides da Cunha, Cruzadas nos
Sertões).
No
Semiárido, neste ano de 2012, vive-se uma das maiores secas dos últimos 30
anos. Como facilmente será observada, conjunturalmente, esta é a primeira
grande seca no país pós-ditadura militar, um desafio ao nosso Estado
Democrático de Direitos. Nenhum dos presidentes anteriores: José Sarney,
Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique ou Lula, se viram frente a
uma seca de tamanha dimensão. Neste contexto se faz necessário aprofundar o
tema, entender seus efeitos e intervir em seus desdobramentos.
O que comumente se conhece como
seca ou estiagem, é um fenômeno natural que ocorre em várias outras regiões do
planeta. São fenômenos cíclicos que obedecem lógicas temporais verificáveis,
portanto, passíveis de previsão. A seca em si, enquanto fenômeno natural, não
se caracteriza como problema, é parte do funcionamento regular da natureza.
Porém, seus efeitos têm se mostrado implacáveis em países que pouco enfrenta a
questão a partir da construção de infraestruturas hídricas para o estoque. No
tocante ao Semiárido brasileiro, pelo que se constata ao observar os últimos
200 anos, as secas de maior intensidade aconteceram em intervalos aproximados
de 30 anos.
O artigo De Dom João VI, em
1816, a Dilma Rousseff, em 2012: Estado, secas e histórias de vidas, mortes e
ausências, é dividido em quatro partes e tem como intenção revisitar
elementos históricos que rodeiam o tema, ajudar aprofundar seus significados e
contribuir para construção de uma ciência da convivência com o Semiárido. O
texto tratará da história das secas no Semiárido nos últimos 200 anos,
abordando a perspectiva do combate à seca, que neste ano volta forte no
discurso do governo, o surgimento e fortalecimento da indústria da seca e, em
contraposição, as práticas de convivência com o Semiárido em curso.
A primeira parte retrata as três
grandes secas acontecidas no período do Império, 1816, 1845 e 1877/1878 e conta
como se deu o surgimento da Indústria da Seca e como se estabeleceu no
imaginário coletivo a representação do Nordeste como região pobre e miserável.
O segundo artigo aborda as secas
do início da República, 1915 e 1952. Nesta época, os governos em parceria com
os coronéis da Indústria da Seca combateram de forma veemente todos e quaisquer
movimentos regionais que, a exemplo de Canudos, Caldeirão de Beato Zé Lourenço,
Pau de Colher e outros, questionavam o modelo estabelecido.
O terceiro versa sobre a seca de
1982, bem mais presente em nossas lembranças, que apresenta elementos e
iniciativas, ainda que pequenas, de ações na perspectiva da convivência com o
Semiárido. Destaque neste campo deve ser dado à campanha de distribuição de
sementes e apoia a instalação de casas de sementes adaptadas, me meados 1982, coordenada
pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O período posterior permitiu
o exercício de inúmeras experiências e da sistematização destas práticas. O
surgimento da ASA, enquanto rede deu se na sequencia deste período, com ela, o
Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e o Programa Uma Terra e Duas Águas
(P1+2).
O quarto e último artigo desta
série trata da situação da seca vivida este ano no governo Dilma: como o
governo se movimenta, quais os possíveis efeitos de suas ações, a inevitável
comparação com governos anteriores em situações análogas – o que as aproxima e
as difere de outras secas? E trataremos também do papel e da importância da
ação da sociedade civil no difícil diálogo com o governo Dilma.
I – A Família Real e a Gênese
da Indústria da Seca
Para o jornalista e escritor
Laurentino Gomes, autor de “1808”, obra ganhadora do prêmio Jabuti de
Literatura e que descreve a história da família real no Brasil sob o comando do
Imperador Dom João VI, ao destacar os elementos conjunturais que contribuíram
para o movimento da proclamação da República Pernambucana, no Nordeste, em 1817,
cita a seca de 1816 dentre os principais fatores.
Os efeitos da seca foram tamanhos
que, somado a fragilidade do Estado, se tornara terreno propício às ideias
libertárias e sociais que passavam a alterar a geopolítica mundial. Em um país
continental e ainda colônia, o que se esperava do Estado, comandado pela
família real, longe dos ventos das revoluções liberais, era uma presença maior
na vida das regiões. Essa qualidade na presença estabelece uma divisão mais
justa dos “recursos públicos”, formados - para além do tesouro da coroa, da
mineração e da exportação do açúcar e de grãos - de altos impostos, cobrados
indistintamente. Porém, o que se observou foi a destinação destes quase que
exclusivamente para garantir o luxo e a boa vida da família real e de uma
pequena aristocracia em seu entorno, sediada no Rio de Janeiro.
Neste caso, a seca do Sertão
jamais se constituiria prioridade de Estado, muito menos resultaria em uma ação
no sentido resolutivo do problema. Porém, os efeitos da seca não seriam tão insignificantes
assim para o centro do poder. Para alguns, o que era problema poderia vir a ser
oportunidade.
Alguns anos depois, na primeira
Carta Magna, artigo 179 da Constituição Política do Império do Brasil,
assinada em 1824, o Estado fica responsabilizado para com os casos de
calamidades nacionais. Surge então a “Garantia do Socorro Público”. A
partir desse momento, nascem as condições jurídicas para o surgimento da “Indústria
da Seca”.
Se a primeira grande seca
vivenciada pela família real aconteceria oito anos após a sua chegada ao
Brasil, 1816, a última acontecera 11 anos antes do final do Império, do
nascimento da República. Mas, como se observará, no intervalo entre estas duas,
existiu outra grande seca.
O jornal Cearense,
importante fonte de registros e informações sobre a grande seca dos anos
1877/1878, na edição de 26 de abril de 1877, com o título “Secca” publica o
depoimento de um ilustre morador da cidade de Aracati, Dr. Miguel de Castro,
que ao descrever a situação vivida naquele ano faz menção a outra grande seca
vivida anterior aquela:
Estamos a braços com
uma secca, que será muito mais dannosa e fatal que a de 1845, em que, aliás,
muita gente sucumbiu a fome.
Dom Pedro II, em condições
políticas diferenciadas à de Dom João VI, considerado por muitos um imperador
sensato, genuinamente brasileiro e bom gestor, vivenciou as duas outras secas
do período Imperial. Na primeira de seu reinado, muitos poderiam justificar que
seu governo estava no início, era frágil e com muitas cisões, que para manter o
poder, tivera que enveredar pela prática da distribuição de favores e benesses
para conquistar aliados.
Mas, em precisos 29 anos após a
seca de 1816, uma nova tragédia assolava o Sertão, pelo relato do Dr. Miguel de
Aracati no Ceará: “muita gente sucumbiu à
fome”. Os efeitos novamente foram devastadores: perda total de lavouras e
de rebanhos, existência de um exército de retirantes e morte de milhares no
campo.
Em tais situações, a alternativa
para quem é camponês, e por algum motivo continuara vivo, era fugir para as
médias e grandes cidades no entorno em busca de melhores condições de vida.
Para garantir a alimentação dos familiares, muitos eram levados à mendicância
e/ou a cometer pequenos delitos, sobretudo furtos. Para os que permaneciam no
campo, o cardápio alimentar era escasso e pouco convencional: cactos, raízes,
répteis, pássaros, animais silvestres, entre outros. Da parte do Estado quase
nada foi feito, a seca passou incólume. Porém, diferente da de 1816, esta não
provocou grandes revoltas políticas dos poderosos na região. Alguns
coronéis/fazendeiros/políticos, agora amparados pela Constituição, foram até
agraciados com a nova política do “socorro”.
Na prática, se no reinado de Dom
Pedro I foram criadas as bases jurídicas para o surgimento da “Indústria da
Seca”, é no reinado de Dom Pedro II que esta se inaugura e se fortalece. A aproximação
com os coronéis da seca permitiu uma relação passiva entre a Coroa e os
coronéis do Nordeste. Se por um lado não se enfrentava de forma concreta os
problemas apresentados pela seca, por outro, a política de benesses do império permitia
o repasse de recursos públicos que alimentavam a politica local. Esta por sua
vez, alinhava-se cada vez mais ao governo central.
Anos depois, agora em 1877, uma
nova grande seca apresenta-se ao governo de Dom Pedro II, que já mais
experiente e fortalecido, embora enfrentasse a oposição dos abolicionistas,
pouco fez de diferente em relação à seca anterior. Limitado a continuar
beneficiando os coronéis do Nordeste com sua política de socorro, agora
materializada na construção de açudes em áreas particulares, contratação de
trabalhadores a preços irrisórios para frentes de serviços nas fazendas dos
coronéis e repasse de montantes de recursos para ser dividido entre as
lideranças políticas, que por sua vez, voltava em apoio político à Família Real
no parlamento. A política de uma mão lava a outra. Quanto à seca em si, o
discurso era de ser preciso combatê-la.
No campo concreto, não existiam
ações que amenizassem os efeitos e as consequências sociais da seca, sobretudo
para a grande população desprovida de quaisquer bens materiais. As poucas vozes
que se levantavam contra Dom Pedro II e o parlamento (deputados e senadores), formadas em grande parte pelos
abolicionistas, pouco repercutiam na mídia nacional. Destaque importante deve
ser dado ao artigo de Major Capote, publicação da Gazeta de Notícias, em
13 de julho de 1877, com o título “A
secca do Ceará e governo imperial”, artigo que o Jornal do Commércio negou-se
a publicar, que relata a importância dada ao fato pelo Imperador e a
passividade do parlamento brasileiro.
Morre
o povo a fome no Norte, o Imperador diverte-se em Pariz! Não há um deputado, um senador que
tenha a coragem de interpellar esse desgraçado governo, a bem de saber que seus
suditos morrem a fome, quando elle banqueteia-se e diverte-se longe d’esse
mesmo povo que com o suor lhe paga para bem manter suas prerrogativas e
defensa!
Enquanto o Imperador e o
parlamento pouco se linchavam para a seca no Nordeste, o jornal Cearense
registrava o alastramento de seus efeitos pelo Piauí, Ceará, Rio Grande Norte,
Paraíba e outros. No centro das notícias: a escassez de alimentos, perda dos
rebanhos, mortalidade de crianças e adultos e a existência de um grande
contingente de retirantes vagando pelos campos e cidades em busca de alimentos.
No Ceará, a fome, a morte, o desespero e a migração reinavam.
Horrores
da fome – Cearense - 10.6.1877
No
Ceará já morre gente de fome; “A desesperadora crise da secca vae cada vez mais
em augmento, por todo este município, cuja população vive em sobressaltos, e já
muitos se acham em preparativos de emigrar para essa capital...”
.......................
“Já
morreram quatro crianças victimas da fome; e o povo não tem mais de que se
sustentar, porque se esgotaram as raízes de mucuná e pau mocó...”
Para as demais regiões do país,
em especial Sul e Sudeste, pela fragilidade e domínio da imprensa, a seca era
totalmente desconhecida, era como se nem existisse. Até que em abril de 1878, a
Revista O Besouro, do editor e caricaturista Raphael Bordallo Pinheiro,
publica o artigo de capa “A seca do Ceará”, onde descreve de forma sarcástica o
“socorro” dado pela Companhia de Feno Nacional aos animais que morriam de fome,
enquanto os retirantes permaneciam sem socorro (ALMEIDA, 2011).
Em maio, o jornal enviara o jovem
José do Patrocínio para uma cobertura da seca, que já no caminho, registrava
suas impressões, que seriam enviadas e publicadas pela A Gazeta de Notícias:
Criancinhas
nuas e seminuas, com os rostos escaveirados, cabelos emaranhados sobre crânios
enegrecidos pelo pó das longas jornadas, com as omoplatas e vértebras cobertas
apenas por pele ressequida, ventres desmesurados, pés inchados, cujos dedos e
calcanhares foram disformados por parasitas animais, vagam sozinhas ou em
grupo, tossindo a sua anemia e invocando, com a voz fraquíssima, o nome de Deus
em socorro da orfandade.
Para além de romper o silêncio e
dar visibilidade à seca de 1877/1878, de mostrar a inexistência da ação do
Estado brasileiro, esta matéria do O Bezouro ainda viria estabelecer dois
outros grandes marcos na história do Brasil. Uma, o início do fotojornalismo
nacional, a outra, menos gloriosa, e com repercussões até os dias de hoje, a
criação de um imaginário de Nordeste de fome, miséria, terra rachada e de
pessoas precisando de socorro. Um lugar inviável. De morte e de dor.
Para muitos estudiosos da
história do Nordeste, com a seca de 1877/1878, a partir das imagens
apresentadas e da grande repercussão que estas criaram, não apenas outros
jornais enveredariam por este prisma, como até mesmos os livros oficiais de
geografia da época e posteriores passariam a se repostar à região a partir
destas imagens. A afirmação de que o Nordeste surgiu a partir daí é correta,
mas este não é o verdadeiro Nordeste.
Se os problemas da região estavam
associados à falta de água e à existência de um povo (sub-raça) incapaz de
resolver seus próprios problemas, a saída não poderia ser outra, se não, a de
mudar a sequidão da região através da construção de grandes açudes, da prática
da irrigação e até da transposição do rio São Francisco, e socorrer o povo.
Esta formulação caiu como luva nos interesses da já iniciada e agora,
organizada, “INDÚSTRIA DA SECA”.
O editorial do jornal Cearense, de 7 de junho de 1877 traz o
seguinte:
TRABALHO
E NÃO ESMOLA
O
que convém as províncias flagelladas pela secca é o socorro distribuido pelos
seus habitantes, de modo que o solo seja o primeiro a tirar proveito e adquirir
armas para appolas às inclemências climatéricas. Neste caso, o trabalho será um
meio e o melhoramento da província o fim dos socorros prestados pelo governo a
particulares.
........................
E
preciso que o sr. Dezembargador presidente se capacite de que o único meio de
reter a população em seus respectivos sítios, é dotar a província de seus
melhoramentos, é favorecer a abertura de açudes e depósitos d’água, principal
agente fertilisador e conservador da lavoura.
Parte da imprensa local destacava
a “ajuda” da Família Real como esmola e cobrava iniciativas ancoradas localmente
como saída para a relação de dependência. Muitos que aqui viviam eram “novos
livres” ou ex-escravos fugidos das fazendas e/ou das secas; eram trabalhadores
do corte da cana e do plantio do café; eram vaqueiros; eram mestiços e
indígenas, que, em busca de melhores dias, vieram habitar a região. Os limites
não se restringiam à seca, estavam, sobretudo, na concentração das terras e na
precariedade no mundo do trabalho.
Mesmo com todo o descuido da Família
Real com o povo do Nordeste, o império viu a região crescer e ficar ainda mais
povoada. Com abolição da escravatura, que não se deu o trabalho de alterar a
estrutura fundiária no país, a quase totalidade das famílias do campo permaneceu
como “moradores” dos seus antigos senhores como nas condições de meeiros,
arrendatários, capatazes, vaqueiros, etc. Outra parte, simplesmente vagava.
Foi este povo que construiu as
bases para uma ciência da Convivência com o Semiárido, o que abordaremos de
forma mais detalhada nos próximos artigos, em especial no terceiro e quarto
desta série.
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