Água para produção de alimentos no Semiárido

Antonio Gomes Barbosa[1]
A água é a seiva de nosso planeta. Ela é condição essencial de vida de todo vegetal, animal ou ser humano. Sem ela não poderíamos conceber como são a atmosfera, o clima, a vegetação, a cultura ou a agricultura.”

(Declaração Universal dos Direitos da Água)
Introdução

As grandes obras hídricas, criadas supostamente para combater a seca e resolver o “problema” da escassez de água no Semiárido, associadas à adoção maciça de modelos de transferência de tecnologias não adaptadas à realidade da região, geraram um quadro de penúria e insegurança alimentar que imputaram à região uma situação desesperadora de miséria e insegurança alimentar.
Em um Semiárido exposto a inúmeras mazelas, foram também múltiplas as iniciativas e estratégias construídas pelas famílias para a garantia do acesso à água e aos alimentos. Na luta diária pela sobrevivência, mulheres e homens, portadoras/es de um vasto saber adquirido a partir da observação da natureza ao longo dos tempos, aprenderam a arte de conviver com o meio ambiente olhando os ciclos das chuvas, o comportamento das plantas, dos animais e as características do clima e do solo.
As experiências comunitárias de manejo da agrobiodiversidade no Semiárido foram se avolumando, para além do estoque de água[2], estas famílias desenvolveram estratégias de armazenamento de alimentos através da guarda das sementes, estocadas em bancos familiares e/ou comunitários, em paióis, em armazéns e outros, além do estoque de alimento para os animais aproveitando as pastagens nativas em silos, fenos e no manejo da caatinga.
Foi este movimento que permitiu a um conjunto de organizações da sociedade civil eleger a estratégia de visibilizar e multiplicar as iniciativas em curso, com o objetivo de formatar uma proposta de convivência articulada com as necessidades das comunidades. Com o mesmo intuito, alguns estudos elaborados por centros de pesquisas como a Embrapa Semiárido, cumpriram papel importante no processo de aprimoramento e publicização destas tecnologias enquanto estratégias adaptadas e viáveis.
A efervescência social e o acumulo de forças vem permitindo paulatinamente uma ruptura epistemológica. A escrita de outra história. É possível falar de um processo objetivo de empoderamento das comunidades rurais na proposição e exercício de políticas de acesso à água para produção de alimentos, a sementes e a outras.
Porém, a superação da pobreza, em especial no Semiárido, impõe que se integre, dentre as estratégias de acesso à água e a sementes, o acesso à terra. Não há erradicação da miséria sem a desconcentração das terras e das águas, e por sua vez, do poder.
1.    Os limites para produção de alimentos estão diretamente relacionados ao projeto de desenvolvimento em curso no Semiárido.
No Semiárido existe mais de um milhão e setecentos mil estabelecimentos agropecuários (33% em relação ao total no país). A população rural, de mais de oito milhões e meio de pessoas, reduziu 5,7% em relação ao ano de 2000, e hoje representa apenas 38% da população na região. Foram mais de 520 mil pessoas que deixaram de viver no Semiárido rural nos últimos dez anos, a grosso modo, sem considerar as taxas de nascimento e óbito.  (IBGE, Censo Demográfico).
A cada período de estiagem, milhares de pessoas não conseguem satisfazer suas necessidades de acesso à água e aos alimentos básicos. Ao contrário do que se diz comumente, as causas dessa realidade não se devem a limitações do meio ambiente ou das populações locais, são, sobretudo, de natureza política e se expressam na enorme crise socioambiental que vivemos. No Semiárido uma pessoa pode passar até 36 dias por ano exclusivamente em busca de água[3].
Para além da água, a concentração fundiária na região é histórica e constitui-se numa das principais causas da situação de pobreza, miséria e insegurança alimentar. O último censo do IBGE[4] comprova que a concentração de terras na região vem crescendo a cada período (ver tabela 1). Os latifúndios improdutivos, os grandes projetos do agronegócio, as mineradoras, as grandes fazendas de gado têm reforçado essa injusta estrutura de distribuição de terras. Muitos agricultores e agricultoras ainda trabalham em terras alheias ou em minifúndios super-explorados e com terras em péssimas condições de produção, comprometendo a segurança alimentar e nutricional de suas famílias.  
Nessa região, terra e água sempre estiveram nas mãos de uma pequena elite, gerando níveis altíssimos de exclusão social e de degradação ambiental. Essa realidade atinge, em particular, 1,7 milhão de famílias agricultoras que vivem no Semiárido brasileiro. Elas ocupam apenas 4,2% das terras agricultáveis. No Semiárido, 1,3% dos estabelecimentos rurais têm 38% das terras e 47% dos estabelecimentos menores têm, em conjunto, 3% das terras[5]. A concentração de terra está, indissociavelmente, ligada à concentração da água, representando os fatores determinantes da crise socioambiental e econômica vividas na região.
As famílias sem-terra ou com pouca terra são as que menos se beneficiam das inovações, permanecendo em situação de grande vulnerabilidade social. Esse quadro evoca a necessidade de profunda reestruturação fundiária, para que o ideal de uma agricultura sustentável e democrática, com segurança e soberania alimentar e nutricional, seja efetivamente alcançado.
Uma avaliação feita pelo Banco Mundial em relação os projetos de irrigação no Semiárido brasileiro constata que, em que pese o rápido crescimento econômico, eles acabaram por se transformar em enclaves ao dinamismo, geraram contrapartidas socioambientais negativas, acentuaram a histórica diferenciação social no meio rural e degradaram o meio ambiente: “são um sucesso do ponto de vista da lucratividade empresarial e um desastre do ponto de vista dos ganhos sociais” [6]*.
Com o advento da revolução verde, inúmeras famílias, assessoradas por empresas da extensão rural e centros de pesquisas agropecuários, passaram a usar massiva e indistintamente todo tipo de insumos bioquímicos, moto-mecanização e processos desordenados de irrigação. Estas práticas sem os devidos ajustes tecnológicos, associados a ocorrência de anos sucessivos de secas, levaram ao esgotamento das condições biofísicas de muitas áreas, perda ecológica, erosão genética (animais e vegetais), agravamento dos processos erosivos e a redução da capacidade dos solos de armazenar água nas precipitações. Ou seja, empobrecimento e desagregação generalizada das famílias e comunidades.
Como se pode observar, os limites imputados à região se exacerbaram com a prática do modelo em vigência. Se antes eram associados à natureza e às famílias (violência simbólica), agora, muito mais agravados, são justificados enquanto problemas conjunturais, pela ingovernabilidade do tempo, pelo pouco aprofundamento das pesquisas e testes para determinados tipos de solos, produtos ou técnicas, e/ou, em alguns casos, pela incompreensão de suas intencionalidades e capacidades transformadoras. De defesa fragilizada, o principal limite do modelo parece estar na própria essência, pois, desconsiderar as características naturais de uma região, mesmo nas intervenções mais primárias, é um erro rudimentar.
A tarefa para garantir a produção de alimentos passa a ser restabelecer as bases para a construção de um modelo de desenvolvimento que considere, sobretudo, as condições naturais da região, seus limites, potencialidades, culturas, saberes e conhecimentos construídos, suas peculiaridades. A sustentabilidade, afirmação de um desenvolvimento equilibrado, passa pelo enfrentamento aberto às concepções capitalistas de desenvolvimento e às visões oportunistas que se apropriam do discurso ambientalista, e até revestem seus empreendimentos de alguma maquiagem ambiental, mas que, na essência, reproduzem os modelos de concentração de renda, de empobrecimento e de depredação dos recursos naturais. Passa pelo direito a terra e aos territórios.
A principal e mais significativa estratégia de produção de alimentos das famílias agricultoras no Semiárido é o plantio dos roçados. Este tem dado provas da sua eficiência e importância para a produção e reprodução do modo de viver no Semiárido. Nenhuma estratégia que tenha como centro negar a importância do roçado, ou mesmo querer substitui-lo, será vitoriosa. Enganam-se os que não consideram este espaço como primordial e único. Numa relação de causa/efeito, é possível perceber que o papel das agriculturas de sequeiro como quem mais contribuiu para a cultura do estoque. Uma está diretamente associada ao outra.
Somado ao roçado, estar a criação de pequenos e médios animais, observando apenas os caprinos, o Semiárido detém 75% de todo o rebanho nacional. Estes se constituem poupanças para os períodos de festas, doenças, viagens ou investimentos em equipamentos e mão de obra.
As infraestruturas de captação e armazenamento de água das chuvas com finalidade de potencializar a produção de alimentos apresentam-se como solução simples, de baixo custo, prática, fácil, e adaptadas às condições de vida da população rural do Semiárido. Elas, associadas à cultura de sequeiro, estão dentro das estratégias de aumento de estoque e quase sempre estão relacionadas ao aumento da fertilidade dos quintais, da criação de animais, do cultivo de pomares, do plantio de hortaliças e de jardins, e outras.
O estoque de água para a produção de alimentos tem permitido o aumento em quantidade e qualidade na capacidade produtiva das famílias, tornado as práticas agrícolas e a gestão das águas disponíveis um princípio básico que se inter-relacionam e ajudam a formar um todo sistêmico.
Na linha do estoque de água precisa-se observar:
  1. Água para consumo humano - elemento primeiro de segurança alimentar, deve ser sempre a prioridade da política de acesso à água no Semiárido. Não existe ação sustentável de produção de alimentos se a família ainda não conseguiu suprir se quer o direito a água de beber;
  2. Água para produção de alimentos – central no apoio aos plantios e na dessedentação animal, a ampliação da oferta de água para produção de alimentos apresenta variações que devem considerar as características da região, as culturas trabalhadas e as diversas aguadas disponíveis. Os barreiros são primordiais e cumprem papel estratégico no aumento da disponibilidade de água no agroecossistema.
Associado a estratégia de estoque de água para a produção de alimentos, está a prática do estoque de sementes e forragem para os animais. Quando trata-se de sementes, não pode-se restringir às sementes vegetais, flanco que precisa cada vez mais de combatentes, porém, vale destacar outra frente também muito importante, que versa sobre os riscos que as sementes de animais, várias raças, correm de desaparecer, a exemplo das cabras, animal símbolo do Semiárido. O “canto da sereia” fala de melhoramento de raças. Que raças seriam melhores do que aquelas que vivem e vivem bem nas condições da região? Cabras, ovelhas, porcos, galinhas, abelhas nativas, dentre outros, são primordiais para produção de alimentos na perspectiva da convivência plena com o Semiárido.
Na mesma linha, o estoque de forragem aumenta a capacidade de disponibilização de alimentos e garante os rebanhos nos períodos de estiagens prolongadas.
3.    Os espaços de gestão das águas de produção.
A elaboração de políticas de acesso à água para produção no Semiárido, precisa considerar uma clara distinção entre fontes, usos e gestão das águas. Em especial as aguas de gestão familiar e as águas de gestão comunitária.
Na perspectiva dos programas da ASA, P1MC e P1+2, hoje se trabalha com quatro linhas de acesso à água: 1) água familiar de beber e cozinhar, 2) água comunitária de beber na escola, 3) água familiar de produção e 3) água comunitária de produção.
Nas linhas de água para produção, i) familiar e ii) comunitária, a primeira, geralmente destina-se a potencialização de quintais produtivos, pomares, criação de aves, roçados ecológicos, sistemas agroflorestais e outros, são fontes constituídas a partir de tecnologias com pequena ou média capacidade de armazenamento, suficientes para atender as necessidades de uma família. Geralmente são cisternas-calçadão, cisternas de enxurrada, barragens subterrâneas. Tecnologias voltadas especialmente para autoconsumo.
Neste tipo de gestão, familiar, os quintais destacam-se pela diversidade e envolvimento dos membros da família. Hoje a principal ação da ASA está voltada para este tipo de acesso à água.
Na água de produção comunitária, também conhecida como água da comunidade, existem duas distinções quanto à temporalidade do uso, a primeira, de uso do cotidiano, geralmente tanques de pedras, pequenos e médios açudes que não conseguem passar de um inverno a outro, e a segunda, denominada água de emergência, que geralmente fica guardada para os períodos mais secos. São médios açudes e poços. Ambas as formas estão geralmente associadas a dessedentação de animal e ao abastecimento domésticos como lavado de roupa, lavar louça, limpeza da casa, banho, outros.
Ampliar a malha de pequenas obras hídricas para um milhão de unidades de produção familiar requer um investimento na ordem de 10 bilhões de reais, valor expressivo, porém, insignificante quando comparado a investimentos como os da transposição do rio São Francisco, que para dois canais está estimado em 7 bilhões de reais. Outra referência são os recursos destinados ao PRONAF, que só no ano de 2010, foram 12 bilhões de reais. Considerando que o Semiárido concentra quase metade da agricultura familiar no País, disputar a aplicação destes recursos em infraestruturas produtivas é parte deste debate estratégico.
4.    Conclusões.
Investir na construção de tecnologias sociais de captação e armazenamento de água das chuvas para produção de alimentos, apresenta-se como uma solução simples, de baixo custo, prática e fácil de ser implementada, já adaptada às condições de vida da população rural do Semiárido.
As tecnologias sociais hoje apoiadas pelo MDS na parceria com a ASA e com estados como Bahia, Ceará, Piauí, Minas Gerais e Rio Grande do Norte, não são as únicas e nem se pretendem as melhores. Acredita-se ser possível sempre ir fazendo ajustes para ampliar a capacidade das famílias de estocar água para produção de alimentos.
No que cabe a nós, equipes técnicas das organizações, governamentais ou não, na contribuição para produção de alimentos no Semiárido, a tarefa não se concretiza com a simples aplicação de formulas, mesmo as que se reivindicam de convivência com o Semiárido, é preciso ir além e partir do processo e não dos produtos.
Para nossa reflexão, listamos abaixo alguns princípios orientadores para nossa ação:
         Romper com a lógica da ciência positivista de que as comunidades sempre estão em desvantagem e precisam de ajuda externa;
         Partir sempre das necessidades das famílias agricultoras e não querer definir por elas;
         Dialogar com os diversos conhecimentos e o saberes existentes nas comunidades para encontra soluções para os limites postos;
         Perceber pesquisa, crédito e extensão rural para além dos subsistemas e culturas alimentares. Considerar a família como centro determinante das ações para produção de alimentos;
         Perceber os sistemas não apenas como de produção e consumo, mas, mediados por significados;
         Não desestabilizar as lógicas montadas pelas famílias partindo do pressuposto de que a intensão é boa e pode dar certo.
Neste sentido, como você pode contribuir em sua comunidade para aumentar o estoque de água para a produção de alimentos?
Como se dá as experiências de gestão das águas em sua comunidade?
REFERÊNCIAS
ANA, Agência Nacional de Águas. Atlas Nordeste: abastecimento urbano de água: alternativas de oferta de água para as sedes municipais da região nordeste do Brasil e do norte de Minas Gerais, ANA, Superintendência de Planejamento e Recursos Hídricos; Consórcio Engecorps/Projetec/Geoambiente/Riverside Thechnology. Brasília: ANA, SPR, 2006.
ASA, Articulação no Semiárido Brasileiro. Declaração do Semiárido brasileiro: O Semiárido tem direito a uma política adequada. Recife: ASA, 1999.
ASA, Articulação no Semiárido Brasileiro. Reflexões e proposições da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), no intuito de contribuir para a garantia plena do acesso à água para todas as pessoas no Semiárido: O lugar da convivência na erradicação da extrema pobreza. Recife: ASA, 2011.
BARBOSA, A. G. Sociedade civil na construção de políticas públicas para a convivência com o Semiárido. Recife: ASA, 2011.
BARBOSA, A. G. Riqueza genética: um patrimônio dos povos. Recife: ASA, 2009.
BARBOSA, A. G. O Semi-Árido é belo e constrói conhecimentos. Informativo RTS - Rede de Tecnologia Social, site: www.rts.org.br, 11 jun. 2007.
BRASIL, Ministério da Integração Nacional- MIN. Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido- PDSA, 2005.
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Programa de ação nacional de combate à desertificação e mitigação dos efeitos da seca. Brasília, DF, 2005a.
CONSEA. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O acesso e os usos da água no contexto da soberania e da Segurança alimentar e nutricional. 2008.
IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010, 2010.
RUANO, Onaur; BAPTISTA, Naidison Q. Acesso à Água como Fator de Segurança Alimentar e Nutricional no Semiárido Brasileiro. In.: Brasil, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – FOME ZERO – Uma história brasileira –Vol. II 117-134. Brasília, 2010.
SIQUEIRA. R. De Sobradinho à transposição: para onde corre o São Francisco?. II Encontro de Ciências Sociais e Barragens. Salvador, BA, 2007.


[1] Sociólogo, Coordenador do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) e professor coordenador neste módulo de Acesso á Água.
[2] Este conteúdo fora mais profundamente abordado em aulas anteriores.
[3] Centro de Pesquisa Tecnológica do Semi-Árido – CPTSA. Disponível em: www.cptsa.embrapa.br
[4] IBGE. Censo Agropecuário. 2006
[5] IBGE. Censo Agropecuário. 2006
[6] Banco Mundial, Impactos e externalidades sociais da irrigação no Semi-Árido brasileiro. Disponível em: www.bancomundial.org.br
*O estudo é bastante minucioso sobre a irrigação no semiárido, inclusive em regiões da transposição, tendo em vista estudar a correlação entre a agricultura irrigada e a diminuição da pobreza na região. Durante as três últimas décadas, foram investidos mais de US$ 2 bilhões de recursos públicos em obras ligadas à irrigação, destinados ao abastecimento de 200 mil hectares no semiárido, dos quais 140 mil considerados produtivos. Apenas quatro dos onze projetos estudados são superavitários – sete são deficitários. Do ponto de vista social e ambiental são “desastrosos”. O que não inviabiliza a irrigação como alternativa para o desenvolvimento da região, conclui compósito o estudo... (Rubens Siqueira)

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