O DESAFIO DE TRANSFORMAR A ASSISTÊNCIA TÉCNICA EM CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO AGROECOLÓGICO
Um longo caminha a ser percorrido - ARTIGO ESCRITO EM 2003
Antonio Gomes Barbosa, sociólogo, assessor técnico da Ong CEPAC, Centro Piauiense de Ação Cultural.
O domínio do conhecimento “legitimo” sempre se constituiu ferramenta importante na relação de dominação de classes. É o conhecimento que estabelece qual o nível de relação sociedade-natureza, determinando as formas “legitimas” de comportamento e de utilização dos recursos naturais.
Quando a temática é agricultura, assistência técnica e extensão rural, o termo e os conceitos de conhecimento ganham muito mais relevância, não obstante, basta rever um pouco da historiografia humana.
A agricultura é a forma mais antiga de interferência de homens e mulheres na natureza, ela é a principal responsável por uma das mudanças mais significativa no comportamento humano, ou seja, sair da condição de nômade para tornar-se sedentário. Este comportamento possibilitou a construção de novas relações sociais, acumulação de bens e conhecimentos e a formação do estado. Ou seja, podemos afirmar sem dúvida alguma, que a agricultura possibilitou a existência humana nos moldes atuais.
No decorrer da história, nos vários modos de produção que se conhece, escravismo, feudalismo, modo de produção asiático, e até mesmo no socialismo e no capitalismo, a agricultura cumpri papel importante na construção de identidades e lógicas de poder. Nos períodos de escassez a agricultura é tida como uma estratégica de dominação. A policultura-pecuária possibilitou a acumulação de riquezas, e por sua vez, a evolução das ciências, da arte, da religião e a divisão social do trabalho. Porém, embora este seja um tema interessante, o que este texto pretende, ainda que de forma superficial, é fazer um breve relato da história e das formas de extensão rural no país a partir de uma visão crítica.
A chamada agricultura moderna, que tem sua origem ligada às descobertas do século XIX, passa a ter como principal corrente a chamada “Revolução Verde”. Sua difusão deu-se rapidamente, quase sempre apoiada por órgãos governamentais, pela maioria dos profissionais das ciências agrárias e pelas empresas produtoras de insumos (sementes híbridas, fertilizantes sintéticos e agrotóxicos); além do incentivo de organizações mundiais como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a United States Agency for International Development (USAID) - Agência Norte Americana para o Desenvolvimento Internacional), a Agência das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), dentre outras.
No Brasil, os serviços de ATER foram iniciados, pelo menos da forma como se conhece hoje, na década de 50, durante o pós-guerra. O objetivo da política desenvolvimentista então implementada seria promover a melhoria das condições de vida da população rural através de um processo de modernização do campo, somado à política de industrialização do país.
Inicialmente, a ATER foi implantada como um serviço privado ou paraestatal, com o apoio de entidades públicas e privadas. A partir de 1956, o presidente Juscelino Kubitschek criou a Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural – ABCAR, constituindo um sistema nacional articulado com a Associação de Créditos e Assistência Rural nos estados.
Em meados da década de 1970, o governo do presidente Ernesto Geisel “estatizou” o sistema implantado no país o Sistema Brasileiro de Assistência Técnica e Extensão Rural – Sibrater, coordenado em nível nacional pela Embrater e executado nos estados pelas Emater’s, empresas oficiais de ATER.
Como uma prioridade na política nacional, durante mais de uma década a participação de recursos do Governo Federal chegou a representar, em média, 40% do total dos recursos orçamentários das Emater’s, chegando em alguns estados até a 80%.
A partir de 1990, sob uma nova orientação para o desenvolvimento nacional, política conhecida como neoliberal, a política do “Estado mínimo”, o governo do presidente Fernando Collor extinguiu a Embrater, desativando o Sibrater, abandonando claramente os “esforços” antes realizados para a existência de serviços de ATER no país. A partir de então, a ATER oficial entrou em um processo crescente de crise, que foi e é tanto maior quanto mais pobres forem os estados e municípios.
No Brasil, de modo geral, a ATER sempre esteve mais voltada para o avanço da economia capitalista (latifúndios, que agora ganha a roupagem de agronegócios), do que para o fortalecimento de um conjunto de práticas que objetiva a vida dos agricultores e agricultoras familiares.
Nos últimos cem anos da historiografia agrária, é preciso fazer referência a duas transições agroecológicas em grande escala. Buttel (1995) considera que “a primeira delas teve uns começos balbuciantes na Europa e América do Norte no final do século XIX e se estendeu até meados do presente, que cabe caracterizar no sentido amplo como agricultura da “Revolução Verde”. A segunda transição agroecológica tem como essência um processo de “ecologização” da agricultura e começa dá seus primeiros passos”.
Para abandonar o primeiro e começar a construir o segundo, é preciso romper com o modelo da Teoria de Difusão de Inovações e os tradicionais pacotes da “Revolução Verde” e apontar para um processo de mudanças sociais, políticas, econômicas e institucionais, favorecendo a satisfação das necessidades básicas da população e a eqüidade social, tanto no presente quanto no futuro, promovendo oportunidades de bem-estar econômico que sejam compatíveis com as circunstâncias ecológicas de longo prazo.
No Nordeste, sobretudo na região semi-árida, é indispensável concretizar uma estratégia de desenvolvimento que possibilite mudança de rumo, um novo conjunto de significados, um novo senso de valores, capaz de redefinir prioridades, na direção de um futuro justo, eqüitativo, solidário e ecologicamente sustentável.
A afirmação de um desenvolvimento equilibrado passa pelo enfrentamento com as concepções tradicionais de desenvolvimento, e/ou com visões oportunistas que se apropriam do discurso ambientalista e até revestem seus empreendimentos de alguma maquiagem ambiental, mas que na essência reproduzem os modelos de concentração de renda, de empobrecimento e de depredação das bases de recursos naturais.
O semi-árido, ambiente de nossa reflexão, ocupa uma área de 900 mil quilômetros quadrados, abrangendo todos os estados do Nordeste, mais o vale do Jequitinhonha e norte de Minas Gerais e o norte do Espírito Santo, onde vivem mais de 22 milhões de pessoas, perfazendo 15% da população brasileira, 56% da população nordestina e 34% da população piauiense1.
Neste espaço quem mais se destaca é a agricultura familiar, correspondendo, só no Nordeste, a 49,7% (Incra/Fao). O papel relevante desse segmento produtivo está relacionado não apenas ao número, mas também aos impactos que pode causar, tanto no equilíbrio como no desequilíbrio de ecossistemas, solos e recursos naturais.
Oferecer a estes agricultores familiares o acesso a serviços de ATER pública, gratuita e de qualidade, pautada pela utilização racional dos recursos naturais e pela responsabilidade de todos os agentes inseridos no processo, possibilita estabelecer interações efetivas e permanentes destes com a natureza e sua biodiversidade.
É preciso apontar para o fortalecimento de políticas públicas de convivência com o meio, no nosso caso, com o semi-árido, para tanto, faz-se necessário compreender a visão que agricultores/as fazer de suas realidades, seus sistemas de produção e suas relações com a natureza, isto possibilita a formulação de políticas que resultem na melhoria da qualidade de vida, na valorizando e construção dos saberes, gerando bem-estar a partir da troca e da construção do conhecimento agroecológico.
Para pesquisadores como a profa. Dra. Emília Godoy, as percepções e ações dos sujeitos estão inscritas nas condições sociais e historicamente situadas a “funcionar” em um nível mais profundo do que a realidade passível de apreensão imediata.
Nesta perspectiva, perceber as ações e percepções que os/as agricultores/as têm da ação da ATER, através de suas relações com os meios de produção e com quem a faz, possibilita uma ação com menos erros e com mais chances de acertos partilhados.
1 IBGE – Censo 2000
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