Conhecer, experimentar, sistematizar*.

Antônio Gomes Barbosa**

Durante tempos, o rural foi tido como lugar menor, sem importância e com poucas perspectivas de suscitar coisas novas. O tema da inovação sempre foi associado ao meio urbano, espaço propício ao desenvolvimento da ciência, da indústria e das tecnologias. Esta visão deveu-se ao fato de a sociologia clássica ter passado parte importante do seu tempo tentando explicar e até fazer crer que o rural estaria em vias de desaparecer. Fosse pelo fim de suas relações de solidariedade, pela incorporação da sua força de trabalho e de suas áreas ao capitalismo industrial, ou pela evolução da ciência. Contrariando essa perspectiva, o rural se solidificou enquanto espaço social e de produção e ressignificou suas identidades. Hoje, setores da sociologia rural têm se dedicado ao estudo das chamadas “novas ruralidades”.
No Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010),  16% da população vive no meio rural, cerca de 30 milhões de pessoas. Por população rural entendem-se as muitas identidades socioculturais que vivem no campo, nas várzeas e/ou nas floretas. São camponeses e/ou agricultores familiares (lavradores, trabalhadores rurais, vaqueiros, pequenos agricultores, meeiros, arrendatários, parceiros, sem-terra, retirantes, outras); povos indígenas de diferentes grupos étnicos (Náuas, Tupinambás, Matipus, Apiums, Mundurukus, Kaxixós, Aranãs, Kariris, Kalabaças, Tabajaras, Tapebas, Pitaguarys, Tremembés, Kanindés, Tupinambás, Tumbalalás, Kalankós, Karuazus, Pipipãs, dentre outros); e comunidades tradicionais (agroextrativistas, geraizeiros, quilombolas, pescadores artesanais, ribeirinhos, faxinalenses, sertanejos, vazanteiros, quebradeiras de coco, caatingueiros, comunidades de fundos de pasto, seringueiros, caiçaras, dentre outras).
Mediadas pelas necessidades do cotidiano, esta infinidade de identidades gerou saberes, práticas e técnicas de convivência com o meio, que somado à biodiversidade, faz do Brasil um dos países mais estratégicos no cenário mundial, tanto na perspectiva da produção de alimentos, de energias renováveis e da disponibilidade de recursos naturais, quanto na produção de conhecimentos acumulados nas diversas regiões do país. São conhecimentos que geram tecnologias sociais de baixo custo, baixo impacto, eficientes e de domínio das populações. Inovações que precisam ser testadas, adaptadas, reinventadas e ampliadas em nível de políticas públicas.
No Semiárido, a cada período de estiagem, milhares de pessoas não conseguem satisfazer suas necessidades de acesso à água e aos alimentos básicos. As famílias em maior vulnerabilidade são as sem-terra e/ou as que dispõem de pequenas áreas. As causas não se devem a limitações do meio ambiente ou das populações locais, são, sobretudo, de natureza política. Nesse espaço, surge uma experiência que parte dos conhecimentos locais e altera a realidade de acesso a água de beber. Por iniciativa da sociedade civil, o Programa Um milhão de Cisternas (P1MC), que é a sistematização de uma prática milenar de armazenamento de água de chuva em pequenos e médios recipientes, com apoio do governo brasileiro, da cooperação internacional e da iniciativa privada, construiu mais de 500 mil cisternas com capacidade para 16 mil litros, tornaram uma região antes tida como seca, no Semiárido mais chuvoso do mundo. Solução barata, simples e do lado de cada casa. Nesta mesma perspectiva, a água de chuva tem sido utilizada para dessedentação animal, produção de alimentos em quintais, ampliação de pomares, uso doméstico, etc. São cisternas de 52 mil litros, barragens subterrâneas, barreiros-trincheiras, tanques de pedra, barraginhas, etc.
Na produção de alimentos, o uso da água exige técnicas eficientes e econômicas de irrigação como microaspersão e gotejamento, processos comuns em países como Israel, mas, que foram rejeitados na opção pelos grandes perímetros irrigados. Hoje, o armazenamento da água de chuva é uma solução em diversas regiões do país, a exemplo da construção de cisternas no Rio Grande de Sul, afetada por períodos de estiagem, e na região amazônica, que apesar da grande oferta, a água é poluída, imprópria para o consumo humano. A construção de cisternas precisa de adaptações para atender necessidades locais, porém, uma das formas mais eficientes e baratas de abastecimento populacional em regiões úmidas, secas, semiáridas e/ou ribeirinhas, diminui a incidência de doenças, a mortalidade infantil e melhora a qualidade de vida de homens e mulheres.
Dentre as inovações no meio rural, destaca-se o fortalecimento de princípios e técnicas da agroecologia, ciência que associa práticas tradicionais com técnicas mais eficientes do uso do solo, da biodiversidade, de insumos internos nas áreas das famílias, e respeita o meio-ambiente. Exemplo é a prática da agrofloresta, que tem se ampliado em biomas como cerrado e caatinga, o consórcio de plantas nativas, madeireiras, forrageiras, frutíferas, ornamentais, com cultivares e pequenos animais. São ações que contribuem para a mitigação e reversão de processos de desertificação, a recuperação dos solos e a ampliação da produção de biomassa pelo uso de compostos naturais: pedras, paus, folhas, galhos, frutos, restos de cultivo e etc.
A produção natural de gás de cozinha a partir de biodigestores, a conservação e uso e de sementes crioulas enquanto guardiãs do patrimônio genético, o manejo adequado dos animais, a produção de silos e fenos, a construção sustentável de infraestruturas produtivas (cercas, armazéns, currais, transporte), a produção de energia solar e a constituição de uma rede de economia solidária, são apenas algumas destas inovações. A mais significativa, é acreditar na possibilidade de famílias, povos e comunidades tradicionais exercerem o direito de definir seu futuro. Infelizmente o que se vê é o Estado brasileiro negligenciar essas iniciativas e conhecimentos. É o que justifica os parcos investimentos no meio rural, onde o Pronaf recebe R$ 17 bilhões, de forma desorganizada, e o agronegócio, que representa o que existe de mais atrasado e nocivo à sociedade e ao meio-ambiente, com cifras anuais que superam os R$ 100 bilhões. Portanto, ao olhar para o meio rural é necessário entender a efervescência desses processos inventivos. Sistematizar essas práticas inovadoras ajuda a torná-las conhecidas, a torná-las políticas de Estado.
Inovar é mudar rumos.

*Artigo publicado originalmente pela Revista Caros Amigos no livro Brasil da Inovação, maio de 2013.

**Antonio Gomes Barbosa - Sociólogo, coordenador do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido: Uma Terra e Duas Águas (P1+2), da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).

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