Gestão e controle social das políticas de acesso à água no Semiárido
Rafael Santos Neves[2]
Contextualização
A partir do final da década 1980 e início da de 1990, após
um longo período de ditadura militar - na região
nordeste estreitamente associada a centenárias práticas coronelistas, em que a opinião e o livre pensar eram reprimidos e acusados de
algo subversivo e de caráter negativo -, com a
reorganização de espaços formais e informais nas comunidades rurais e o
surgimento de inúmeras organizações de assessoria, ganha força o ideário de
disputar junto ao Estado ações de apoio a um melhor viver e conviver com as
características da região.
Neste cenário, duas questões centrais emergiram da sociedade civil como linhas de ação para a convivência com o semiárido.
De um lado, o imperativo de se ter do Estado uma ação provedora que suprisse
necessidades seculares básicas, a exemplo da disponibilidade de água para beber
e produzir alimentos, educação contextualizada, saúde, suporte técnico,
transporte, comercialização
e outros. Por outro lado, estas mesmas
necessidades não se realizariam sem a disputa no Estado de sua concepção de
desenvolvimento, que o levava a uma prática privatista de terceirização das
funções estatais.
Como propostas para o enfrentamento destas necessidades,
surgiram ações elaboradas a partir das experiências realizadas
pelas comunidades e adaptadas à realidade do semiárido,
a exemplo da construção de cisternas de placas. A gênese da elaboração, da
proposição e da cobrança por políticas de convivência com o semiárido surge de ações já vivenciadas pelas famílias e da
necessidade de se
ampliar estas experiências em escala.
Estas experiências trazem consigo as formas de controle
social exercido pelas comunidades. Ou seja, as experiências vivenciadas de
gestão coletiva de aguadas, fundos rotativos, pastorais, associações, dão
origem não apenas às formas de gestão, mas suas nuanças e formatos de controle
social também ajudam a compor o controle social das políticas públicas no
semiárido.
Participação
social na elaboração, proposição, execução e controle das políticas
A troca destas
experiências acima citadas propiciou a articulação de entidades e levou à
constituição do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência
com o Semiárido, materializado pela ASA, alicerçado em dois principais
programas: o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e o Programa Uma Terra e
Duas Águas (P1+2). Estes, por sua vez, são ampliados nos estados e municípios
em um conjunto de outras iniciativas semelhantes constituindo-se em exemplos
consistentes de uma experiência que mostra que a sociedade organizada elabora,
propõe, gesta e faz o controle social de uma politica.
Todavia, quase não há
outros casos na mesma dimensão. Isto faz desta experiência, dentro do objetivo
deste texto, uma oportunidade de refletirmos como comunidades rurais de uma
região tão esquecidas pela ação do Estado emplacaram uma das mais belas
experiências de intervenção de uma política, cobrando dos gestores públicos o
apoio a outras iniciativas comunitárias.
O sucesso do programa se explica
por ele ser focado em necessidades concretas e comuns a várias famílias rurais
da região. Quando se fala em semiárido logo vem à cabeça a ideia de água
associado a alguma ação coletiva para suprimir a demanda. Outro elemento é que
a solução para o problema focado, identidade
da necessidade, consiste em uma ação extraída do seio da própria
comunidade. Segue um princípio onde o antídoto manifesta-se na própria
natureza.
As estratégias de
convivência com o semiárido acumuladas pelo povo da região apontam para o papel
primordial cumprido pela estocagem. A construção de tecnologias sociais para a captação
e o armazenamento de água da chuva, a partir de formas simples que aproveitam
as potencialidades da região, inclui dezenas de inovações, a exemplo das cisternas
de placas, cisternas-calçadão, barragens subterrâneas, caldeirões ou tanques de
pedra, cacimbas ou poços rasos, poços amazonas, caixios, barreiros, pequenos
açudes e barragens sucessivas, entre outras. Estas tecnologias sociais são de
domínio comum.
A sistematização
destas práticas coube às organizações de assessoria e assistência do semiárido,
que a partir de métodos participativos envolveram as comunidades em processos
reflexivos que indagassem:
a) Quais as principais
necessidades?
b) Como são definidas as
prioridades?
c) Como reforçar os
princípios da ação na comunidade?
d) Como escolher quem
deve acessar primeiro?
e) Que conhecimento se
precisa para fazer a gestão das alternativas encontradas?
f) Quais funções devem
ser cumpridas por cada sujeito envolvido diretamente na ação?
g) Como as informações
construídas são repassadas?
h) Quais outras questões
são importantes serem observadas?
Desta forma, a
prática das comunidades foi organizada numa teoria da prática.Estas questões
sistematizadas reafirmaram a centralidade da água para beber e para produzir
alimento, agora organizada em uma metodologia de fácil entendimento e
replicável para lugares diversos sem perder sua identidade.
Em meio a essas
dinâmicas estava em processo outra ação de controle social. No ano de 1999,
durante a 3a Conferência das Partes da Convenção de Combate à Desertificação e
à Seca (COP3), em Recife, a ASA foi fundada e lançou-se à meta de construir um
milhão de cisternas rurais para o atendimento às necessidades básicas das
famílias no semiárido. Nasceu o Programa de Formação e Mobilização Social para a
Convivência com o Semiárido: Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC).
Como resultado dessa
articulação veio o primeiro apoio, pela Agência Nacional de Águas (ANA), ligada
ao Ministério do Meio Ambiente (MMA). A partir de 2003 o P1MC foi incorporado, então,
como política de governo pelo então Ministério Extraordinário de Segurança
Alimentar e Nutricional (MESA), que deu lugar, posteriormente, ao Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). No decorrer desse tempo o
programa contou também com o aporte orçamentário da Companhia de
Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), além de
outras parcerias com instituições privadas.
Ainda assim, a
incipiência de estruturas produtivas, em especial hídricas, fazia com que mais
de um milhão de unidades de produção familiar continuassem susceptíveis às
intempéries do tempo. Portanto, ampliar a oferta de água estocada para a produção
de alimentos teria que ser um passo imprescindível para debelar de vez os
altíssimos índices de insegurança alimentar e nutricional, gerar renda e
ampliar a autonomia das famílias.
A partir de 2007, ao Programa
de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido da ASA, insere-se
o P1+2, com o apoio da Fundação Banco de Brasil (FBB) e da Petrobras.
Através do P1+2
prioriza-se a segurança e soberania alimentar a partir da produção
agroecológica de alimentos, ancorada na construção de infraestruturas hídricas
como cisternas-calçadão de 52 mil litros, barragens subterrâneas, tanques de
pedra/caldeirões e bombas d’água popular. A partir de 2008 o P1+2 também passa
a contar com aporte de recursos do MDS, da CODEVASF e do Ministério de
Desenvolvimento Agrário (MDA).
Foi a concepção educativa que possibilitou a um maior número de
famílias agricultoras uma visão holística da realidade e das políticas de
convivência entre as pessoas, a fauna, a flora e demais paisagens do semiárido. Numa relação sustentável e complementar, visibilizou-se
muitos conhecimentos produzidos por agricultores e agricultoras a partir da
troca horizontal de saberes e da sistematização de experiências vinculadas à
produção de alimentos, manejo da terra e das águas, geração de renda e outras
estratégias que elevaram a autoestima das famílias e reforçaram a imagem do semiárido brasileiro como belo e produtor de conhecimentos.
Dentro deste processo entende-se, então, a gestão social como a relação que pessoas constituem para
realizar ações, projetos, programas ou políticas,
representando interesses individuais e/ou coletivos, guiados para o social, mas
sobretudo, pelo social. O
Portal da Transparência mostra que,
por meio da
participação na gestão pública, os cidadãos podem intervir na tomada da decisão
administrativa, orientando a Administração para que adote medidas que realmente
atendam ao interesse público e, ao mesmo tempo, podem exercer controle sobre a
ação do Estado, exigindo que o gestor público preste contas de sua atuação
(BRASIL, 2011).
Estruturas de gestão da
sociedade civil
É importante destacar
que as experiências de gestão social para acessar as políticas públicas fazem
parte de uma história muito recente. Gestão social aqui compreendida como a
relação sociedade/Estado para superar problemas imediatos, porém com funções
distintas, em que o Estado tem obrigações e a sociedade tem direitos e deveres.
A gestão é sempre
vista como uma função do Estado, cabendo a ele, e somente a ele, tal tarefa. A
princípio, a formulação está correta. Cabe ao Estado suprir as necessidades da
população. A gestão social não tem a intensão de substituir o Estado, e sim,
acessá-lo, expor suas contradições e ainda fortalecer políticas exitosas.
Os espaços de gestão
social conhecidos hoje para a execução das políticas de acesso a água no semiárido,
a exemplo dos fóruns microrregionais, as comissões municipais e as comissões
comunitárias, não nasceram para cumprir a função de gestores das políticas
públicas, mas sim, para fazer a gestão e o controle de iniciativas locais, das
aguadas comunitárias, casas de sementes, fundos rotativos, grupos informais de
jovens e mulheres, associações, etc. Porém, tornaram-se exitosos e eficientes
reforçando as capacidades organizativas da sociedade na gestão coletiva das
políticas.
No semiárido, o acesso
à água, obrigação do Estado, sempre foi usado como forma de encabrestar
milhares de famílias e sua inexistência era entendida como decorrente de fatores
climáticos ou divinos, e sua concessão como um favor. Na perspectiva adotada
neste texto, o que se busca é realçar a omissão do Estado, e em oposição, o
papel protagonizado pelas comunidades. O empoderamento do povo a partir das
experiências, evidencia, denuncia e cobra que o Estado cumpra suas funções.
Numa lógica bem
delineada o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o
Semiárido, a partir da sua sistematização, constituiu uma estrutura de gestão
política e administrativa que acessa recursos públicos previstos no Orçamento Geral
da União (OGU), fazendo então, girar um número significativo de conhecimentos,
informações e recursos por quase todos os municípios dos nove estados do
semiárido. Isso mexe com pessoas, organizações e o mercado local.
Na condução da ação,
o que garante de fato que o programa não saia de suas diretrizes e chegue às
famílias, realizando sua função de gestão e controle social, é a participação
ativa das comissões municipais e comunitárias, organizadas por organizações de
base, que retroalimentam a política e ajudam a corrigir possíveis falhas.
Papéis do governo e da sociedade civil na
gestão das políticas públicas de acesso à água
Embora as ideias de
participação e controle social estejam intimamente relacionadas à responsabilidade da
sociedade e sejam reafirmadas
pela Constituição Federal, quando se analisa os espaços de gestão, a concepção tende
a restringir o papel da sociedade apenas à formulação e
fiscalização. Tal fato confunde o entendimento e limita a gestão ao espaço do controle
social.
É papel do Estado,
a partir de suas esferas de poder, municípios, estados e união, garantir e
efetivar direitos. Este princípio deve guiar todos os espaços e diálogos de formulação e controle
social das políticas públicas. Todavia, para além de formular propostas e
fiscalizar o Estado, a experiência da ASA em curso no semiárido nos convida para irmos um pouco adiante, a
refletirmos e
buscarmos entender
o papel da sociedade enquanto executora de uma política pública.
Quando o Estado consegue
apoiar uma iniciativa da sociedade para resolver problemas comuns, este não
apenas cumpre seu papel, como amplia o conceito de gestão, fortalecendo-se
enquanto espaço público.
Contudo, o apoio do
Estado para a efetivação
da gestão social não é algo tão simples, seu principal limite está na ausência
de um marco regulatório que estabeleça regras claras na contratação de bens e serviços
que permitam ações
mais fluidas e permanentes. O que se tem vivenciado em muitos casos é a
inviabilização das parcerias e a criminalização das organizações e movimentos
que acessam recursos públicos.
Um balizador para a gestão social é que toda relação sociedade/Estado deve estar
ancorada em estratégias claras cujos interesses das comunidades estejam acima de interesses particulares. Nesse sentido, a
experiência da ASA parte de algumas premissas fundamentais:
a) A dimensão do
controle social é mantida a partir do envolvimento das comissões municipais nos
processos de seleção e acompanhamento junto às comunidades;
b) Os conteúdos e a metodologia
dos processos formativos permanecem aplicados, enfocando as ações de acesso à
água enquanto direito;
c) As famílias e
comunidades são as protagonistas dos processos de construção das tecnologias
sociais e a elas cabe a condução dos processos locais.
A principal tarefa no
intuito de garantir uma ação de gestão continuada entre organizações da
sociedade e instâncias
de governos
(Estado) é a necessidade de termos a clareza dos papeis de cada esfera de governo deve cumprir e o compromisso de não uma não subjugar a outra.
Considerações finais
A gestão e o controle social
de políticas públicas, embora possam parecer antagônicos, em alguns casos podem
e devem, sim,
ser exercitados em um mesmo espaço, sem com isso perder suas identidades e
descaracterizar os sujeitos. O controle social é parte do processo de gestão, instrumento de promoção de
democracia no qual cidadãos, no exercício da vontade coletiva, avaliam, fiscalizam, selecionam e fazem
prospecção de metas.
Para as comunidades
do semiárido,
fazer a gestão de uma política de acesso à água não constitui uma substituição
do Estado, mas sim, um exercício prático de empoderamento e de democratização deste
mesmo Estado. É uma
integração da sociedade com o
poder público, com a finalidade de se concretizar e universalizar estratégias
de convivência com o semiárido.
Por ultimo, embora tenha ficado implícito
no decorrer do texto, destacamos que não foi apenas a sociedade que mudou suas práticas e
formas de acessar o Estado. Mas, o Estado
também vem sendo influenciado e minado por um novo paradigma de desenvolvimento, que considera a participação e o controle social como vitais para a concretização de uma nova sociedade.
BIBLIOGRAFIAASA. Articulação no Semiárido Brasileiro. Reflexões e proposições da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), no intuito de contribuir para a garantia plena do acesso à água para todas as pessoas no Semiárido: O lugar da convivência na erradicação da extrema pobreza. Recife: ASA, 2011.
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Acessado em 26 out. 2011.
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Quintela. Acesso à Água como Fator de Segurança Alimentar e Nutricional no
Semiárido Brasileiro. In.: Brasil,
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – FOME ZERO – Uma
história brasileira –Vol. II 117-134. Brasília, 2010.
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