A ordem é desobedecer: Sueli Rodrigues e os sujeitos desconstitucionalizados
Por Antônio Gomes Barbosa, sociólogo
Maria Sueli Rodrigues de Sousa, jurista, socióloga e pensadora piauiense, construiu um dos aportes mais singulares do constitucionalismo crítico brasileiro contemporâneo. Sua trajetória não foi apenas acadêmica: foi também vivida, partilhada e forjada no chão do sertão do Piauí, entre comunidades tradicionais, territórios camponeses, escolas e movimentos sociais. Sua obra se articula por uma epistemologia da convivência, em que o direito se constitui a partir das experiências populares, das memórias compartilhadas e dos afetos politicamente organizados.
Sueli cunhou a expressão “sujeitos desconstitucionalizados” para expressar uma contradição fundante da ordem jurídica brasileira: a distância entre o texto constitucional — inclusivo e formalmente democrático — e a persistente exclusão de povos e comunidades que, mesmo reconhecidos em normas, seguem desprovidos de direitos efetivos. Em Vivências constituintes: sujeitos desconstitucionalizados (2021), propõe que a Constituição não é apenas letra escrita, mas um campo de disputas simbólicas e materiais em que sujeitos historicamente marginalizados — negras e negros, indígenas, camponesas, ribeirinhos, quilombolas, populações periféricas — são impedidos de constituir-se politicamente como sujeitos plenos.
Sua crítica se desdobra na proposição de uma reconfiguração do constitucionalismo, a partir do que chama de “vivências constituintes”: experiências cotidianas e práticas normativas autônomas que tensionam, reescrevem e fundam outros modos de existir e legislar. Não se trata de uma recusa ao direito, mas de uma recusa ao monopólio epistemológico que o Estado exerce sobre o que é reconhecido como direito. Como ela afirmou em entrevista: “a ordem é desobedecer os marcos da cultura eurocêntrica” — uma frase que se tornou emblema de sua desobediência epistêmica, entendida como gesto de ruptura com os sistemas de verdade que separam saberes válidos de saberes ilegítimos.
Em sua dissertação de mestrado, Imaginário social de semiárido e o processo de construção de saberes ambientais (2005), Sueli analisa os modos de saber das comunidades camponesas do Piauí sobre o clima, o solo, as chuvas e o cultivo da terra. Revela como o conhecimento ambiental ali produzido se enraíza em experiências vividas, narrativas orais, religiosidades e práticas herdadas — e denuncia o extrativismo cognitivo e o tecnicismo jurídico que tentam invalidar tais saberes em nome de uma racionalidade supostamente neutra. A produção do conhecimento, segundo ela, é parte da luta por reconhecimento e dignidade. Em suas palavras: “toda vida produz conhecimento. O problema é que só algumas vidas são reconhecidas como produtoras de saberes”.
A tese de doutorado, defendida na Universidade de Brasília em 2009, aprofunda e radicaliza esse percurso. Em O povo do Zabelê e o Parque Nacional da Serra da Capivara no Estado do Piauí: tensões, desafios e riscos da gestão principiológica da complexidade constitucional, Sueli denuncia a violência institucional produzida por uma política ambiental que, ao invocar princípios constitucionais e normas internacionais, desaloja, invisibiliza e deslegitima os modos de vida tradicionais. A comunidade do Zabelê, localizada nos arredores do Parque Nacional da Serra da Capivara, é tomada como caso emblemático da contradição entre conservação ambiental e permanência comunitária.
Na tese, Sueli propõe uma crítica à “gestão principiológica da complexidade constitucional”, ou seja, à aplicação de princípios jurídicos abstratos — como a proteção ambiental ou a função social da terra — de maneira descolada das realidades vividas. Para ela, essa aplicação desconsidera a complexidade dos territórios, das relações simbólicas e da historicidade dos povos. Sua defesa é por um direito que se forme a partir do que ela chama de “direito fenomenológico e territorializado”, fundado nas experiências, nos corpos, nos ritmos e nas memórias das comunidades.
O campo epistemológico proposto por Sueli se entrelaça com o de pensadores como Walter Mignolo, Silvia Rivera Cusicanqui e Catherine Walsh, mas é profundamente ancorado nas realidades brasileiras. Há, contudo, uma afinidade conceitual e afetiva ainda mais intensa com o pensamento de Nêgo Bispo, quilombola do Piauí, com quem Sueli compartilhou espaços de militância, formulação e reencantamento do território. Enquanto Sueli propõe as “vivências constituintes” como práticas fundantes de um novo constitucionalismo, Bispo fala em “ciência do mato”, “transfluência” e “epistemologias da encruzilhada” — todas formas de desestabilizar a hierarquia entre saberes e de afirmar que o conhecimento legítimo não nasce no centro, mas nas bordas, nas encruzilhadas, nos territórios de reexistência.
Ambos afirmam que a oralidade, a memória, a experiência coletiva e o pertencimento territorial não são obstáculos à produção de direito: são, ao contrário, suas condições mais legítimas. Ao lado de Bispo, Sueli constrói o que podemos chamar de uma epistemologia da convivência, marcada pela desobediência amorosa, pela insurgência afetiva e pela recusa em aceitar que o Estado e suas instituições sejam os únicos mediadores da legalidade e da existência.
No ensaio “Quem precisa de identidade? Eu preciso”, Sueli revisita sua própria trajetória. Narra que, enquanto vivia no Saco da Ema, não precisava de identidade individualizada: “eu era da minha comunidade”. Foi ao migrar para espaços urbanos que lhe foi exigido o documento, o CPF, a comprovação institucional de sua existência. Mas essa exigência, segundo ela, destitui a pessoa de sua forma de pertencimento original e impõe um modelo de cidadania que é, ao mesmo tempo, regulador e excludente. Sueli escreve: “o direito estatal é um, mas você conduz a sua vida com o direito que não necessariamente é o estatal... você faz parte da sua comunidade”.
Esse olhar se materializa em diversas falas públicas. Em um vídeo de 2022, Sueli afirma: “Eu sou contra o desenvolvimento, eu sou contra o progresso”. Essa recusa não é irracional ou romântica: é uma crítica profunda à colonialidade do desenvolvimento, que transforma modos de vida em “atraso” e comunidades tradicionais em obstáculos. Em vez disso, Sueli propõe formas de convivência com a terra, com os saberes, com os tempos e com os territórios, que rompem com o imperativo produtivista da modernidade.
Sua contribuição para o direito brasileiro é, assim, ao mesmo tempo teórica, política e afetiva. É teórica, porque propõe categorias novas para pensar o constitucionalismo — como sujeitos desconstitucionalizados, vivências constituintes e direito fenomenológico. É política, porque insere esses debates no contexto das lutas por terra, água, memória e autonomia dos povos. E é afetiva, porque afirma que o direito não pode ser apenas técnica ou norma, mas precisa ser relação, cuidado, partilha.
Em tempos de retrocesso institucional, criminalização de saberes ancestrais e repressão aos territórios populares, a obra de Sueli Rodrigues ressoa com ainda mais urgência. Sua frase — “a ordem é desobedecer” — não é apenas uma provocação. É um chamado à construção de outro mundo: mais justo, mais sensível e mais plural. Um mundo onde o direito seja também palavra viva.
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