A inovação tecnológica a serviço da democratização do acesso à água – A experiência da ASA no Semiárido Brasileiro


Por Antonio Gomes Barbosa*


As grandes obras hídricas, criadas supostamente para combater a seca e resolver o problema da escassez de água na Semiárido, associada à adoção maciça de modelos de transferência de  tecnologias, geraram um quadro de penúria e insegurança alimentar. Somado a isso, há ainda a negação das potencialidades locais e dos conhecimentos das populações para resolver  problemas.
O Semiárido Brasileiro é uma região que compreende dez estados, todos do Nordeste e do Vale do Jequitinhonha e norte de Minas Gerais, e se estende por cerca de um milhão de quilômetros quadrados. Dados oficiais do Ministério da Integração (MI) indicam que cerca de 22 milhões de pessoas vivem em 1.133 municípios da região. Se levarmos em consideração os municípios que ainda não são contabilizados no Semiárido oficial, esse número é ainda maior.
A vegetação predominante é a caatinga, único bioma exclusivamente brasileiro, rica em espécies vegetais que não existem em nenhum outro lugar. É a região semiárida mais populosa e também a mais chuvosa do planeta. 
Curiosamente, é uma região de déficit hídrico. Isso quer dizer que a quantidade de chuva é menor que a água que evapora, em uma proporção de 3 para 1. Além disso, as chuvas são irregulares e, algumas vezes, há longos períodos de estiagem. Durante essas épocas, a média pluviométrica pode chegar perto dos 200 milímetros anuais. Daí a importância de guardar a chuva adequadamente. No Semiárido Brasileiro, também existem diferenças marcantes do ponto de vista da precipitação anual de uma região para outra. Em alguns locais, o índice das chuvas pode chegar a 800 milímetros por ano. A Embrapa Semiárido classifica a região em mais de 170 microclimas.
A cada período de estiagem, milhares de pessoas que vivem no Semiárido não conseguem satisfazer suas necessidades de acesso à água e a alimentos básicos. Ao contrário do que se diz comumente, as causas dessa realidade não se devem a limitações do meio ambiente ou das populações locais, são, sobretudo, de natureza política e se expressam na enorme crise socioambiental que vivemos.
Se a concentração de água está indissociavelmente ligada à concentração da terra, no Semiárido tal constatação é ainda mais verdadeira. Das 4,36 milhões de famílias agricultoras que vivem no meio rural brasileiro, 1,7 milhão vivem no Semiárido, estas ocupam apenas 4,2% das terras agricultáveis.
Ao longo dos anos, grandes obras, como barragens, açudes e poços, se espalharam pelo Semiárido, reforçando ainda mais o modelo concentrador e sem garantir água para a população difusa da região. No Semiárido, uma pessoa pode passar até 36 dias/ano em busca de água.
Em movimento oposto, mediados pelos aspectos naturais e sociais da região, pautados pelas necessidades, famílias agricultoras camponesas foram testando, adaptando, experimentando e inventando novas formas de se relacionar, captar e armazenar a água das chuvas. Tecnologias sociais simples e eficientes foram surgindo.
Nesse processo, gestaram-se os referenciais e os princípios para a convivência com a região semiárida, o que deu a um conjunto de organizações da sociedade civil as condições para formatação do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido, referenciado nas experiências e estratégias de estocagem de água, sementes e forragens. Hoje materializado no Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e no Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2).
Enquanto a contribuição da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), o P1MC e o P1+2 não apenas trouxeram à tona a problemática no acesso à água de qualidade para as famílias beberem e produzirem alimentos, como ajudaram a construir as bases de um novo paradigma: o da convivência.
A ação da ASA na construção de tecnologias sociais de captação e manejo de água de chuva – cisternas de consumo, cisternas de produção, barragens subterrâneas, tanques de pedra/caldeirões, barreiros trincheiras, cacimbas, outras –, não se realizariam em seus aspectos físicos e simbólicos se o processo de democratização da água, que pretende envolver  diretamente um milhão de famílias, não partisse dos processos participativos e de construção coletiva dos conhecimentos.
Uma das mais valiosas tecnologias sociais vividas no Semiárido, como experiência de uma rede de organizações da sociedade civil, não é apenas a de garantir água para as famílias por meio da construção de infraestruturas hídricas, tarefa grandiosa em si, mas, sobretudo, o exercício cotidiano da construção democrática do Programa, aonde o centro da ação transformadora da rede é sua base social e política. O poder de decidir é das comunidades e famílias.
De forma prática, é a relação: necessitar, propor, construir e acessar a política (exercício participativo de cidadania). Estes processos constituem as bases objetivas e subjetivas na tarefa de democratização da água. O programa constitui-se, desde sua gênese, em um valioso instrumento de luta para ampliar direitos.
Neste processo, enquanto procedimento coletivo de recuperação e registro de saberes e práticas locais, a sistematização das experiências constitui-se em um instrumento metodológico fundamental nos momentos de trocas e intercâmbios, contribuindo para autoestima, construção e acumulação de conhecimentos e saberes. As sistematizações registram as experiências práticas, o que permite uma análise coletiva das ações desenvolvidas, instrumento importante na consolidação do paradigma da convivência com o Semiárido. Expressa as contradições entre os modelos de sociedade em disputa no Semiárido. A convivência em oposição ao desenvolvimentismo.
Construir um programa com tantas peculiaridades, diversidades territoriais e dificuldades na democratização da água, permite-nos afirmar que o caminho trilhado até aqui deve servir de horizonte para construção das novas políticas públicas para chegar às famílias. Para tanto, é preciso partir da premissa de que a democratização da água na caminhada é uma conquista e não uma benesse.
Se o paradigma da convivência é hoje uma realidade e se insere fortemente na pauta da política pública como proposta e ação de acesso à água como elemento de segurança e soberania alimentar e nutricional, a consolidação de uma realidade que coloque no centro estratégico da ação as experiências das famílias e possibilite a visibilidade e a troca horizontal de conhecimentos, ainda é um desafio a ser perseguido e parece requerer uma grande caminhada. Exige parcerias estratégicas com quem comunga dos mesmos princípios e anseios.
Outros elementos se agregam a essas iniciativas, que compõem uma proposta de projeto para o desenvolvimento sustentável da região semiárida. Contudo, para nós da ASA, qualquer proposta para a região deve ser pautada por um Semiárido com água, alimento e direitos.

*Antônio Gomes Barbosa é sociólogo, Coordenador do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA).
Fonte: Publicação “Tecnologia Social e Desenvolvimento Sustentável – Contribuições da RTS para a formulação de uma política de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação”

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