sexta-feira, 6 de abril de 2012

Água para produção de alimentos no Semiárido

Antonio Gomes Barbosa[1]
A água é a seiva de nosso planeta. Ela é condição essencial de vida de todo vegetal, animal ou ser humano. Sem ela não poderíamos conceber como são a atmosfera, o clima, a vegetação, a cultura ou a agricultura.”

(Declaração Universal dos Direitos da Água)
Introdução

As grandes obras hídricas, criadas supostamente para combater a seca e resolver o “problema” da escassez de água no Semiárido, associadas à adoção maciça de modelos de transferência de tecnologias não adaptadas à realidade da região, geraram um quadro de penúria e insegurança alimentar que imputaram à região uma situação desesperadora de miséria e insegurança alimentar.
Em um Semiárido exposto a inúmeras mazelas, foram também múltiplas as iniciativas e estratégias construídas pelas famílias para a garantia do acesso à água e aos alimentos. Na luta diária pela sobrevivência, mulheres e homens, portadoras/es de um vasto saber adquirido a partir da observação da natureza ao longo dos tempos, aprenderam a arte de conviver com o meio ambiente olhando os ciclos das chuvas, o comportamento das plantas, dos animais e as características do clima e do solo.
As experiências comunitárias de manejo da agrobiodiversidade no Semiárido foram se avolumando, para além do estoque de água[2], estas famílias desenvolveram estratégias de armazenamento de alimentos através da guarda das sementes, estocadas em bancos familiares e/ou comunitários, em paióis, em armazéns e outros, além do estoque de alimento para os animais aproveitando as pastagens nativas em silos, fenos e no manejo da caatinga.
Foi este movimento que permitiu a um conjunto de organizações da sociedade civil eleger a estratégia de visibilizar e multiplicar as iniciativas em curso, com o objetivo de formatar uma proposta de convivência articulada com as necessidades das comunidades. Com o mesmo intuito, alguns estudos elaborados por centros de pesquisas como a Embrapa Semiárido, cumpriram papel importante no processo de aprimoramento e publicização destas tecnologias enquanto estratégias adaptadas e viáveis.
A efervescência social e o acumulo de forças vem permitindo paulatinamente uma ruptura epistemológica. A escrita de outra história. É possível falar de um processo objetivo de empoderamento das comunidades rurais na proposição e exercício de políticas de acesso à água para produção de alimentos, a sementes e a outras.
Porém, a superação da pobreza, em especial no Semiárido, impõe que se integre, dentre as estratégias de acesso à água e a sementes, o acesso à terra. Não há erradicação da miséria sem a desconcentração das terras e das águas, e por sua vez, do poder.
1.    Os limites para produção de alimentos estão diretamente relacionados ao projeto de desenvolvimento em curso no Semiárido.
No Semiárido existe mais de um milhão e setecentos mil estabelecimentos agropecuários (33% em relação ao total no país). A população rural, de mais de oito milhões e meio de pessoas, reduziu 5,7% em relação ao ano de 2000, e hoje representa apenas 38% da população na região. Foram mais de 520 mil pessoas que deixaram de viver no Semiárido rural nos últimos dez anos, a grosso modo, sem considerar as taxas de nascimento e óbito.  (IBGE, Censo Demográfico).
A cada período de estiagem, milhares de pessoas não conseguem satisfazer suas necessidades de acesso à água e aos alimentos básicos. Ao contrário do que se diz comumente, as causas dessa realidade não se devem a limitações do meio ambiente ou das populações locais, são, sobretudo, de natureza política e se expressam na enorme crise socioambiental que vivemos. No Semiárido uma pessoa pode passar até 36 dias por ano exclusivamente em busca de água[3].
Para além da água, a concentração fundiária na região é histórica e constitui-se numa das principais causas da situação de pobreza, miséria e insegurança alimentar. O último censo do IBGE[4] comprova que a concentração de terras na região vem crescendo a cada período (ver tabela 1). Os latifúndios improdutivos, os grandes projetos do agronegócio, as mineradoras, as grandes fazendas de gado têm reforçado essa injusta estrutura de distribuição de terras. Muitos agricultores e agricultoras ainda trabalham em terras alheias ou em minifúndios super-explorados e com terras em péssimas condições de produção, comprometendo a segurança alimentar e nutricional de suas famílias.  
Nessa região, terra e água sempre estiveram nas mãos de uma pequena elite, gerando níveis altíssimos de exclusão social e de degradação ambiental. Essa realidade atinge, em particular, 1,7 milhão de famílias agricultoras que vivem no Semiárido brasileiro. Elas ocupam apenas 4,2% das terras agricultáveis. No Semiárido, 1,3% dos estabelecimentos rurais têm 38% das terras e 47% dos estabelecimentos menores têm, em conjunto, 3% das terras[5]. A concentração de terra está, indissociavelmente, ligada à concentração da água, representando os fatores determinantes da crise socioambiental e econômica vividas na região.
As famílias sem-terra ou com pouca terra são as que menos se beneficiam das inovações, permanecendo em situação de grande vulnerabilidade social. Esse quadro evoca a necessidade de profunda reestruturação fundiária, para que o ideal de uma agricultura sustentável e democrática, com segurança e soberania alimentar e nutricional, seja efetivamente alcançado.
Uma avaliação feita pelo Banco Mundial em relação os projetos de irrigação no Semiárido brasileiro constata que, em que pese o rápido crescimento econômico, eles acabaram por se transformar em enclaves ao dinamismo, geraram contrapartidas socioambientais negativas, acentuaram a histórica diferenciação social no meio rural e degradaram o meio ambiente: “são um sucesso do ponto de vista da lucratividade empresarial e um desastre do ponto de vista dos ganhos sociais” [6]*.
Com o advento da revolução verde, inúmeras famílias, assessoradas por empresas da extensão rural e centros de pesquisas agropecuários, passaram a usar massiva e indistintamente todo tipo de insumos bioquímicos, moto-mecanização e processos desordenados de irrigação. Estas práticas sem os devidos ajustes tecnológicos, associados a ocorrência de anos sucessivos de secas, levaram ao esgotamento das condições biofísicas de muitas áreas, perda ecológica, erosão genética (animais e vegetais), agravamento dos processos erosivos e a redução da capacidade dos solos de armazenar água nas precipitações. Ou seja, empobrecimento e desagregação generalizada das famílias e comunidades.
Como se pode observar, os limites imputados à região se exacerbaram com a prática do modelo em vigência. Se antes eram associados à natureza e às famílias (violência simbólica), agora, muito mais agravados, são justificados enquanto problemas conjunturais, pela ingovernabilidade do tempo, pelo pouco aprofundamento das pesquisas e testes para determinados tipos de solos, produtos ou técnicas, e/ou, em alguns casos, pela incompreensão de suas intencionalidades e capacidades transformadoras. De defesa fragilizada, o principal limite do modelo parece estar na própria essência, pois, desconsiderar as características naturais de uma região, mesmo nas intervenções mais primárias, é um erro rudimentar.
A tarefa para garantir a produção de alimentos passa a ser restabelecer as bases para a construção de um modelo de desenvolvimento que considere, sobretudo, as condições naturais da região, seus limites, potencialidades, culturas, saberes e conhecimentos construídos, suas peculiaridades. A sustentabilidade, afirmação de um desenvolvimento equilibrado, passa pelo enfrentamento aberto às concepções capitalistas de desenvolvimento e às visões oportunistas que se apropriam do discurso ambientalista, e até revestem seus empreendimentos de alguma maquiagem ambiental, mas que, na essência, reproduzem os modelos de concentração de renda, de empobrecimento e de depredação dos recursos naturais. Passa pelo direito a terra e aos territórios.
A principal e mais significativa estratégia de produção de alimentos das famílias agricultoras no Semiárido é o plantio dos roçados. Este tem dado provas da sua eficiência e importância para a produção e reprodução do modo de viver no Semiárido. Nenhuma estratégia que tenha como centro negar a importância do roçado, ou mesmo querer substitui-lo, será vitoriosa. Enganam-se os que não consideram este espaço como primordial e único. Numa relação de causa/efeito, é possível perceber que o papel das agriculturas de sequeiro como quem mais contribuiu para a cultura do estoque. Uma está diretamente associada ao outra.
Somado ao roçado, estar a criação de pequenos e médios animais, observando apenas os caprinos, o Semiárido detém 75% de todo o rebanho nacional. Estes se constituem poupanças para os períodos de festas, doenças, viagens ou investimentos em equipamentos e mão de obra.
As infraestruturas de captação e armazenamento de água das chuvas com finalidade de potencializar a produção de alimentos apresentam-se como solução simples, de baixo custo, prática, fácil, e adaptadas às condições de vida da população rural do Semiárido. Elas, associadas à cultura de sequeiro, estão dentro das estratégias de aumento de estoque e quase sempre estão relacionadas ao aumento da fertilidade dos quintais, da criação de animais, do cultivo de pomares, do plantio de hortaliças e de jardins, e outras.
O estoque de água para a produção de alimentos tem permitido o aumento em quantidade e qualidade na capacidade produtiva das famílias, tornado as práticas agrícolas e a gestão das águas disponíveis um princípio básico que se inter-relacionam e ajudam a formar um todo sistêmico.
Na linha do estoque de água precisa-se observar:
  1. Água para consumo humano - elemento primeiro de segurança alimentar, deve ser sempre a prioridade da política de acesso à água no Semiárido. Não existe ação sustentável de produção de alimentos se a família ainda não conseguiu suprir se quer o direito a água de beber;
  2. Água para produção de alimentos – central no apoio aos plantios e na dessedentação animal, a ampliação da oferta de água para produção de alimentos apresenta variações que devem considerar as características da região, as culturas trabalhadas e as diversas aguadas disponíveis. Os barreiros são primordiais e cumprem papel estratégico no aumento da disponibilidade de água no agroecossistema.
Associado a estratégia de estoque de água para a produção de alimentos, está a prática do estoque de sementes e forragem para os animais. Quando trata-se de sementes, não pode-se restringir às sementes vegetais, flanco que precisa cada vez mais de combatentes, porém, vale destacar outra frente também muito importante, que versa sobre os riscos que as sementes de animais, várias raças, correm de desaparecer, a exemplo das cabras, animal símbolo do Semiárido. O “canto da sereia” fala de melhoramento de raças. Que raças seriam melhores do que aquelas que vivem e vivem bem nas condições da região? Cabras, ovelhas, porcos, galinhas, abelhas nativas, dentre outros, são primordiais para produção de alimentos na perspectiva da convivência plena com o Semiárido.
Na mesma linha, o estoque de forragem aumenta a capacidade de disponibilização de alimentos e garante os rebanhos nos períodos de estiagens prolongadas.
3.    Os espaços de gestão das águas de produção.
A elaboração de políticas de acesso à água para produção no Semiárido, precisa considerar uma clara distinção entre fontes, usos e gestão das águas. Em especial as aguas de gestão familiar e as águas de gestão comunitária.
Na perspectiva dos programas da ASA, P1MC e P1+2, hoje se trabalha com quatro linhas de acesso à água: 1) água familiar de beber e cozinhar, 2) água comunitária de beber na escola, 3) água familiar de produção e 3) água comunitária de produção.
Nas linhas de água para produção, i) familiar e ii) comunitária, a primeira, geralmente destina-se a potencialização de quintais produtivos, pomares, criação de aves, roçados ecológicos, sistemas agroflorestais e outros, são fontes constituídas a partir de tecnologias com pequena ou média capacidade de armazenamento, suficientes para atender as necessidades de uma família. Geralmente são cisternas-calçadão, cisternas de enxurrada, barragens subterrâneas. Tecnologias voltadas especialmente para autoconsumo.
Neste tipo de gestão, familiar, os quintais destacam-se pela diversidade e envolvimento dos membros da família. Hoje a principal ação da ASA está voltada para este tipo de acesso à água.
Na água de produção comunitária, também conhecida como água da comunidade, existem duas distinções quanto à temporalidade do uso, a primeira, de uso do cotidiano, geralmente tanques de pedras, pequenos e médios açudes que não conseguem passar de um inverno a outro, e a segunda, denominada água de emergência, que geralmente fica guardada para os períodos mais secos. São médios açudes e poços. Ambas as formas estão geralmente associadas a dessedentação de animal e ao abastecimento domésticos como lavado de roupa, lavar louça, limpeza da casa, banho, outros.
Ampliar a malha de pequenas obras hídricas para um milhão de unidades de produção familiar requer um investimento na ordem de 10 bilhões de reais, valor expressivo, porém, insignificante quando comparado a investimentos como os da transposição do rio São Francisco, que para dois canais está estimado em 7 bilhões de reais. Outra referência são os recursos destinados ao PRONAF, que só no ano de 2010, foram 12 bilhões de reais. Considerando que o Semiárido concentra quase metade da agricultura familiar no País, disputar a aplicação destes recursos em infraestruturas produtivas é parte deste debate estratégico.
4.    Conclusões.
Investir na construção de tecnologias sociais de captação e armazenamento de água das chuvas para produção de alimentos, apresenta-se como uma solução simples, de baixo custo, prática e fácil de ser implementada, já adaptada às condições de vida da população rural do Semiárido.
As tecnologias sociais hoje apoiadas pelo MDS na parceria com a ASA e com estados como Bahia, Ceará, Piauí, Minas Gerais e Rio Grande do Norte, não são as únicas e nem se pretendem as melhores. Acredita-se ser possível sempre ir fazendo ajustes para ampliar a capacidade das famílias de estocar água para produção de alimentos.
No que cabe a nós, equipes técnicas das organizações, governamentais ou não, na contribuição para produção de alimentos no Semiárido, a tarefa não se concretiza com a simples aplicação de formulas, mesmo as que se reivindicam de convivência com o Semiárido, é preciso ir além e partir do processo e não dos produtos.
Para nossa reflexão, listamos abaixo alguns princípios orientadores para nossa ação:
         Romper com a lógica da ciência positivista de que as comunidades sempre estão em desvantagem e precisam de ajuda externa;
         Partir sempre das necessidades das famílias agricultoras e não querer definir por elas;
         Dialogar com os diversos conhecimentos e o saberes existentes nas comunidades para encontra soluções para os limites postos;
         Perceber pesquisa, crédito e extensão rural para além dos subsistemas e culturas alimentares. Considerar a família como centro determinante das ações para produção de alimentos;
         Perceber os sistemas não apenas como de produção e consumo, mas, mediados por significados;
         Não desestabilizar as lógicas montadas pelas famílias partindo do pressuposto de que a intensão é boa e pode dar certo.
Neste sentido, como você pode contribuir em sua comunidade para aumentar o estoque de água para a produção de alimentos?
Como se dá as experiências de gestão das águas em sua comunidade?
REFERÊNCIAS
ANA, Agência Nacional de Águas. Atlas Nordeste: abastecimento urbano de água: alternativas de oferta de água para as sedes municipais da região nordeste do Brasil e do norte de Minas Gerais, ANA, Superintendência de Planejamento e Recursos Hídricos; Consórcio Engecorps/Projetec/Geoambiente/Riverside Thechnology. Brasília: ANA, SPR, 2006.
ASA, Articulação no Semiárido Brasileiro. Declaração do Semiárido brasileiro: O Semiárido tem direito a uma política adequada. Recife: ASA, 1999.
ASA, Articulação no Semiárido Brasileiro. Reflexões e proposições da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), no intuito de contribuir para a garantia plena do acesso à água para todas as pessoas no Semiárido: O lugar da convivência na erradicação da extrema pobreza. Recife: ASA, 2011.
BARBOSA, A. G. Sociedade civil na construção de políticas públicas para a convivência com o Semiárido. Recife: ASA, 2011.
BARBOSA, A. G. Riqueza genética: um patrimônio dos povos. Recife: ASA, 2009.
BARBOSA, A. G. O Semi-Árido é belo e constrói conhecimentos. Informativo RTS - Rede de Tecnologia Social, site: www.rts.org.br, 11 jun. 2007.
BRASIL, Ministério da Integração Nacional- MIN. Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido- PDSA, 2005.
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Programa de ação nacional de combate à desertificação e mitigação dos efeitos da seca. Brasília, DF, 2005a.
CONSEA. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O acesso e os usos da água no contexto da soberania e da Segurança alimentar e nutricional. 2008.
IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010, 2010.
RUANO, Onaur; BAPTISTA, Naidison Q. Acesso à Água como Fator de Segurança Alimentar e Nutricional no Semiárido Brasileiro. In.: Brasil, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – FOME ZERO – Uma história brasileira –Vol. II 117-134. Brasília, 2010.
SIQUEIRA. R. De Sobradinho à transposição: para onde corre o São Francisco?. II Encontro de Ciências Sociais e Barragens. Salvador, BA, 2007.


[1] Sociólogo, Coordenador do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) e professor coordenador neste módulo de Acesso á Água.
[2] Este conteúdo fora mais profundamente abordado em aulas anteriores.
[3] Centro de Pesquisa Tecnológica do Semi-Árido – CPTSA. Disponível em: www.cptsa.embrapa.br
[4] IBGE. Censo Agropecuário. 2006
[5] IBGE. Censo Agropecuário. 2006
[6] Banco Mundial, Impactos e externalidades sociais da irrigação no Semi-Árido brasileiro. Disponível em: www.bancomundial.org.br
*O estudo é bastante minucioso sobre a irrigação no semiárido, inclusive em regiões da transposição, tendo em vista estudar a correlação entre a agricultura irrigada e a diminuição da pobreza na região. Durante as três últimas décadas, foram investidos mais de US$ 2 bilhões de recursos públicos em obras ligadas à irrigação, destinados ao abastecimento de 200 mil hectares no semiárido, dos quais 140 mil considerados produtivos. Apenas quatro dos onze projetos estudados são superavitários – sete são deficitários. Do ponto de vista social e ambiental são “desastrosos”. O que não inviabiliza a irrigação como alternativa para o desenvolvimento da região, conclui compósito o estudo... (Rubens Siqueira)

Gestão e controle social das políticas de acesso à água no Semiárido

Antonio Gomes Barbosa[1]
Rafael Santos Neves[2]

Contextualização

A partir do final da década 1980 e início da de 1990, após um longo período de ditadura militar - na região nordeste estreitamente associada a centenárias práticas coronelistas, em que a opinião e o livre pensar eram reprimidos e acusados de algo subversivo e de caráter negativo -, com a reorganização de espaços formais e informais nas comunidades rurais e o surgimento de inúmeras organizações de assessoria, ganha força o ideário de disputar junto ao Estado ações de apoio a um melhor viver e conviver com as características da região.

Neste cenário, duas questões centrais emergiram da sociedade civil como linhas de ação para a convivência com o semiárido. De um lado, o imperativo de se ter do Estado uma ação provedora que suprisse necessidades seculares básicas, a exemplo da disponibilidade de água para beber e produzir alimentos, educação contextualizada, saúde, suporte técnico, transporte, comercialização e outros. Por outro lado, estas mesmas necessidades não se realizariam sem a disputa no Estado de sua concepção de desenvolvimento, que o levava a uma prática privatista de terceirização das funções estatais.  

Como propostas para o enfrentamento destas necessidades, surgiram ações elaboradas a partir das experiências realizadas pelas comunidades e adaptadas à realidade do semiárido, a exemplo da construção de cisternas de placas. A gênese da elaboração, da proposição e da cobrança por políticas de convivência com o semiárido surge de ações já vivenciadas pelas famílias e da necessidade de se ampliar estas experiências em escala.

Estas experiências trazem consigo as formas de controle social exercido pelas comunidades. Ou seja, as experiências vivenciadas de gestão coletiva de aguadas, fundos rotativos, pastorais, associações, dão origem não apenas às formas de gestão, mas suas nuanças e formatos de controle social também ajudam a compor o controle social das políticas públicas no semiárido.
Participação social na elaboração, proposição, execução e controle das políticas

A troca destas experiências acima citadas propiciou a articulação de entidades e levou à constituição do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido, materializado pela ASA, alicerçado em dois principais programas: o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2). Estes, por sua vez, são ampliados nos estados e municípios em um conjunto de outras iniciativas semelhantes constituindo-se em exemplos consistentes de uma experiência que mostra que a sociedade organizada elabora, propõe, gesta e faz o controle social de uma politica.

Todavia, quase não há outros casos na mesma dimensão. Isto faz desta experiência, dentro do objetivo deste texto, uma oportunidade de refletirmos como comunidades rurais de uma região tão esquecidas pela ação do Estado emplacaram uma das mais belas experiências de intervenção de uma política, cobrando dos gestores públicos o apoio a outras iniciativas comunitárias.

O sucesso do programa se explica por ele ser focado em necessidades concretas e comuns a várias famílias rurais da região. Quando se fala em semiárido logo vem à cabeça a ideia de água associado a alguma ação coletiva para suprimir a demanda. Outro elemento é que a solução para o problema focado, identidade da necessidade, consiste em uma ação extraída do seio da própria comunidade. Segue um princípio onde o antídoto manifesta-se na própria natureza.

As estratégias de convivência com o semiárido acumuladas pelo povo da região apontam para o papel primordial cumprido pela estocagem. A construção de tecnologias sociais para a captação e o armazenamento de água da chuva, a partir de formas simples que aproveitam as potencialidades da região, inclui dezenas de inovações, a exemplo das cisternas de placas, cisternas-calçadão, barragens subterrâneas, caldeirões ou tanques de pedra, cacimbas ou poços rasos, poços amazonas, caixios, barreiros, pequenos açudes e barragens sucessivas, entre outras. Estas tecnologias sociais são de domínio comum.

A sistematização destas práticas coube às organizações de assessoria e assistência do semiárido, que a partir de métodos participativos envolveram as comunidades em processos reflexivos que indagassem:

a)    Quais as principais necessidades?

b)    Como são definidas as prioridades?

c)    Como reforçar os princípios da ação na comunidade?

d)    Como escolher quem deve acessar primeiro?

e)    Que conhecimento se precisa para fazer a gestão das alternativas encontradas?

f)     Quais funções devem ser cumpridas por cada sujeito envolvido diretamente na ação?

g)    Como as informações construídas são repassadas?

h)   Quais outras questões são importantes serem observadas?

Desta forma, a prática das comunidades foi organizada numa teoria da prática.Estas questões sistematizadas reafirmaram a centralidade da água para beber e para produzir alimento, agora organizada em uma metodologia de fácil entendimento e replicável para lugares diversos sem perder sua identidade.

Em meio a essas dinâmicas estava em processo outra ação de controle social. No ano de 1999, durante a 3a Conferência das Partes da Convenção de Combate à Desertificação e à Seca (COP3), em Recife, a ASA foi fundada e lançou-se à meta de construir um milhão de cisternas rurais para o atendimento às necessidades básicas das famílias no semiárido. Nasceu o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido: Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC).

Como resultado dessa articulação veio o primeiro apoio, pela Agência Nacional de Águas (ANA), ligada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA). A partir de 2003 o P1MC foi incorporado, então, como política de governo pelo então Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Nutricional (MESA), que deu lugar, posteriormente, ao Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). No decorrer desse tempo o programa contou também com o aporte orçamentário da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), além de outras parcerias com instituições privadas.

Ainda assim, a incipiência de estruturas produtivas, em especial hídricas, fazia com que mais de um milhão de unidades de produção familiar continuassem susceptíveis às intempéries do tempo. Portanto, ampliar a oferta de água estocada para a produção de alimentos teria que ser um passo imprescindível para debelar de vez os altíssimos índices de insegurança alimentar e nutricional, gerar renda e ampliar a autonomia das famílias.

A partir de 2007, ao Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido da ASA, insere-se o P1+2, com o apoio da Fundação Banco de Brasil (FBB) e da Petrobras.

Através do P1+2 prioriza-se a segurança e soberania alimentar a partir da produção agroecológica de alimentos, ancorada na construção de infraestruturas hídricas como cisternas-calçadão de 52 mil litros, barragens subterrâneas, tanques de pedra/caldeirões e bombas d’água popular. A partir de 2008 o P1+2 também passa a contar com aporte de recursos do MDS, da CODEVASF e do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA).

Foi a concepção educativa que possibilitou a um maior número de famílias agricultoras uma visão holística da realidade e das políticas de convivência entre as pessoas, a fauna, a flora e demais paisagens do semiárido. Numa relação sustentável e complementar, visibilizou-se muitos conhecimentos produzidos por agricultores e agricultoras a partir da troca horizontal de saberes e da sistematização de experiências vinculadas à produção de alimentos, manejo da terra e das águas, geração de renda e outras estratégias que elevaram a autoestima das famílias e reforçaram a imagem do semiárido brasileiro como belo e produtor de conhecimentos.

Dentro deste processo entende-se, então, a gestão social como a relação que pessoas constituem para realizar ações, projetos, programas ou políticas, representando interesses individuais e/ou coletivos, guiados para o social, mas sobretudo, pelo social. O Portal da Transparência mostra que,

por meio da participação na gestão pública, os cidadãos podem intervir na tomada da decisão administrativa, orientando a Administração para que adote medidas que realmente atendam ao interesse público e, ao mesmo tempo, podem exercer controle sobre a ação do Estado, exigindo que o gestor público preste contas de sua atuação (BRASIL, 2011).  
Estruturas de gestão da sociedade civil

É importante destacar que as experiências de gestão social para acessar as políticas públicas fazem parte de uma história muito recente. Gestão social aqui compreendida como a relação sociedade/Estado para superar problemas imediatos, porém com funções distintas, em que o Estado tem obrigações e a sociedade tem direitos e deveres.

A gestão é sempre vista como uma função do Estado, cabendo a ele, e somente a ele, tal tarefa. A princípio, a formulação está correta. Cabe ao Estado suprir as necessidades da população. A gestão social não tem a intensão de substituir o Estado, e sim, acessá-lo, expor suas contradições e ainda fortalecer políticas exitosas.

Os espaços de gestão social conhecidos hoje para a execução das políticas de acesso a água no semiárido, a exemplo dos fóruns microrregionais, as comissões municipais e as comissões comunitárias, não nasceram para cumprir a função de gestores das políticas públicas, mas sim, para fazer a gestão e o controle de iniciativas locais, das aguadas comunitárias, casas de sementes, fundos rotativos, grupos informais de jovens e mulheres, associações, etc. Porém, tornaram-se exitosos e eficientes reforçando as capacidades organizativas da sociedade na gestão coletiva das políticas.

No semiárido, o acesso à água, obrigação do Estado, sempre foi usado como forma de encabrestar milhares de famílias e sua inexistência era entendida como decorrente de fatores climáticos ou divinos, e sua concessão como um favor. Na perspectiva adotada neste texto, o que se busca é realçar a omissão do Estado, e em oposição, o papel protagonizado pelas comunidades. O empoderamento do povo a partir das experiências, evidencia, denuncia e cobra que o Estado cumpra suas funções.

Numa lógica bem delineada o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido, a partir da sua sistematização, constituiu uma estrutura de gestão política e administrativa que acessa recursos públicos previstos no Orçamento Geral da União (OGU), fazendo então, girar um número significativo de conhecimentos, informações e recursos por quase todos os municípios dos nove estados do semiárido. Isso mexe com pessoas, organizações e o mercado local.

Na condução da ação, o que garante de fato que o programa não saia de suas diretrizes e chegue às famílias, realizando sua função de gestão e controle social, é a participação ativa das comissões municipais e comunitárias, organizadas por organizações de base, que retroalimentam a política e ajudam a corrigir possíveis falhas.
Papéis do governo e da sociedade civil na gestão das políticas públicas de acesso à água

Embora as ideias de participação e controle social estejam intimamente relacionadas à responsabilidade da sociedade e sejam reafirmadas pela Constituição Federal, quando se analisa os espaços de gestão, a concepção tende a  restringir o papel da sociedade apenas à formulação e fiscalização. Tal fato confunde o entendimento e limita a gestão ao espaço do controle social.

É papel do Estado, a partir de suas esferas de poder, municípios, estados e união, garantir e efetivar direitos. Este princípio deve guiar todos os espaços e diálogos de formulação e controle social das políticas públicas. Todavia, para além de formular propostas e fiscalizar o Estado, a experiência da ASA em curso no semiárido nos convida para irmos um pouco adiante, a refletirmos e buscarmos entender o papel da sociedade enquanto executora de uma política pública.

Quando o Estado consegue apoiar uma iniciativa da sociedade para resolver problemas comuns, este não apenas cumpre seu papel, como amplia o conceito de gestão, fortalecendo-se enquanto espaço público.

Contudo, o apoio do Estado para a efetivação da gestão social não é algo tão simples, seu principal limite está na ausência de um marco regulatório que estabeleça regras claras na contratação de bens e serviços que permitam ações mais fluidas e permanentes. O que se tem vivenciado em muitos casos é a inviabilização das parcerias e a criminalização das organizações e movimentos que acessam recursos públicos.

Um balizador para a gestão social é que toda relação sociedade/Estado deve estar ancorada em estratégias claras cujos interesses das comunidades estejam acima de interesses particulares. Nesse sentido, a experiência da ASA parte de algumas premissas fundamentais:

a)    A dimensão do controle social é mantida a partir do envolvimento das comissões municipais nos processos de seleção e acompanhamento junto às comunidades;

b)    Os conteúdos e a metodologia dos processos formativos permanecem aplicados, enfocando as ações de acesso à água enquanto direito;

c)    As famílias e comunidades são as protagonistas dos processos de construção das tecnologias sociais e a elas cabe a condução dos processos locais.

A principal tarefa no intuito de garantir uma ação de gestão continuada entre organizações da sociedade e instâncias de governos (Estado) é a necessidade de  termos a clareza dos papeis de cada esfera de governo deve cumprir e o compromisso de não uma não subjugar a outra.
Considerações finais
A gestão e o controle social de políticas públicas, embora possam parecer antagônicos, em alguns casos podem e devem, sim, ser exercitados em um mesmo espaço, sem com isso perder suas identidades e descaracterizar os sujeitos. O controle social é parte do processo de gestão, instrumento de promoção de democracia no qual cidadãos, no exercício da vontade coletiva, avaliam, fiscalizam, selecionam e fazem prospecção de metas.

Para as comunidades do semiárido, fazer a gestão de uma política de acesso à água não constitui uma substituição do Estado, mas sim, um exercício prático de empoderamento e de democratização deste mesmo Estado. É uma integração da sociedade com o poder público, com a finalidade de se concretizar e universalizar estratégias de convivência com o semiárido.

Por ultimo, embora tenha ficado implícito no decorrer do texto, destacamos que não foi apenas a sociedade que mudou suas práticas e formas de acessar o Estado. Mas, o Estado também vem sendo influenciado e minado por um novo paradigma de desenvolvimento, que considera a participação e o controle social como vitais para a concretização de uma nova sociedade.
BIBLIOGRAFIA

ASA. Articulação no Semiárido Brasileiro. Reflexões e proposições da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), no intuito de contribuir para a garantia plena do acesso à água para todas as pessoas no Semiárido: O lugar da convivência na erradicação da extrema pobreza. Recife: ASA, 2011.

BARBOSA. Antonio. Gomes. Sociedade civil na construção de políticas públicas para a convivência com o Semiárido. Recife: ASA, 2011.
BARBOSA, Antonio Gomes. O Semiárido é belo e constrói conhecimentos. Informativo RTS - Rede de Tecnologia Social. Disponível em: www.rts.org.br. Acesso em 11 jun. 2007.
BRASIL. Portal da transparência. Disponível em:  http://www.portaltransparencia.gov.br/controleSocial. Acessado em 26 out. 2011.
CONSEA. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O acesso e os usos da água no contexto da soberania e da segurança alimentar e nutricional. 2008.
RUANO, Onaur; BAPTISTA, Naidison de Quintela. Acesso à Água como Fator de Segurança Alimentar e Nutricional no Semiárido Brasileiro. In.: Brasil, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – FOME ZERO – Uma história brasileira –Vol. II 117-134. Brasília, 2010.


[1] Sociólogo, Coordenador do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA).
[2] Graduado em Pedagogia e assessor técnico do Programa Um Milhão de Cisternas (P1 MC) implementado pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA).

PREFÁCIO - Superação da pobreza rural no Semiárido brasileiro: a trajetória do Projeto Dom Hélder Câmara

 Antonio Gomes Barbosa1 “Ótimo que a tua mão ajude o vôo...Mas que ela jamais se atreva a tomar o lugar das asas...” (Dom Hélder Câmara) Ao ...