Gestão e controle social das políticas de acesso à água no Semiárido

Antonio Gomes Barbosa[1]
Rafael Santos Neves[2]

Contextualização

A partir do final da década 1980 e início da de 1990, após um longo período de ditadura militar - na região nordeste estreitamente associada a centenárias práticas coronelistas, em que a opinião e o livre pensar eram reprimidos e acusados de algo subversivo e de caráter negativo -, com a reorganização de espaços formais e informais nas comunidades rurais e o surgimento de inúmeras organizações de assessoria, ganha força o ideário de disputar junto ao Estado ações de apoio a um melhor viver e conviver com as características da região.

Neste cenário, duas questões centrais emergiram da sociedade civil como linhas de ação para a convivência com o semiárido. De um lado, o imperativo de se ter do Estado uma ação provedora que suprisse necessidades seculares básicas, a exemplo da disponibilidade de água para beber e produzir alimentos, educação contextualizada, saúde, suporte técnico, transporte, comercialização e outros. Por outro lado, estas mesmas necessidades não se realizariam sem a disputa no Estado de sua concepção de desenvolvimento, que o levava a uma prática privatista de terceirização das funções estatais.  

Como propostas para o enfrentamento destas necessidades, surgiram ações elaboradas a partir das experiências realizadas pelas comunidades e adaptadas à realidade do semiárido, a exemplo da construção de cisternas de placas. A gênese da elaboração, da proposição e da cobrança por políticas de convivência com o semiárido surge de ações já vivenciadas pelas famílias e da necessidade de se ampliar estas experiências em escala.

Estas experiências trazem consigo as formas de controle social exercido pelas comunidades. Ou seja, as experiências vivenciadas de gestão coletiva de aguadas, fundos rotativos, pastorais, associações, dão origem não apenas às formas de gestão, mas suas nuanças e formatos de controle social também ajudam a compor o controle social das políticas públicas no semiárido.
Participação social na elaboração, proposição, execução e controle das políticas

A troca destas experiências acima citadas propiciou a articulação de entidades e levou à constituição do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido, materializado pela ASA, alicerçado em dois principais programas: o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2). Estes, por sua vez, são ampliados nos estados e municípios em um conjunto de outras iniciativas semelhantes constituindo-se em exemplos consistentes de uma experiência que mostra que a sociedade organizada elabora, propõe, gesta e faz o controle social de uma politica.

Todavia, quase não há outros casos na mesma dimensão. Isto faz desta experiência, dentro do objetivo deste texto, uma oportunidade de refletirmos como comunidades rurais de uma região tão esquecidas pela ação do Estado emplacaram uma das mais belas experiências de intervenção de uma política, cobrando dos gestores públicos o apoio a outras iniciativas comunitárias.

O sucesso do programa se explica por ele ser focado em necessidades concretas e comuns a várias famílias rurais da região. Quando se fala em semiárido logo vem à cabeça a ideia de água associado a alguma ação coletiva para suprimir a demanda. Outro elemento é que a solução para o problema focado, identidade da necessidade, consiste em uma ação extraída do seio da própria comunidade. Segue um princípio onde o antídoto manifesta-se na própria natureza.

As estratégias de convivência com o semiárido acumuladas pelo povo da região apontam para o papel primordial cumprido pela estocagem. A construção de tecnologias sociais para a captação e o armazenamento de água da chuva, a partir de formas simples que aproveitam as potencialidades da região, inclui dezenas de inovações, a exemplo das cisternas de placas, cisternas-calçadão, barragens subterrâneas, caldeirões ou tanques de pedra, cacimbas ou poços rasos, poços amazonas, caixios, barreiros, pequenos açudes e barragens sucessivas, entre outras. Estas tecnologias sociais são de domínio comum.

A sistematização destas práticas coube às organizações de assessoria e assistência do semiárido, que a partir de métodos participativos envolveram as comunidades em processos reflexivos que indagassem:

a)    Quais as principais necessidades?

b)    Como são definidas as prioridades?

c)    Como reforçar os princípios da ação na comunidade?

d)    Como escolher quem deve acessar primeiro?

e)    Que conhecimento se precisa para fazer a gestão das alternativas encontradas?

f)     Quais funções devem ser cumpridas por cada sujeito envolvido diretamente na ação?

g)    Como as informações construídas são repassadas?

h)   Quais outras questões são importantes serem observadas?

Desta forma, a prática das comunidades foi organizada numa teoria da prática.Estas questões sistematizadas reafirmaram a centralidade da água para beber e para produzir alimento, agora organizada em uma metodologia de fácil entendimento e replicável para lugares diversos sem perder sua identidade.

Em meio a essas dinâmicas estava em processo outra ação de controle social. No ano de 1999, durante a 3a Conferência das Partes da Convenção de Combate à Desertificação e à Seca (COP3), em Recife, a ASA foi fundada e lançou-se à meta de construir um milhão de cisternas rurais para o atendimento às necessidades básicas das famílias no semiárido. Nasceu o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido: Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC).

Como resultado dessa articulação veio o primeiro apoio, pela Agência Nacional de Águas (ANA), ligada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA). A partir de 2003 o P1MC foi incorporado, então, como política de governo pelo então Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Nutricional (MESA), que deu lugar, posteriormente, ao Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). No decorrer desse tempo o programa contou também com o aporte orçamentário da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), além de outras parcerias com instituições privadas.

Ainda assim, a incipiência de estruturas produtivas, em especial hídricas, fazia com que mais de um milhão de unidades de produção familiar continuassem susceptíveis às intempéries do tempo. Portanto, ampliar a oferta de água estocada para a produção de alimentos teria que ser um passo imprescindível para debelar de vez os altíssimos índices de insegurança alimentar e nutricional, gerar renda e ampliar a autonomia das famílias.

A partir de 2007, ao Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido da ASA, insere-se o P1+2, com o apoio da Fundação Banco de Brasil (FBB) e da Petrobras.

Através do P1+2 prioriza-se a segurança e soberania alimentar a partir da produção agroecológica de alimentos, ancorada na construção de infraestruturas hídricas como cisternas-calçadão de 52 mil litros, barragens subterrâneas, tanques de pedra/caldeirões e bombas d’água popular. A partir de 2008 o P1+2 também passa a contar com aporte de recursos do MDS, da CODEVASF e do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA).

Foi a concepção educativa que possibilitou a um maior número de famílias agricultoras uma visão holística da realidade e das políticas de convivência entre as pessoas, a fauna, a flora e demais paisagens do semiárido. Numa relação sustentável e complementar, visibilizou-se muitos conhecimentos produzidos por agricultores e agricultoras a partir da troca horizontal de saberes e da sistematização de experiências vinculadas à produção de alimentos, manejo da terra e das águas, geração de renda e outras estratégias que elevaram a autoestima das famílias e reforçaram a imagem do semiárido brasileiro como belo e produtor de conhecimentos.

Dentro deste processo entende-se, então, a gestão social como a relação que pessoas constituem para realizar ações, projetos, programas ou políticas, representando interesses individuais e/ou coletivos, guiados para o social, mas sobretudo, pelo social. O Portal da Transparência mostra que,

por meio da participação na gestão pública, os cidadãos podem intervir na tomada da decisão administrativa, orientando a Administração para que adote medidas que realmente atendam ao interesse público e, ao mesmo tempo, podem exercer controle sobre a ação do Estado, exigindo que o gestor público preste contas de sua atuação (BRASIL, 2011).  
Estruturas de gestão da sociedade civil

É importante destacar que as experiências de gestão social para acessar as políticas públicas fazem parte de uma história muito recente. Gestão social aqui compreendida como a relação sociedade/Estado para superar problemas imediatos, porém com funções distintas, em que o Estado tem obrigações e a sociedade tem direitos e deveres.

A gestão é sempre vista como uma função do Estado, cabendo a ele, e somente a ele, tal tarefa. A princípio, a formulação está correta. Cabe ao Estado suprir as necessidades da população. A gestão social não tem a intensão de substituir o Estado, e sim, acessá-lo, expor suas contradições e ainda fortalecer políticas exitosas.

Os espaços de gestão social conhecidos hoje para a execução das políticas de acesso a água no semiárido, a exemplo dos fóruns microrregionais, as comissões municipais e as comissões comunitárias, não nasceram para cumprir a função de gestores das políticas públicas, mas sim, para fazer a gestão e o controle de iniciativas locais, das aguadas comunitárias, casas de sementes, fundos rotativos, grupos informais de jovens e mulheres, associações, etc. Porém, tornaram-se exitosos e eficientes reforçando as capacidades organizativas da sociedade na gestão coletiva das políticas.

No semiárido, o acesso à água, obrigação do Estado, sempre foi usado como forma de encabrestar milhares de famílias e sua inexistência era entendida como decorrente de fatores climáticos ou divinos, e sua concessão como um favor. Na perspectiva adotada neste texto, o que se busca é realçar a omissão do Estado, e em oposição, o papel protagonizado pelas comunidades. O empoderamento do povo a partir das experiências, evidencia, denuncia e cobra que o Estado cumpra suas funções.

Numa lógica bem delineada o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido, a partir da sua sistematização, constituiu uma estrutura de gestão política e administrativa que acessa recursos públicos previstos no Orçamento Geral da União (OGU), fazendo então, girar um número significativo de conhecimentos, informações e recursos por quase todos os municípios dos nove estados do semiárido. Isso mexe com pessoas, organizações e o mercado local.

Na condução da ação, o que garante de fato que o programa não saia de suas diretrizes e chegue às famílias, realizando sua função de gestão e controle social, é a participação ativa das comissões municipais e comunitárias, organizadas por organizações de base, que retroalimentam a política e ajudam a corrigir possíveis falhas.
Papéis do governo e da sociedade civil na gestão das políticas públicas de acesso à água

Embora as ideias de participação e controle social estejam intimamente relacionadas à responsabilidade da sociedade e sejam reafirmadas pela Constituição Federal, quando se analisa os espaços de gestão, a concepção tende a  restringir o papel da sociedade apenas à formulação e fiscalização. Tal fato confunde o entendimento e limita a gestão ao espaço do controle social.

É papel do Estado, a partir de suas esferas de poder, municípios, estados e união, garantir e efetivar direitos. Este princípio deve guiar todos os espaços e diálogos de formulação e controle social das políticas públicas. Todavia, para além de formular propostas e fiscalizar o Estado, a experiência da ASA em curso no semiárido nos convida para irmos um pouco adiante, a refletirmos e buscarmos entender o papel da sociedade enquanto executora de uma política pública.

Quando o Estado consegue apoiar uma iniciativa da sociedade para resolver problemas comuns, este não apenas cumpre seu papel, como amplia o conceito de gestão, fortalecendo-se enquanto espaço público.

Contudo, o apoio do Estado para a efetivação da gestão social não é algo tão simples, seu principal limite está na ausência de um marco regulatório que estabeleça regras claras na contratação de bens e serviços que permitam ações mais fluidas e permanentes. O que se tem vivenciado em muitos casos é a inviabilização das parcerias e a criminalização das organizações e movimentos que acessam recursos públicos.

Um balizador para a gestão social é que toda relação sociedade/Estado deve estar ancorada em estratégias claras cujos interesses das comunidades estejam acima de interesses particulares. Nesse sentido, a experiência da ASA parte de algumas premissas fundamentais:

a)    A dimensão do controle social é mantida a partir do envolvimento das comissões municipais nos processos de seleção e acompanhamento junto às comunidades;

b)    Os conteúdos e a metodologia dos processos formativos permanecem aplicados, enfocando as ações de acesso à água enquanto direito;

c)    As famílias e comunidades são as protagonistas dos processos de construção das tecnologias sociais e a elas cabe a condução dos processos locais.

A principal tarefa no intuito de garantir uma ação de gestão continuada entre organizações da sociedade e instâncias de governos (Estado) é a necessidade de  termos a clareza dos papeis de cada esfera de governo deve cumprir e o compromisso de não uma não subjugar a outra.
Considerações finais
A gestão e o controle social de políticas públicas, embora possam parecer antagônicos, em alguns casos podem e devem, sim, ser exercitados em um mesmo espaço, sem com isso perder suas identidades e descaracterizar os sujeitos. O controle social é parte do processo de gestão, instrumento de promoção de democracia no qual cidadãos, no exercício da vontade coletiva, avaliam, fiscalizam, selecionam e fazem prospecção de metas.

Para as comunidades do semiárido, fazer a gestão de uma política de acesso à água não constitui uma substituição do Estado, mas sim, um exercício prático de empoderamento e de democratização deste mesmo Estado. É uma integração da sociedade com o poder público, com a finalidade de se concretizar e universalizar estratégias de convivência com o semiárido.

Por ultimo, embora tenha ficado implícito no decorrer do texto, destacamos que não foi apenas a sociedade que mudou suas práticas e formas de acessar o Estado. Mas, o Estado também vem sendo influenciado e minado por um novo paradigma de desenvolvimento, que considera a participação e o controle social como vitais para a concretização de uma nova sociedade.
BIBLIOGRAFIA

ASA. Articulação no Semiárido Brasileiro. Reflexões e proposições da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), no intuito de contribuir para a garantia plena do acesso à água para todas as pessoas no Semiárido: O lugar da convivência na erradicação da extrema pobreza. Recife: ASA, 2011.

BARBOSA. Antonio. Gomes. Sociedade civil na construção de políticas públicas para a convivência com o Semiárido. Recife: ASA, 2011.
BARBOSA, Antonio Gomes. O Semiárido é belo e constrói conhecimentos. Informativo RTS - Rede de Tecnologia Social. Disponível em: www.rts.org.br. Acesso em 11 jun. 2007.
BRASIL. Portal da transparência. Disponível em:  http://www.portaltransparencia.gov.br/controleSocial. Acessado em 26 out. 2011.
CONSEA. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O acesso e os usos da água no contexto da soberania e da segurança alimentar e nutricional. 2008.
RUANO, Onaur; BAPTISTA, Naidison de Quintela. Acesso à Água como Fator de Segurança Alimentar e Nutricional no Semiárido Brasileiro. In.: Brasil, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – FOME ZERO – Uma história brasileira –Vol. II 117-134. Brasília, 2010.


[1] Sociólogo, Coordenador do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA).
[2] Graduado em Pedagogia e assessor técnico do Programa Um Milhão de Cisternas (P1 MC) implementado pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA).

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