sábado, 9 de junho de 2012

''As secas são previsíveis. É uma questão de se prevenir''. Entrevista com Antônio Barbosa


“É obvio que a existência de quase setecentas mil cisternas no semiárido brasileiro melhorou a condição de vida das famílias, mas estamos falando de um milhão de famílias que continuam desamparadas”, declara o coordenador da ASA.

Confira a entrevista.


A seca que atinge o semiárido brasileiro é uma das mais intensas dos últimos anos. Embora este seja o clima característico da região, a população do semiárido tem sofrido por conta da falta de infraestruturas hídrica e produtiva para enfrentar esse período de estiagem. Em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone, Antônio Barbosa esclarece que é possível conviver com períodos como esse, mas é preciso “dotar os agricultores de infraestruturas hídricas e produtivas, que os permitam passar pelos períodos de estiagem”.

De acordo com Barbosa, a seca causa uma série de implicações aos sertanejos e desestabiliza a economia local e regional. “Muitas famílias que vivem no semiárido têm nos animais uma perspectiva de poupança, ou seja, elas guardam os animais para vendê-los em caso de necessidade, quando adoecer alguém, por exemplo. Então, em períodos de estiagem as pessoas vendem os seus animais e ficam numa situação de vulnerabilidade. Toda a economia local é prejudicada porque a oferta de animais é muito grande e as pessoas não os compram porque sabem que irão perder dinheiro”, relata. E acrescenta: “A última seca representou uma perda de 9% na economia regional. Então, toda vez que ocorre uma seca intensa não há um problema localizado apenas para os agricultores, mas sim um problema que se estende para as cidades, porque aumenta a criminalidade em função da disputa por alimentos, porque há mais pessoas na rua, porque aumenta a demanda por educação no meio urbano etc.”.

Para melhorar a condição de vida dos sertanejos, Barbosa enfatiza que a distribuição de terra continua sendo essencial, pois somente no semiárido concentra-se a maior população rural do país. “Existem no meio rural do semiárido hoje algo em torno de quatro milhões e cem mil famílias. No Nordeste está a metade dessas famílias. Portanto, o semiárido é a região mais populosa do meio rural do Brasil e, ao mesmo tempo, é a região que tem a maior concentração de terra no país”, informa. Em sua avaliação, a solução para minimizar os efeitos da seca tem de ser individuais. Ele explica: “É preciso construir possibilidades de as famílias escoarem a sua produção assim como lógicas de beneficiamento para que elas possam ser independentes. É isso o que falta, e é isso o que devemos cobrar do Estado brasileiro”.


Antônio Barbosa (foto abaixo) é coordenador da Articulação no Semiárido Brasileiro – ASA.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – O semiárido nordestino está vivendo uma de suas piores secas das últimas décadas? Quais são as características dessa seca?

Antônio Barbosa
– Do ano de 1500 para cá, depois da chegada dos portugueses ao Brasil, existem registros de institutos de pesquisas de que houve pelo menos 72 grandes secas nesse período. O primeiro registro data de 1555, de uma seca que aconteceu na Bahia. A seca de 2012 é comparada a uma que aconteceu em 1915, além das três grandes secas que ocorreram no período do Império. A seca atual é a primeira grande seca deste século.

A seca produz muitas consequências, como destruição das lavouras, porque os agricultores perdem tudo que plantaram e, às vezes, não conseguem plantar; a perda de animais, como caprinos e ovinos. De cada 100 cabeças de caprinos que existem no Brasil, 90 estão no Nordeste e 75 estão no semiárido. Além disso, as feiras de animais também são atingidas. Feiras que comercializam oito mil animais por evento atualmente comercializam cerca de 800 animais. Quando falta água, as pessoas também passam a ter problemas de saúde por causa do uso de água contaminada. Historicamente, também se percebem êxodo rural, fome e mortalidade.

IHU On-Line – A seca é um processo natural do semiárido? Por quais motivos ela se agrava tanto em alguns períodos?

Antônio Barbosa
– A seca é um fenômeno comum pela própria composição do semiárido, e acontece no mundo todo. Não é, portanto, uma exclusividade do Brasil. Essa característica está associada a um conjunto de outros fenômenos e, no caso do Brasil, está associada ao El Niño, ao aquecimento do mar, do aumento da temperatura e a questões da natureza. Mas isso não torna o semiárido um local inabitável.

IHU On-Line – Quais são as implicações da seca na vida cotidiana do sertanejo? Além da perda de animais, falta d’água, problemas de saúde, como as pessoas convivem com a seca, especialmente em períodos em que ela é mais intensa?

Antônio Barbosa
– Tanto a chuva como a seca acontece em toda a região do semiárido, mas ela afeta as pessoas que não têm terra, e os pequenos e médios agricultores, que não dispõem de um local para armazenar água, sementes etc. Sobretudo, porque no semiárido brasileiro há uma carência de infraestrutura produtiva.

Quando os agricultores não têm água para beber, os animais são os primeiros a perecerem, porque nos períodos de estiagem, obviamente as famílias fazem uma opção e, entre ter água para a família e para os animais, os animais perdem. Por isso que no início de uma seca já é possível visualizar uma série de animais mortos. Isso reflete diretamente na economia local, porque muitas famílias que vivem no semiárido têm, nos animais, uma perspectiva de poupança, ou seja, elas guardam os animais para vendê-los em caso de necessidade, quando adoecer alguém, por exemplo. Então, em períodos de estiagem as pessoas vendem os seus animais e ficam numa situação de vulnerabilidade. Toda a economia local é prejudicada porque a oferta de animais é muito grande e as pessoas não os compram porque sabem que irão perder dinheiro. O preço dos animais nesses períodos cai para um terço ou até um quarto do valor. Portanto, o maior efeito das secas é desestabilizar as economias locais e, por isso, as pessoas dependem das políticas emergências, como o Programa Bolsa Família.

Desestabilidade
Como as pessoas ficam desestabilizadas, elas acabam se endividando e por isso vendem seus terrenos, suas casas. Os efeitos da seca ocorrem em “cascatas”, porque, se os agricultores saem do semiárido, falta mão de obra para as grandes propriedades, que também diminuem a produção.

A última seca representou uma perda de 9% na economia regional. Então, toda vez que ocorre uma seca intensa não há um problema localizado apenas para os agricultores, mas sim um problema que se estende para as cidades, porque aumenta a criminalidade em função da disputa por alimentos, porque há mais pessoas na rua, porque aumenta a demanda por educação no meio urbano etc.

IHU On-Line – Os problemas dos efeitos devastadores da seca continuam sendo a concentração da terra e da água? Quais são os problemas estruturais não resolvidos pelos governos ligados à problemática da seca?

Antônio Barbosa
– Essas duas questões são significativas. Se não forem feitas ações para dividir parte da terra entre os sertanejos, para que eles consigam viver nesta região, será impossível avançar no semiárido. Por mais que se consiga resolver outras questões, a divisão da terra continua sendo fundamental. Existem no meio rural do semiárido hoje algo em torno de quatro milhões e cem mil famílias. No Nordeste está a metade dessas famílias. Portanto, o semiárido é a região mais populosa do meio rural do Brasil e, ao mesmo tempo, é a região que tem a maior concentração de terra no país.

Para conviver com a seca é preciso construir estruturas que permitam estocar água para beber e para produzir. As famílias que hoje têm uma cisterna não sofrem o que as famílias que não têm, sofrem. Por isso o governo precisa investir na construção de cisternas para cada família.

Também é preciso investir em estruturas que possam ajudar os agricultores a armazenarem a sua alimentação, ou seja, as sementes e os produtos que foram plantados. Uma infraestrutura de armazéns, paióis, currais, ajudaria os agricultores a aguentar esse período. Também era preciso estocar os alimentos para os animais, como serragem, por exemplo, através de um conjunto de técnicas disponíveis. Seria possível passar pela seca sem enfrentar grandes dificuldades. O problema é que falta essa infraestrutura, e nos períodos de seca, as ações são voltadas para a açudagem, que cumprem uma função, mas não resolve o problema, porque muitas pessoas continuam passando fome e sede. Então, não adianta apenas investir em um açude imenso, que ajuda uma família, mas que fica a 100 quilômetros de distância da outra. A saída tem que ser individualizada. Então, faltam ações que permitam a elaboração de uma estrutura para as famílias. Não estamos falando de algo caro, mas de algo barato, de algo possível. A Articulação do SemiáridoASA tem trabalhado numa perspectiva de optar por algo pequeno, barato e perto.

IHU On-Line – A transposição do rio São Francisco pode ser uma alternativa, ou não chegará até os que mais precisam da água?

Antônio Barbosa
– Essa é a saída proposta pelo governo. A transposição do Rio São Francisco pode até servir para algumas famílias que de alguma forma conseguirão se apoderar da água. Mas 75% da água da transposição é destinada a projetos de irrigação, e outra parte da água será destinada às siderurgias de Fortaleza, e algo em torno de 6% será destinada para o consumo humano. O sertão é muito grande e a transposição do Rio São Francisco tem dois canais que farão ziguezague pelo sertão.

É preciso construir possibilidades de as famílias escoarem a sua produção assim como lógicas de beneficiamento para que elas possam ser independentes. É isso o que falta, e é isso o que devemos cobrar do Estado brasileiro. É obvio que a existência de quase 700 mil cisternas no semiárido brasileiro melhorou a condição de vida das famílias. Mas estamos falando de um milhão de famílias que continuam desamparadas.

IHU On-Line – Como anda o Programa Um Milhão de Cisternas? Qual é a sua ajuda para combater a seca?

Antônio Barbosa –
Esse Programa é a principal ação existente hoje, que permite que os agricultores não enfrentem os problemas que já enfrentaram nas décadas de 1980 e 1990. Só que quando se tem uma seca da dimensão da atual, a situação fica complicada. Para se ter uma ideia, a água que as famílias tinham acumulado era das chuvas do ano passado, porque esse ano não choveu. Então, as águas dessas cisternas ou já acabaram ou estão acabando. Nesses casos extremos, precisamos de ações emergenciais, ou seja, abastecer as cisternas. O governo precisa garantir que as cisternas sejam abastecidas com água de qualidade.

Existem iniciativas interessantes como uma do governo do estado de Pernambuco, que está colocando GPS nos carros-pipas, para saber se eles estão conseguindo abastecer as famílias e para saber de onde estão retirando a água. São as cisternas, de fato, que estão garantindo o armazenamento da água para beber.

Entretanto, o Programa Um Milhão de Cisternas está parado há dois meses, e existe a possibilidade dele reiniciar a partir do próximo mês. Em períodos de estiagem, precisamos separar dois debates: um é o das ações emergenciais, para atender àqueles que sentem fome e sede; e o outro diz respeito às medidas estruturantes, como a construção de cisternas, barragens subterrâneas, ações para gerar emprego etc.

Nós concordamos com o Programa Água para Todos, do governo federal, mas esse programa tem um problema, as cisternas de plástico, que são compradas de grandes empresas, e não geram mão de obra, e nem fomentam a economia local. O governo deveria abandonar essa ideia das cisternas de plástico e apostar nas cisternas de placa, que geram empregos. Essa seria uma ação complementar ao combate à seca.

IHU On-Line – Qual é o significado e a importância do Bolsa Família e do Bolsa Estiagem para os agricultores no semiárido?

Antônio Barbosa
– O Programa Bolsa Família também ajuda nesses momentos de seca, mas ele cumpre uma função emergencial para esse período.

IHU On-Line – Os governos Lula e Dilma avançaram em políticas públicas para mitigar os efeitos da seca no semiárido?

Antônio Barbosa
– Existe um avanço no sentido de uma quebra paradigmática, ou seja, a lógica de usar grandes açudes para combater a seca tem perdido peso no sentido de ser a única saída para resolver o problema da seca. No governo Lula houve um investimento na construção de cisternas para resolver os problemas individualmente. O grande avanço do governo Dilma é o programa Água para Todos dentro do programa Brasil Sem Miséria, que leva em conta a construção de pequenas infraestruturas para atender às famílias. Então, no campo da intencionalidade, nenhum governo conseguiu fazer o que Dilma está fazendo. O governo Lula apoiava as cisternas, mas não tinha um programa com essas características. O governo precisa agora acertar o passo, ou seja, reconhecer que a construção das pequenas infraestruturas precisam contar com a participação das famílias, não pode ser apenas um programa de metas.

Construir cisternas não passa por empreiteiras, mas sim pela mão de obra das famílias. Elas querem e precisam ser protagonistas desse processo. Uma família que constrói a sua cisterna tem conhecimento sobre o processo, enquanto que uma família que recebe uma cisterna de plástico irá depender da assistência de uma empresa quando a cisterna furar. Temos de caminhar no sentido de garantir a autonomia das famílias. Já se avançou muito nos últimos dois governos, mas isso ainda é muito pouco, principalmente quando se comparam os recursos.

Para construir um milhão de cisternas, o governo gastaria dois bilhões de reais. Só a transposição do Rio São Francisco está custando oito bilhões e quatrocentos milhões de reais, e não irá atender às famílias. Então, é uma questão de prioridade. Para construir um milhão de segunda água [1], o governo gastaria dez bilhões de reais, mas isso resolveria o problema das famílias. Dez bilhões parece um valor elevado, mas quando se compara ao crédito que o governo libera para o agronegócio, esse valor não é nada, considerando uma região que concentra metade dos agricultores do país.
IHU On-Line – A Articulação do Semiárido – ASA defende a convivência do sertanejo com o semiárido. É possível essa convivência mesmo em situações extremadas como essa?

Antônio Barbosa –
Trabalhamos com o princípio da previsão, ou seja, as secas são previsíveis e o Estado brasileiro já sabia que iria ter seca. É uma questão de se prevenir. Como as formigas fazem quando vai chover? Elas armazenam alimentos. Então, nossa proposta é armazenar e estocar água, sementes. No semiárido chove muito, então não se trata de falta de chuvas. A ASA tem defendido que é preciso dotar os agricultores de infraestruturas hídricas e produtivas que os permitam passar pelos períodos de estiagem. Esse é um projeto possível. Já construímos mais de dez mil cisternas, já instalamos uma quantidade significativa de bombas d’águas populares para trabalhar com água subterrânea, já instalamos barragens subterrâneas. Essas são ações simples, baratas, que tem o apoio do governo brasileiro, mas que o governo precisaria apoiar ainda mais.

Nota:
[1] O Programa Segunda Água apoia a construção de tecnologias sociais de captação de água da chuva em propriedades de agricultores familiares do Semiárido.

Entrevista: “Água é direito”



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Antônio Barbosa, coordenador do P1+2, da ASA

O Semiárido brasileiro tem vivenciado um momento de forte estiagem. Muitas famílias já estão sem água para garantir a sua alimentação e a alimentação dos seus animais. Além disso, produções estão sendo perdidas por conta da falta de chuvas. O Governo Federal, juntamente com os governos estaduais, lançaram diversas ações emergenciais para tentar minimizar a situação das famílias em todos os estados da região. No entanto, a sociedade civil organizada tem pressionado os governos para uma urgência na efetivação das medidas anunciadas e a garantia da participação nas discussões sobre a seca.

Nesta edição de nº 11 do boletim O Canto do Sabiá, iniciamos uma série de entrevistas sobre a seca. Abordando a Convivência com o Semiárido, por acreditarmos que o conjunto de ações emergenciais para esse momento são importantes. Mas que também é responsabilidade do governo, ao longo dos anos, realizar políticas estruturantes de convivência com a região e com o objetivo de garantir uma vida de qualidade a todas as pessoas do Semiárido. E para iniciar a série, conversamos com Antonio Barbosa, coordenador do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA).

Centro Sabiá – Barbosa, combate à seca ou Convivência com o Semiárido?

Antônio Barbosa –Convivência com o Semiárido com certeza. Primeiro porque seca não se combate, acho que essa é uma discussão já antiga e conviver com a região é a grande saída. E seca é milenar, desde que existe a história do Nordeste, pelo menos quando vai mudando basicamente o mundo, você tem seca. E seca você não tem só no Brasil você tem em vários outros países do mundo, inclusive nos Estados Unidos. Você tem seca na Austrália, você tem seca na Ásia, você tem seca na África e você tem seca no Brasil. Seca é um fenômeno natural, então se é da natureza é comum, é aceitável, se convive com ela, se previne. E seca está associada, sobretudo a ideia de Convivência com o Semiárido, porque conviver com o Semiárido é estocar, a principal estratégia é estocar. E estocar água principalmente para os períodos de estiagem.

Centro Sabiá – Temos vivido um momento onde é colocado que é a maior seca dos últimos 30 ou 40 anos. E temos visto um movimento dos governos federal e estaduais de ações emergentes para esse período. Mas essa situação não poderia ter sido amenizada com ações mais estruturantes ao longo dos tempos?

Barbosa – Temos secas que tem ciclos em torno de 30 anos, são as grandes secas. A que estamos vivendo agora é uma delas. Temos secas que vou chamar de médias secas, mas não são comuns, e temos secas que acontecem a cada seis anos. Estudos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) dão conta de registrar que desde quando os portugueses chegaram ao Brasil, no ano de 1500, nós tivemos de lá para cá 72 secas, que é um número considerável. Dessas, 40 são anuais e pelo menos 32 são plurianuais, ou seja, aquelas que acontecem para além de um ano. Essa que nós estamos vivendo é plurianual. E eu acho que essa seca começou de forma mais forte no Ceará no ano de 2010, e ela se expande agora pra muitos mais estados, mas é uma seca que tende ir até o final do próximo ano. Então, essa é uma das maiores secas dos 30, dos 40, dos 50 anos, ou em alguns casos dos últimos 60 anos. Seca igual a essa a gente teve em 1932, mais tarde em 1982, mas também uma outra grande seca em 1915, que possivelmente é a seca que retrata a história do Nordeste, ou seja, o Nordeste é novo. E o Nordeste é novo em duas situações. O Imaginário de Nordeste, enquanto lugar seco, de pessoas frágeis, de pé rachado, de criança doente, essa imagem é midiática, imagem construída pela própria mídia. E nessa seca, inclusive, nós éramos Norte, não existia Nordeste. Nordeste surgiu para identificar uma região que é seca. Então a região Nordeste surgiu a partir da seca, ele surgiu inclusive para determinar a área de atuação do instituto que hoje é o DNOCS [Departamento Nacional de Obras Conta as Secas]. Anterior a essa seca, em 1845, nós tivemos uma outra seca já no início do Império. Há quem acredite que a Indústria da Seca surge daí. Onde Dom Pedro I cria a ideia de uma ajuda e o governo de Dom Pedro II executa essa lógica de ajuda, de dinheiro para os fazendeiros, a ideia da açudagem, de construir açudes. E a primeira seca que se tem registro ela é de 1559, então 59 anos depois dos portugueses chegarem ao Brasil. Essa é uma questão que se repete. Essa fala longa é pra dizer isso que você dizia na sua pergunta. A seca se repete, ela tem prazos, do ano de 1559 para cá são 72 secas. Nós temos uma média de seis anos de duração de cada seca e o Brasil se preveniu pouco. E se preveniu pouco porque tinha uma opção clara de beneficiar os fazendeiros, os políticos locais, os coronéis, beneficiar a lógica da Indústria da Seca. Dizer que essa seca [que estamos passando agora] é igual as secas passadas é verdade. Dizer que o Estado brasileiro está nas mesmas condições do passado não é verdade, porque o próprio Estado foi pressionado pela sociedade.

Então a seca de 1982 foi um marco no sentido da participação da sociedade civil nessa caminhada e o início do diálogo da Convivência com o Semiárido. A seca ela está associada a lógica da Indústria da Seca, de grandes dinheiros, que significa dizer grandes obras, caras e distantes. E a Convivência com o Semiárido está associada a pequenas obras, baratas e perto das pessoas. Porque as saídas elas são perto, elas são locais. A sociedade civil ajudou o próprio Estado brasileiro a refletir sobre isso. E hoje você tem um conjunto de outras ações que são importantes. Está longe de resolver a situação, mas as organizações da ASA [Articulação no Semi-Árido Brasileiro] tem uma caminhada significativa sobre isso e pressionaram o Estado brasileiro a fazer algo diferente. Mas em momentos como esse [de grandes secas] um discurso errado volta. A Convivência ela é uma ideia, ela é um paradigma, mas não é hegemônico. A ideia do combate à seca ainda é hegemônica, mas eu acho que a gente já caminhou consideravelmente e o Estado brasileiro tem dado passos importantes, inclusive com algumas ações, como o Bolsa Família. Pode parecer estranho, mas ajuda as pessoas nesse período a se alimentarem, e um conjunto de outras iniciativas paliativas. Elas poderiam ser melhoradas. Ou seja, o governo foi pego de surpresa, quando na verdade ele já sabia que essa seca também existiria.

Centro Sabiá – Que relações políticas são construídas na lógica do combate à seca?

Barbosa – Primeiro dizer que é um retrocesso você ouvir de um ministro, ouvir da presidente, de um parlamentar, de um governador, de qualquer autoridade a ideia de se falar de combate à seca. É uma incoerência, porque seca não se combate. Mas essa fala não é uma desprovida de sentido não. Quem está falando isso sabe do que fala. Pois fala em carro pipa, em grandes açudes, em transferir recursos para um conjunto de políticos que eternamente se beneficiaram, que antigamente eram os coronéis, hoje é o agronegócio, o hidronegócio e que se beneficiam disso. Fala em perdoar créditos em relação a banco para grandes e médios produtores, inclusive para a área de irrigação. Fala em criar o que os municípios fazem que são os estados de emergência, ou seja, com o decreto do estado de emergência eu não preciso mais fazer licitação, eu não preciso pedir nenhuma permissão ao legislativo, ou seja, eu entro numa situação que vale tudo e em um ano eleitoral. Os agricultores também já estão cansados, porque sabem que seca não se combate, então tem alguma coisa errada aí, a gente precisa avançar num conjunto de outras ações que não são combate à seca. Nós precisamos cobrar do Estado brasileiro. Se o governo não se preveniu ele tem que ter políticas emergenciais, então se você não teve políticas estruturantes, políticas emergenciais são necessárias. Quem tem sede tem pressa, quem tem fome tem pressa, você precisa garantir uma quantidade de carros pipas abastecendo as cisternas, abastecendo as famílias, você precisa garantir, inclusive, distribuição de sementes, paras pessoas guardarem as suas e poderem usar outras para se alimentar, você precisa construir estratégias de manutenção dos animais ou pelo menos de garantir o reprodutor, de garantir suas matrizes, que as famílias não se desfaçam dos seus rebanhos. Para isso eles vão precisar de alimentos para os seus animais, precisa ter uma lógica de controle da qualidade da água que vai ser distribuída.

Então, tem um conjunto de ações emergenciais que elas são importantes, que a gente precisa cobrar e o governo precisa colocar e tem colocado de uma determinada forma, e tem muito dinheiro para isso. Mas e como fazer para que esse dinheiro chegue as pessoas? Que vai sair do governo federal vai. Se vai chegar as pessoas, vai depender muito da nossa cobrança de denunciar. A ASA inclusive vai apresentar uma proposta ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e aos Tribunais Regionais Eleitorais (TRE) no sentido de tentar construir uma campanha nesse período eleitoral, para dizer que a água é direito. Se alguém está lhe cobrando voto porque está lhe dando água, denuncie! Água é direito de todo mundo, garanta seu direito, garanta a convivência. Vender o voto está associado a Indústria da Seca e a cidadania está associada a Convivência com o Semiárido. Acho que esse é um caminho que a gente precisa construir. E precisamos cobrar para que nas próximas secas a gente não sofra como está sofrendo agora.

Centro Sabiá – Que ações a sociedade civil tem construído no Semiárido junto com as famílias e por que elas são de fato estruturantes ao contrário das ações emergenciais que estão sendo colocadas pelo governo nesse momento?

Barbosa – A saída para as famílias é uma saída individual. Para cada família, para cada pessoa a gente tem que garantir água, tem que garantir alimento. E muitas vezes o que o governo brasileiro faz é trabalhar com estatística ou trabalhar com média. Eu tenho três crianças e três pães. A criança que tem mais dinheiro come dois pães, a que tem mais ou menos come um pão e a que não tem não come nenhum. E no final as estatísticas dizem que tenho três crianças, três pães e cada uma comeu um pão e isso não é uma verdade. Então a saída ela tem que ser uma saída por família. Eu estou falando isso porque essa é uma das questões que a Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA) tem levantado. Ou seja, para cada família no Semiárido que não tem água para beber, que não tem água pra produzir, que não tem sementes, que não tem terra para produzir, que não tem os meios para fazer isso, ela tem que ser atendida. A nossa ação é chegar às famílias. A ideia do Programa Um Milhão de Cisternas [P1MC] é para que todas as famílias tenham água. Você construir o P1+2 que é o Programa Uma Terra e Duas Águas é para que todas as famílias possam ter água para produzir, para que todas as famílias possam estocar suas sementes, que tenham sua autonomia e essa autonomia, obviamente, ela gera um conjunto de outras coisas. Ela lhe permite ficar livre do mercado, ela lhe permite plantar o que você quer, lhe permite construir o seu patrimônio. A ideia da ASA é investir no sentido de você montar uma infra estrutura no meio rural do Semiárido. Nós somos no Brasil a região mais povoada no meio rural. Então, é preciso olhar para esse povo com ações que estão associadas a um direito.

O Brasil e o Semiárido serão felizes quando cada família tiver sua água para beber, sua água para produzir, tiver sua semente para guardar, tiver seus animais para criar, tiver uma educação voltada para essa região, que leve em consideração as suas questões do dia a dia. São essas ações que a gente acredita que são estruturantes, podem parecer pequenas, mas são as pequenas coisas que juntas formam grandes coisas. Nós não somos contrários a outras coisas, acho que é importante dizer isso. E a gente precisa cobrar do governo brasileiro nesse momento, sobretudo que suspenda a lógica das cisternas de plástico, que construa cisternas de placas, porque elas empregam as pessoas. Elas fazem com que o dinheiro circule e dinheiro circulando significa dizer água, significa dizer alimento, significa dizer educação, significa dizer cidadania, significa dizer vida diferente e significa dizer, sobretudo, Convivência com o Semiárido. Então, acho que são essas ações que a gente precisa caminhar, pra construir um Brasil e um Semiárido melhor e feliz.

por Catarina de Angola (Centro Sabiá)

foto: Arquivo ASACom

segunda-feira, 4 de junho de 2012

De Dom João VI, em 1816, a Dilma Rousseff, em 2012: Estado, secas e histórias de vidas, mortes e ausências. (I)


Antonio Gomes Barbosa.
Sociólogo, coordenador do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA).
As secas do extremo norte delatam, impressionadoramente, a nossa imprevidência, embora seja o único fato em nossa vida nacional, ao qual se pode aplicar o princípio da previsão
(Euclides da Cunha, Cruzadas nos Sertões).
No Semiárido, neste ano de 2012, vive-se uma das maiores secas dos últimos 30 anos. Como facilmente será observada, conjunturalmente, esta é a primeira grande seca no país pós-ditadura militar, um desafio ao nosso Estado Democrático de Direitos. Nenhum dos presidentes anteriores: José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique ou Lula, se viram frente a uma seca de tamanha dimensão. Neste contexto se faz necessário aprofundar o tema, entender seus efeitos e intervir em seus desdobramentos.
O que comumente se conhece como seca ou estiagem, é um fenômeno natural que ocorre em várias outras regiões do planeta. São fenômenos cíclicos que obedecem lógicas temporais verificáveis, portanto, passíveis de previsão. A seca em si, enquanto fenômeno natural, não se caracteriza como problema, é parte do funcionamento regular da natureza. Porém, seus efeitos têm se mostrado implacáveis em países que pouco enfrenta a questão a partir da construção de infraestruturas hídricas para o estoque. No tocante ao Semiárido brasileiro, pelo que se constata ao observar os últimos 200 anos, as secas de maior intensidade aconteceram em intervalos aproximados de 30 anos.
O artigo De Dom João VI, em 1816, a Dilma Rousseff, em 2012: Estado, secas e histórias de vidas, mortes e ausências, é dividido em quatro partes e tem como intenção revisitar elementos históricos que rodeiam o tema, ajudar aprofundar seus significados e contribuir para construção de uma ciência da convivência com o Semiárido. O texto tratará da história das secas no Semiárido nos últimos 200 anos, abordando a perspectiva do combate à seca, que neste ano volta forte no discurso do governo, o surgimento e fortalecimento da indústria da seca e, em contraposição, as práticas de convivência com o Semiárido em curso.
A primeira parte retrata as três grandes secas acontecidas no período do Império, 1816, 1845 e 1877/1878 e conta como se deu o surgimento da Indústria da Seca e como se estabeleceu no imaginário coletivo a representação do Nordeste como região pobre e miserável.
O segundo artigo aborda as secas do início da República, 1915 e 1952. Nesta época, os governos em parceria com os coronéis da Indústria da Seca combateram de forma veemente todos e quaisquer movimentos regionais que, a exemplo de Canudos, Caldeirão de Beato Zé Lourenço, Pau de Colher e outros, questionavam o modelo estabelecido.
O terceiro versa sobre a seca de 1982, bem mais presente em nossas lembranças, que apresenta elementos e iniciativas, ainda que pequenas, de ações na perspectiva da convivência com o Semiárido. Destaque neste campo deve ser dado à campanha de distribuição de sementes e apoia a instalação de casas de sementes adaptadas, me meados 1982, coordenada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O período posterior permitiu o exercício de inúmeras experiências e da sistematização destas práticas. O surgimento da ASA, enquanto rede deu se na sequencia deste período, com ela, o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2).
O quarto e último artigo desta série trata da situação da seca vivida este ano no governo Dilma: como o governo se movimenta, quais os possíveis efeitos de suas ações, a inevitável comparação com governos anteriores em situações análogas – o que as aproxima e as difere de outras secas? E trataremos também do papel e da importância da ação da sociedade civil no difícil diálogo com o governo Dilma.
I – A Família Real e a Gênese da Indústria da Seca
Para o jornalista e escritor Laurentino Gomes, autor de “1808”, obra ganhadora do prêmio Jabuti de Literatura e que descreve a história da família real no Brasil sob o comando do Imperador Dom João VI, ao destacar os elementos conjunturais que contribuíram para o movimento da proclamação da República Pernambucana, no Nordeste, em 1817, cita a seca de 1816 dentre os principais fatores.
Os efeitos da seca foram tamanhos que, somado a fragilidade do Estado, se tornara terreno propício às ideias libertárias e sociais que passavam a alterar a geopolítica mundial. Em um país continental e ainda colônia, o que se esperava do Estado, comandado pela família real, longe dos ventos das revoluções liberais, era uma presença maior na vida das regiões. Essa qualidade na presença estabelece uma divisão mais justa dos “recursos públicos”, formados - para além do tesouro da coroa, da mineração e da exportação do açúcar e de grãos - de altos impostos, cobrados indistintamente. Porém, o que se observou foi a destinação destes quase que exclusivamente para garantir o luxo e a boa vida da família real e de uma pequena aristocracia em seu entorno, sediada no Rio de Janeiro.
Neste caso, a seca do Sertão jamais se constituiria prioridade de Estado, muito menos resultaria em uma ação no sentido resolutivo do problema. Porém, os efeitos da seca não seriam tão insignificantes assim para o centro do poder. Para alguns, o que era problema poderia vir a ser oportunidade.
Alguns anos depois, na primeira Carta Magna, artigo 179 da Constituição Política do Império do Brasil, assinada em 1824, o Estado fica responsabilizado para com os casos de calamidades nacionais. Surge então a “Garantia do Socorro Público”. A partir desse momento, nascem as condições jurídicas para o surgimento da “Indústria da Seca”.
Se a primeira grande seca vivenciada pela família real aconteceria oito anos após a sua chegada ao Brasil, 1816, a última acontecera 11 anos antes do final do Império, do nascimento da República. Mas, como se observará, no intervalo entre estas duas, existiu outra grande seca.
O jornal Cearense, importante fonte de registros e informações sobre a grande seca dos anos 1877/1878, na edição de 26 de abril de 1877, com o título “Secca” publica o depoimento de um ilustre morador da cidade de Aracati, Dr. Miguel de Castro, que ao descrever a situação vivida naquele ano faz menção a outra grande seca vivida anterior aquela:
Estamos a braços com uma secca, que será muito mais dannosa e fatal que a de 1845, em que, aliás, muita gente sucumbiu a fome.
Dom Pedro II, em condições políticas diferenciadas à de Dom João VI, considerado por muitos um imperador sensato, genuinamente brasileiro e bom gestor, vivenciou as duas outras secas do período Imperial. Na primeira de seu reinado, muitos poderiam justificar que seu governo estava no início, era frágil e com muitas cisões, que para manter o poder, tivera que enveredar pela prática da distribuição de favores e benesses para conquistar aliados.
Mas, em precisos 29 anos após a seca de 1816, uma nova tragédia assolava o Sertão, pelo relato do Dr. Miguel de Aracati no Ceará: “muita gente sucumbiu à fome”. Os efeitos novamente foram devastadores: perda total de lavouras e de rebanhos, existência de um exército de retirantes e morte de milhares no campo.
Em tais situações, a alternativa para quem é camponês, e por algum motivo continuara vivo, era fugir para as médias e grandes cidades no entorno em busca de melhores condições de vida. Para garantir a alimentação dos familiares, muitos eram levados à mendicância e/ou a cometer pequenos delitos, sobretudo furtos. Para os que permaneciam no campo, o cardápio alimentar era escasso e pouco convencional: cactos, raízes, répteis, pássaros, animais silvestres, entre outros. Da parte do Estado quase nada foi feito, a seca passou incólume. Porém, diferente da de 1816, esta não provocou grandes revoltas políticas dos poderosos na região. Alguns coronéis/fazendeiros/políticos, agora amparados pela Constituição, foram até agraciados com a nova política do “socorro”.
Na prática, se no reinado de Dom Pedro I foram criadas as bases jurídicas para o surgimento da “Indústria da Seca”, é no reinado de Dom Pedro II que esta se inaugura e se fortalece. A aproximação com os coronéis da seca permitiu uma relação passiva entre a Coroa e os coronéis do Nordeste. Se por um lado não se enfrentava de forma concreta os problemas apresentados pela seca, por outro, a política de benesses do império permitia o repasse de recursos públicos que alimentavam a politica local. Esta por sua vez, alinhava-se cada vez mais ao governo central.
Anos depois, agora em 1877, uma nova grande seca apresenta-se ao governo de Dom Pedro II, que já mais experiente e fortalecido, embora enfrentasse a oposição dos abolicionistas, pouco fez de diferente em relação à seca anterior. Limitado a continuar beneficiando os coronéis do Nordeste com sua política de socorro, agora materializada na construção de açudes em áreas particulares, contratação de trabalhadores a preços irrisórios para frentes de serviços nas fazendas dos coronéis e repasse de montantes de recursos para ser dividido entre as lideranças políticas, que por sua vez, voltava em apoio político à Família Real no parlamento. A política de uma mão lava a outra. Quanto à seca em si, o discurso era de ser preciso combatê-la.
No campo concreto, não existiam ações que amenizassem os efeitos e as consequências sociais da seca, sobretudo para a grande população desprovida de quaisquer bens materiais. As poucas vozes que se levantavam contra Dom Pedro II e o parlamento (deputados e  senadores), formadas em grande parte pelos abolicionistas, pouco repercutiam na mídia nacional. Destaque importante deve ser dado ao artigo de Major Capote, publicação da Gazeta de Notícias, em 13 de julho de 1877, com o título “A secca do Ceará e governo imperial”, artigo que o Jornal do Commércio negou-se a publicar, que relata a importância dada ao fato pelo Imperador e a passividade do parlamento brasileiro.
Morre o povo a fome no Norte, o Imperador diverte-se em Pariz! Não há um deputado, um senador que tenha a coragem de interpellar esse desgraçado governo, a bem de saber que seus suditos morrem a fome, quando elle banqueteia-se e diverte-se longe d’esse mesmo povo que com o suor lhe paga para bem manter suas prerrogativas e defensa!
Enquanto o Imperador e o parlamento pouco se linchavam para a seca no Nordeste, o jornal Cearense registrava o alastramento de seus efeitos pelo Piauí, Ceará, Rio Grande Norte, Paraíba e outros. No centro das notícias: a escassez de alimentos, perda dos rebanhos, mortalidade de crianças e adultos e a existência de um grande contingente de retirantes vagando pelos campos e cidades em busca de alimentos. No Ceará, a fome, a morte, o desespero e a migração reinavam.
Horrores da fome – Cearense - 10.6.1877
No Ceará já morre gente de fome; “A desesperadora crise da secca vae cada vez mais em augmento, por todo este município, cuja população vive em sobressaltos, e já muitos se acham em preparativos de emigrar para essa capital...”
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“Já morreram quatro crianças victimas da fome; e o povo não tem mais de que se sustentar, porque se esgotaram as raízes de mucuná e pau mocó...”
Para as demais regiões do país, em especial Sul e Sudeste, pela fragilidade e domínio da imprensa, a seca era totalmente desconhecida, era como se nem existisse. Até que em abril de 1878, a Revista O Besouro, do editor e caricaturista Raphael Bordallo Pinheiro, publica o artigo de capa “A seca do Ceará”, onde descreve de forma sarcástica o “socorro” dado pela Companhia de Feno Nacional aos animais que morriam de fome, enquanto os retirantes permaneciam sem socorro (ALMEIDA, 2011).
Em maio, o jornal enviara o jovem José do Patrocínio para uma cobertura da seca, que já no caminho, registrava suas impressões, que seriam enviadas e publicadas pela A Gazeta de Notícias:
Criancinhas nuas e seminuas, com os rostos escaveirados, cabelos emaranhados sobre crânios enegrecidos pelo pó das longas jornadas, com as omoplatas e vértebras cobertas apenas por pele ressequida, ventres desmesurados, pés inchados, cujos dedos e calcanhares foram disformados por parasitas animais, vagam sozinhas ou em grupo, tossindo a sua anemia e invocando, com a voz fraquíssima, o nome de Deus em socorro da orfandade.
Para além de romper o silêncio e dar visibilidade à seca de 1877/1878, de mostrar a inexistência da ação do Estado brasileiro, esta matéria do O Bezouro ainda viria estabelecer dois outros grandes marcos na história do Brasil. Uma, o início do fotojornalismo nacional, a outra, menos gloriosa, e com repercussões até os dias de hoje, a criação de um imaginário de Nordeste de fome, miséria, terra rachada e de pessoas precisando de socorro. Um lugar inviável. De morte e de dor.
Para muitos estudiosos da história do Nordeste, com a seca de 1877/1878, a partir das imagens apresentadas e da grande repercussão que estas criaram, não apenas outros jornais enveredariam por este prisma, como até mesmos os livros oficiais de geografia da época e posteriores passariam a se repostar à região a partir destas imagens. A afirmação de que o Nordeste surgiu a partir daí é correta, mas este não é o verdadeiro Nordeste.
Se os problemas da região estavam associados à falta de água e à existência de um povo (sub-raça) incapaz de resolver seus próprios problemas, a saída não poderia ser outra, se não, a de mudar a sequidão da região através da construção de grandes açudes, da prática da irrigação e até da transposição do rio São Francisco, e socorrer o povo. Esta formulação caiu como luva nos interesses da já iniciada e agora, organizada, “INDÚSTRIA DA SECA”.
O editorial do jornal Cearense, de 7 de junho de 1877 traz o seguinte:
TRABALHO E NÃO ESMOLA
O que convém as províncias flagelladas pela secca é o socorro distribuido pelos seus habitantes, de modo que o solo seja o primeiro a tirar proveito e adquirir armas para appolas às inclemências climatéricas. Neste caso, o trabalho será um meio e o melhoramento da província o fim dos socorros prestados pelo governo a particulares.
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E preciso que o sr. Dezembargador presidente se capacite de que o único meio de reter a população em seus respectivos sítios, é dotar a província de seus melhoramentos, é favorecer a abertura de açudes e depósitos d’água, principal agente fertilisador e conservador da lavoura.
Parte da imprensa local destacava a “ajuda” da Família Real como esmola e cobrava iniciativas ancoradas localmente como saída para a relação de dependência. Muitos que aqui viviam eram “novos livres” ou ex-escravos fugidos das fazendas e/ou das secas; eram trabalhadores do corte da cana e do plantio do café; eram vaqueiros; eram mestiços e indígenas, que, em busca de melhores dias, vieram habitar a região. Os limites não se restringiam à seca, estavam, sobretudo, na concentração das terras e na precariedade no mundo do trabalho.
Mesmo com todo o descuido da Família Real com o povo do Nordeste, o império viu a região crescer e ficar ainda mais povoada. Com abolição da escravatura, que não se deu o trabalho de alterar a estrutura fundiária no país, a quase totalidade das famílias do campo permaneceu como “moradores” dos seus antigos senhores como nas condições de meeiros, arrendatários, capatazes, vaqueiros, etc. Outra parte, simplesmente vagava.
Foi este povo que construiu as bases para uma ciência da Convivência com o Semiárido, o que abordaremos de forma mais detalhada nos próximos artigos, em especial no terceiro e quarto desta série.

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