segunda-feira, 3 de novembro de 2025

PREFÁCIO - Superação da pobreza rural no Semiárido brasileiro: a trajetória do Projeto Dom Hélder Câmara


 Antonio Gomes Barbosa1

“Ótimo que a tua mão ajude o vôo...Mas que ela jamais se atreva a tomar o lugar das asas...” (Dom Hélder Câmara)

Ao prefaciar o livro “Superação da pobreza rural no Semiárido brasileiro: a trajetória do Projeto Dom Hélder Câmara”, uma coletânea de artigos que abordam as diversas contribuições, desafios, pistas e fases do Projeto Dom Hélder Câmara (PDHC), temos também a oportunidade de revisitar a história de lutas do próprio Dom Hélder Câmara, uma figura extremamente relevante na construção de uma abordagem alternativa para a extensão rural, entendida como comunicação popular. Dom Hélder Câmara sempre teve como foco a construção coletiva de conhecimento, especialmente no contexto das lutas por justiça social, direitos humanos e superação da pobreza, temas intrinsecamente ligados às questões mais urgentes do Semiárido rural e da vida de seu povo. Portanto, buscando adicionar uma reflexão mais aproximada a caminhada deste importante ator social, que dá nome a este projeto, propomos dividir este prefácio em duas partes: a primeira, explorando a trajetória de lutas e as convicções de Dom Hélder Câmara; e a segunda, discutindo o Semiárido de hoje, nossas conquistas e desafios, sempre tendo tal fi gura como inspiração, tanto no passado quanto nos dias atuais.

Boa leitura!

Dom Hélder Pessoa Câmara, arcebispo católico romano nascido em 7 de fevereiro de 1909, no estado do Ceará, tornou-se conhecido por seu incansável trabalho em prol dos direitos humanos e na luta contra as injustiças sociais. Em 1952, foi um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e, em 1961, criou o Movimento de Educação de Base (MEB), voltado para a alfabetização e educação de adultos, especialmente nas áreas rurais do Nordeste. Por meio dessas iniciativas, ele empoderou as populações mais carentes e promoveu a cidadania. Além disso, fundou a Ação Popular (AP), um movimento cristão de esquerda que buscava combater as desigualdades sociais e propor reformas estruturais no Brasil. Dom Hélder pregava uma Igreja comprometida com os pobres e oprimidos, influenciando muitos religiosos a se engajarem nessa causa.

Em 1964, foi nomeado Arcebispo de Olinda e Recife. Durante seu episcopado, intensificou suas ações em favor dos mais necessitados, transformando a arquidiocese em um centro de resistência e defesa dos direitos humanos. Durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), ele se posicionou firmemente contra as violações dos direitos humanos, denunciando a tortura, a censura e a repressão política. Sua coragem e atuação incansável lhe renderam diversas indicações ao Prêmio Nobel da Paz.

Dom Hélder dedicou sua vida à luta contra a pobreza e a desigualdade no Nordeste, criando diversos programas e iniciativas para auxiliar os mais necessitados e promovendo a inclusão social e a dignidade humana. Sua trajetória foi um farol de esperança e justiça na história do Brasil, inspirando gerações na busca por um mundo mais justo e humano.

Em 1993, o Nordeste do Brasil enfrentava uma das secas mais severas do século XX. Nesse contexto desafiador, Dom Hélder Câmara, mesmo aposentado como arcebispo, manteve sua postura combativa e solidária. Em novembro daquele ano, mais de 400 trabalhadores rurais ocuparam a sede da SUDENE, em Recife, em uma ação coordenada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG) e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Essa ocupação foi um marco na denúncia das políticas de “combate à seca” e na promoção de um novo paradigma, o da “Convivência com o Semiárido”. O objetivo era chamar a atenção para a negligência do governo e exigir ações estruturais e permanentes adaptadas à região.

A Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) tinha como missão promover o desenvolvimento econômico e social da região, porém, muitas vezes, os recursos destinados à seca não chegavam aos mais necessitados. A frustração e a revolta da população eram evidentes. Mesmo não liderando a ocupação, Dom Hélder Câmara apoiou ativamente o movimento, utilizando sua influência e prestígio para dar visibilidade à causa e pressionar as autoridades a agirem. Seu apoio trouxe legitimidade e força ao movimento, demonstrando seu compromisso inabalável com os mais vulneráveis.

A ocupação da SUDENE desencadeou vários processos, e naquele mesmo ano, mais de 300 entidades organizam o seminário: “Ações Permanentes para o Desenvolvimento do Semiárido Brasileiro”. As ações propostas visavam fortalecer a agricultura e as comunidades locais na região do Nordeste Semiárido através de diversas estratégias: i) Organização dos pequenos produtores e sua produção em associações e cooperativas, permitindo uma intervenção articulada no mercado e promovendo a união e colaboração entre os agricultores; ii) Garantia de acesso à terra para os pequenos produtores rurais, possibilitando a segurança e estabilidade na produção agrícola; iii) Geração, sistematização e difusão de tecnologias apropriadas para cada microrregião, em colaboração com as organizações dos produtores, visando aumentar a produtividade e a sustentabilidade das atividades agrícolas; iv) Agregação de valor à pequena produção rural, por meio do beneficiamento da produção primária e do incentivo ao desenvolvimento de pequenas empresas não agrícolas, explorando as potencialidades de cada microrregião.

Da ocupação da SUDENE surgiu o Fórum Nordeste, que reuniu organizações sociais críticas às ações de “combate à seca” e defensoras de alternativas para a convivência com o Semiárido. Esse movimento inspirou a formação de fóruns estaduais e, em 1999, durante o Fórum Paralelo à III Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertifi cação (COP3), em Recife, nasceu a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). Essa rede, composta por diversas organizações da sociedade civil, baseia-se na conservação dos recursos naturais e na quebra do monopólio de acesso à terra e outros meios de produção, seguindo os princípios históricos de Dom Hélder.

Passados mais de 30 anos desde a ocupação da SUDENE, que contou com a contribuição de Dom Hélder, o que se pode afirmar é que o Semiárido de hoje não é mais aquele, onde a maioria das pessoas sequer tinham registros de nascimento; onde água era um artigo de luxo (nem estamos a falar em água de qualidade); onde a alimentação era precária a fome era muito mais comum na vida das famílias.

Além disso, também não se falava em um programa de extensão rural apropriada à realidade das famílias agricultoras e povos originários e comunidades tradicionais do Semiárido. Hoje, como resultado de muita luta, tudo mudou. São mais de um milhão e duzentas mil famílias que têm uma cisterna de placas com capacidade de 16 mil litros de água para beber e cozinhar ao lado de suas casas; são mais de 220 mil famílias que têm água pra produção; são inúmeros os quintais produtivos e os sistemas agroflorestais em plena produção; são inúmeras as feiras agroecológicas e outras formas e espaços de comercialização; são inúmeras as famílias assessoradas e tendo a possibilidade de experimentar suas inovações, num processo rico de construção coletiva de saberes e troca de conhecimentos. Trata-se, portanto, de centenas de milhares de famílias em processos de intercâmbios horizontais. São famílias, comunidades e povos retomando seus territórios.

Apesar desses avanços, o cenário ainda não é o ideal: apenas aponta que o Semiárido está no caminho certo. No entanto, são mais de 500 mil famílias que ainda não têm água pra beber, e mais de um milhão sem água pra produção. A assessoria técnica apropriada ainda é distante para a ampla maioria das famílias do Semiárido. Ainda, o acesso à terra e aos territórios são temas e lutas urgentes. A região vive forte um processo de mudanças no clima, onde áreas antes semiáridas se tornaram áridas, e as subúmidas secas, em semiáridas. O Semiárido já passa por uma emergência climática.

Logo, há ainda um longo caminho a ser percorrido. Inspirados pela história de luta de Dom Hélder Câmara, precisamos continuar construindo um Semiárido mais justo e sustentável, enfrentando os desafios e aproveitando as oportunidades que se apresentam.

Que sua memória e legado nos guiem nessa jornada!

1 Sociólogo, mestre em Agroecologia, doutorando em Recursos Naturais e Gestão Sustentável, especialista em extensão rural para desenvolvimento sustentável e coordenador, pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), do Programa Sementes do Semiárido e do Projeto DAKI- Semiárido Vivo.

domingo, 17 de agosto de 2025

A convivência com o Semiárido como superação do combate à seca no rural do Nordeste brasileiro: Uma luta de paradigmas socioecológicos

Antonio Gomes Barbosa e David Gallar Hernández

PALAVRAS CHAVES: Semiárido brasileiro, convivência com o Semiárido, desenvolvimento rural, tecnologias sociais.

CÓDIGOS JEL: O33, Q28, Q33, R58.

Este artigo analisa a transição paradigmática na gestão do Semiárido brasileiro, evoluindo do combate à seca para a convivência com o Semiárido. O estudo examina o impacto dessa mudança no desenvolvimento sustentável e na qualidade de vida das populações locais. Utilizando uma metodologia multifacetada, que inclui revisão bibliográfica extensiva, análise histórica comparativa e estudo de caso, a pesquisa revela que a abordagem de convivência, fundamentada em práticas agroecológicas e tecnologias apropriadas, tem contribuído significativamente para maior resiliência e sustentabilidade na região. O trabalho destaca a importância do conhecimento tradicional, o papel crucial da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e o sucesso de programas como o Programa Um Milhão de Cisternas na promoção de tecnologias sociais. Conclui-se que esta transição paradigmática oferece lições valiosas para outras regiões áridas e semiáridas do mundo, embora desafios persistam na implementação plena deste novo modelo.

Acesse o artigo no link abaixo:

https://doi.org/10.26882/histagrar.096e07b

domingo, 10 de agosto de 2025

COP30: documento da Cáritas Brasil tem potencial para inspirar uma rede nacional de propostas

Antônio Gomes Barbosa

Quando a COP30 chegar a Belém do Pará, em novembro de 2025, o Brasil não estará apenas sediando um dos encontros mais decisivos da diplomacia climática. Estará também diante da oportunidade de mostrar ao mundo que as respostas à crise climática podem vir de baixo para cima, das comunidades e territórios que há décadas experimentam, criam e resistem.

Nesse sentido, a publicação recente do Documento de Posições da Cáritas Brasileira para a COP30 é mais do que um gesto institucional: é um exemplo de como transformar experiência acumulada em diretrizes políticas concretas. Organizado em sete eixos – financiamento climático com justiça fiscal, reconhecimento de perdas e danos imateriais, proteção a migrantes do clima, adaptação comunitária, mitigação centrada em direitos territoriais, transição energética justa e agroecologia como política estruturante – o texto combina princípios, diagnósticos e propostas detalhadas.

O diferencial está na forma de abordagem. Em vez de falar apenas de “compromissos” e “metas” abstratas, o documento parte de experiências concretas já aplicadas no Brasil, como o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), e as projeta como modelos escaláveis para políticas de adaptação por biomas. Ao tratar de perdas e danos, não se limita a custos de reconstrução: incorpora dimensões imateriais – pertencimento, identidade, espiritualidade – e sugere instrumentos para que essas perdas sejam reconhecidas e reparadas.

Essa clareza se repete em outros temas: a transição energética é defendida não como um simples “mais renovável”, mas como um processo que deve respeitar direitos, evitar impactos socioambientais e garantir participação real das comunidades afetadas; o financiamento climático é vinculado à justiça fiscal, à taxação de grandes fortunas e à destinação de recursos para organizações comunitárias; a mitigação é pensada a partir da proteção de territórios, não de mercados de carbono desregulados.

A importância desse movimento não está apenas no conteúdo, mas na mensagem implícita: é possível que a sociedade civil se organize e apresente propostas robustas, articulando valores, prática e viabilidade política.

É também uma inspiração para outras redes e organizações brasileiras. A Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), movimentos indígenas, quilombolas, extrativistas e coletivos urbanos possuem experiências riquíssimas que, se sistematizadas em documentos semelhantes, poderiam se somar ao da Cáritas. Uma produção articulada desse tipo criaria uma grande teia de reflexões e orientações para a ação, capaz de influenciar não apenas a COP30, mas o debate climático brasileiro como um todo.

A crise climática exige mais do que discursos de ocasião: pede consistência, propostas concretas e capacidade de incidência. O documento da Cáritas mostra que é possível responder a esse desafio. Agora, resta saber quem mais aceitará o convite implícito e entrará nessa construção coletiva.

O documento da Cáritas pode ser conferidas em português e em inglês no portal da Cáritas - https://caritas.org.br/divulgacao/42

domingo, 6 de julho de 2025

Na encruzilhada do mundo: Reexistência como forma de futuro

Por Antônio Gomes Barbosa, sociólogo.

“Não somos resistentes. Somos reexistentes.” 

A afirmação de Nêgo Bispo, pensador quilombola do Piauí, é mais do que uma provocação política — é uma chave epistemológica. Em vez de reagir às estruturas coloniais com o desejo de inclusão, Bispo propõe a continuidade de mundos que seguem vivos apesar da colonização. Em cada roda de conversa em uma farinhada, em cada mutirão de roçado, nas trocas entre parteiras, raizeiras e agricultores experimentadores, algo se move fora do mapa: são práticas ancestrais que sustentam mundos inteiros. E entre esses mundos, o pensamento de Bispo se ergue como uma teoria viva — uma teoria de mato, de encruzilhada e de autonomia. Sua obra não pede passagem: finca território.

Ao longo de décadas, Antonio Bispo dos Santos elaborou categorias próprias, como “contra-colonização”, “transfluência”, “confluência de saberes” e “cosmofobia”, que hoje atravessam debates acadêmicos. Em Colonização, Quilombos: modos e significados (2015), ele denuncia a renovação das formas de dominação, afirmando que a colonização apenas trocou de roupa: agora se apresenta como projeto, ONG, universidade ou lei. Sua crítica não busca apenas desmascarar estruturas de poder, mas afirmar a legitimidade de mundos que existem sem autorização. Ele chama de contra-colonização essa reação criadora dos territórios, que não é mera resistência, mas reinvenção dos próprios caminhos e cosmologias. Sua leitura de mundo se aproxima, em sentido conceitual, da ideia de autopoiese — não como termo assumido ou reelaborado por ele, mas como uma descrição possível da lógica que reivindica: a capacidade que os povos do território têm de produzir e sustentar suas formas de vida, seus modos de saber e suas práticas sociais sem a necessidade de mediação externa. Essa aproximação conceitual ajuda a iluminar a potência política do que Bispo propõe, sem forçar sobre ele um vocabulário que não reivindica.

Para Bispo, a convivência com o Semiárido não é uma política adaptativa nem um programa técnico. É uma forma de mundo. Não se trata de fazer os pobres sobreviverem às agruras do clima, mas de reconhecer que há formas de existência que florescem no calor da Caatinga, ritmadas por outros tempos, outros corpos e outras cosmologias. “Convivência não é adaptação. É autonomia”, afirmou em uma de suas falas públicas. Essa concepção recusa o modelo de integração oferecido pelo Estado e pelas instituições formais, insistindo na dignidade de continuar existindo a partir de si.

Essa perspectiva encontra ressonância na obra de Maria Sueli Rodrigues de Sousa, jurista, socióloga e professora piauiense, cuja trajetória foi marcada pela construção de um Direito enraizado na escuta, na ancestralidade e no compromisso com os povos do campo, das águas e das florestas. Em sua atuação intelectual e política, Sueli desenvolveu a pedagogia da ancestralidade como prática viva de resistência e reexistência, que desafia os modelos coloniais de saber e de tempo. Para ela, a ancestralidade não é um passado encerrado, mas uma presença orientadora que se manifesta nos gestos cotidianos de cuidado, escuta e lentidão — fundamentos de uma política enraizada nos ritmos da vida e não na produtividade compulsiva. Em suas falas públicas e textos acadêmicos, defendia que o saber ancestral, longe de ser residual, constitui-se como método para descolonizar o conhecimento, o ensino e o próprio Direito.

Ambos os autores — em campos distintos, mas enraizados na mesma terra — convergem ao tratar da convivência como insurgência epistêmica. Trata-se de recusar a tradução forçada dos saberes do território para os moldes institucionais. Bispo alerta que converter as práticas quilombolas em políticas padronizadas é uma forma de apagamento. É o que ele chama de “tradução para poder dominar”. Sua metáfora mais recorrente, a encruzilhada, não é mero ornamento poético: é conceito estruturante. “Na encruzilhada, todo mundo passa. Mas nem todo mundo para. E só quem para aprende alguma coisa com ela”, diz. Nela, os saberes não se fundem nem se anulam. Convivem em tensão, como os fios trançados de uma rede viva que não aceita hierarquia.

Essa visão da continuidade dos mundos encontra forma concreta na maneira como Bispo concebe o tempo e a transmissão de saberes. Em uma de suas falas mais marcantes, ele propõe uma ruptura com a lógica linear da modernidade — aquela que organiza a vida em começo, meio e fim — e a substitui por uma circularidade vital: “geração vó, geração mãe, geração neta: começo, meio, começo”. Nesse ciclo, o tempo não se encerra: ele se renova. A geração da avó carrega o início e a memória, a mãe sustenta o presente com suas escolhas e saberes, e a neta não representa o futuro, mas o reinício. Trata-se de um tempo encarnado, em que a oralidade, a escuta e a prática caminham juntas. Essa forma de ver o mundo não apenas recusa a ideia de progresso linear, mas afirma outra lógica temporal, profundamente enraizada na terra, nas relações e nos corpos que a habitam. Ao invés de destino, a história vira travessia. Ao invés de fim, recomeço.

A radicalidade dessa postura ecoa a epistemologia ch’ixi de Silvia Rivera Cusicanqui, que propõe uma convivência fraturada entre saberes sem síntese nem absorção, e as críticas de Leanne Simpson à domesticação dos conhecimentos indígenas. Contra esse modelo dominante de integração, Bispo propõe o respeito àquilo que persiste. Não como resistência romântica, mas como prática de continuidade. Por isso, sua ciência é do mato: é feita com os calos dos pés, com os olhos que leem o tempo das árvores e os ouvidos afinados com o som do chão. Parteiras, raizeiras, agricultores e griôs não repetem tradições mortas — cultivam uma ciência viva, que cuida, organiza e regenera o mundo.

Maria Sueli reforça esse caminho ao valorizar a escuta como gesto central de sua pedagogia da ancestralidade, entendida não como repetição do passado, mas como reorientação do presente a partir da presença dos que vieram antes. Em suas intervenções públicas e trabalhos acadêmicos, ela destacava que os corpos, os tempos e os territórios guardam saberes profundos, muitas vezes invisibilizados pelas lógicas institucionais e diagnósticos técnicos. Para Sueli, a ancestralidade não requer validação externa: ela se afirma por sua capacidade de sustentar a vida e regenerar o mundo. Essa visão converge com a de Nêgo Bispo, ao recusar a domesticação dos saberes populares e afirmar sua legitimidade plena — não por serem reconhecidos pela academia ou pelo Estado, mas porque seguem vivos, porque nunca cessaram.

Essa recusa à integração — também presente no pensamento de Arturo Escobar e em sua política da autonomia e do sentipensar com a Terra — ganha, em Bispo, uma forma encarnada no cotidiano dos territórios quilombolas. Não se trata de entrar no sistema, mas de interromper as expulsões. A convivência, para ele, não é um objetivo a alcançar. É o que já existe no passo lento de quem planta, no gesto ancestral de quem partilha, no cuidado de quem escuta sem traduzir. Reexistir, nesse sentido, é continuar produzindo mundos nos próprios termos, mesmo quando tudo ao redor exige adaptação, assimilação ou silêncio.

Em uma de suas falas mais citadas, Nêgo Bispo afirma: “Não estamos lutando por um mundo novo. Estamos cuidando para que o nosso mundo não desapareça.” A frase não se quer épica. Ela é raiz. E talvez por isso incomode tanto: porque exige mais do que política pública. Exige escuta. Exige coragem para parar na encruzilhada e não atropelar o que ali pulsa. Exige descolonizar o olhar, o tempo e o gesto. Seu maior ensinamento talvez seja este: não existe um único caminho. Existe a dignidade de caminhar com os pés no chão — e a sabedoria de saber onde não se deve pisar.

Nêgo Bispo e Maria Sueli Rodrigues, cada um a seu modo, anunciam que a luta não é por um lugar no mundo dominante. É por um outro modo de mundo. Um mundo que não precisa ser inventado — porque já existe, inteiro, na oralidade, na sabedoria do mato, na escuta da ancestralidade e na firme decisão de continuar existindo com dignidade.

Salve, salve!

Sueli e Nêgo Bispo, obrigado!

A ordem é desobedecer: Sueli Rodrigues e os sujeitos desconstitucionalizados

Por Antônio Gomes Barbosa, sociólogo

Maria Sueli Rodrigues de Sousa, jurista, socióloga e pensadora piauiense, construiu um dos aportes mais singulares do constitucionalismo crítico brasileiro contemporâneo. Sua trajetória não foi apenas acadêmica: foi também vivida, partilhada e forjada no chão do sertão do Piauí, entre comunidades tradicionais, territórios camponeses, escolas e movimentos sociais. Sua obra se articula por uma epistemologia da convivência, em que o direito se constitui a partir das experiências populares, das memórias compartilhadas e dos afetos politicamente organizados.

Sueli cunhou a expressão “sujeitos desconstitucionalizados” para expressar uma contradição fundante da ordem jurídica brasileira: a distância entre o texto constitucional — inclusivo e formalmente democrático — e a persistente exclusão de povos e comunidades que, mesmo reconhecidos em normas, seguem desprovidos de direitos efetivos. Em Vivências constituintes: sujeitos desconstitucionalizados (2021), propõe que a Constituição não é apenas letra escrita, mas um campo de disputas simbólicas e materiais em que sujeitos historicamente marginalizados — negras e negros, indígenas, camponesas, ribeirinhos, quilombolas, populações periféricas — são impedidos de constituir-se politicamente como sujeitos plenos.

Sua crítica se desdobra na proposição de uma reconfiguração do constitucionalismo, a partir do que chama de “vivências constituintes”: experiências cotidianas e práticas normativas autônomas que tensionam, reescrevem e fundam outros modos de existir e legislar. Não se trata de uma recusa ao direito, mas de uma recusa ao monopólio epistemológico que o Estado exerce sobre o que é reconhecido como direito. Como ela afirmou em entrevista: “a ordem é desobedecer os marcos da cultura eurocêntrica” — uma frase que se tornou emblema de sua desobediência epistêmica, entendida como gesto de ruptura com os sistemas de verdade que separam saberes válidos de saberes ilegítimos.

Em sua dissertação de mestrado, Imaginário social de semiárido e o processo de construção de saberes ambientais (2005), Sueli analisa os modos de saber das comunidades camponesas do Piauí sobre o clima, o solo, as chuvas e o cultivo da terra. Revela como o conhecimento ambiental ali produzido se enraíza em experiências vividas, narrativas orais, religiosidades e práticas herdadas — e denuncia o extrativismo cognitivo e o tecnicismo jurídico que tentam invalidar tais saberes em nome de uma racionalidade supostamente neutra. A produção do conhecimento, segundo ela, é parte da luta por reconhecimento e dignidade. Em suas palavras: “toda vida produz conhecimento. O problema é que só algumas vidas são reconhecidas como produtoras de saberes”.

A tese de doutorado, defendida na Universidade de Brasília em 2009, aprofunda e radicaliza esse percurso. Em O povo do Zabelê e o Parque Nacional da Serra da Capivara no Estado do Piauí: tensões, desafios e riscos da gestão principiológica da complexidade constitucional, Sueli denuncia a violência institucional produzida por uma política ambiental que, ao invocar princípios constitucionais e normas internacionais, desaloja, invisibiliza e deslegitima os modos de vida tradicionais. A comunidade do Zabelê, localizada nos arredores do Parque Nacional da Serra da Capivara, é tomada como caso emblemático da contradição entre conservação ambiental e permanência comunitária.

Na tese, Sueli propõe uma crítica à “gestão principiológica da complexidade constitucional”, ou seja, à aplicação de princípios jurídicos abstratos — como a proteção ambiental ou a função social da terra — de maneira descolada das realidades vividas. Para ela, essa aplicação desconsidera a complexidade dos territórios, das relações simbólicas e da historicidade dos povos. Sua defesa é por um direito que se forme a partir do que ela chama de “direito fenomenológico e territorializado”, fundado nas experiências, nos corpos, nos ritmos e nas memórias das comunidades.

O campo epistemológico proposto por Sueli se entrelaça com o de pensadores como Walter Mignolo, Silvia Rivera Cusicanqui e Catherine Walsh, mas é profundamente ancorado nas realidades brasileiras. Há, contudo, uma afinidade conceitual e afetiva ainda mais intensa com o pensamento de Nêgo Bispo, quilombola do Piauí, com quem Sueli compartilhou espaços de militância, formulação e reencantamento do território. Enquanto Sueli propõe as “vivências constituintes” como práticas fundantes de um novo constitucionalismo, Bispo fala em “ciência do mato”, “transfluência” e “epistemologias da encruzilhada” — todas formas de desestabilizar a hierarquia entre saberes e de afirmar que o conhecimento legítimo não nasce no centro, mas nas bordas, nas encruzilhadas, nos territórios de reexistência.

Ambos afirmam que a oralidade, a memória, a experiência coletiva e o pertencimento territorial não são obstáculos à produção de direito: são, ao contrário, suas condições mais legítimas. Ao lado de Bispo, Sueli constrói o que podemos chamar de uma epistemologia da convivência, marcada pela desobediência amorosa, pela insurgência afetiva e pela recusa em aceitar que o Estado e suas instituições sejam os únicos mediadores da legalidade e da existência.

No ensaio “Quem precisa de identidade? Eu preciso”, Sueli revisita sua própria trajetória. Narra que, enquanto vivia no Saco da Ema, não precisava de identidade individualizada: “eu era da minha comunidade”. Foi ao migrar para espaços urbanos que lhe foi exigido o documento, o CPF, a comprovação institucional de sua existência. Mas essa exigência, segundo ela, destitui a pessoa de sua forma de pertencimento original e impõe um modelo de cidadania que é, ao mesmo tempo, regulador e excludente. Sueli escreve: “o direito estatal é um, mas você conduz a sua vida com o direito que não necessariamente é o estatal... você faz parte da sua comunidade”.

Esse olhar se materializa em diversas falas públicas. Em um vídeo de 2022, Sueli afirma: “Eu sou contra o desenvolvimento, eu sou contra o progresso”. Essa recusa não é irracional ou romântica: é uma crítica profunda à colonialidade do desenvolvimento, que transforma modos de vida em “atraso” e comunidades tradicionais em obstáculos. Em vez disso, Sueli propõe formas de convivência com a terra, com os saberes, com os tempos e com os territórios, que rompem com o imperativo produtivista da modernidade.

Sua contribuição para o direito brasileiro é, assim, ao mesmo tempo teórica, política e afetiva. É teórica, porque propõe categorias novas para pensar o constitucionalismo — como sujeitos desconstitucionalizados, vivências constituintes e direito fenomenológico. É política, porque insere esses debates no contexto das lutas por terra, água, memória e autonomia dos povos. E é afetiva, porque afirma que o direito não pode ser apenas técnica ou norma, mas precisa ser relação, cuidado, partilha.

Em tempos de retrocesso institucional, criminalização de saberes ancestrais e repressão aos territórios populares, a obra de Sueli Rodrigues ressoa com ainda mais urgência. Sua frase — “a ordem é desobedecer” — não é apenas uma provocação. É um chamado à construção de outro mundo: mais justo, mais sensível e mais plural. Um mundo onde o direito seja também palavra viva.

Sob o título “Água para colher futuro”, MDS lança livro para registrar conquistas e desafios dos 20 anos do Programa Cisternas

Lançamento, durante o X EnconASA, teve como palco as margens do Rio São Francisco, paisagem inspiradora da região do Semiárido

“Cada cisterna conta uma história”, afirma o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no texto de abertura do livro recém-lançado pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), em alusão aos 20 anos do Programa Cisternas. Representando as mais de 1,3 milhão de histórias de famílias atendidas com a tecnologia social de acesso à água nesse período, a publicação reúne relatos de um grupo de pessoas – gestoras e gestores públicos, pesquisadores, dirigentes de organizações sociais, entre outros – que ajudaram a construir essa importante política pública de garantia do direito de acesso à água e ao alimento.

“Ao abordar os desafios e conquistas do Programa Cisternas, esta publicação propõe uma reflexão sobre o nosso papel, como sociedade, na defesa dos direitos básicos e na promoção da justiça social”, afirma o ministro Wellington Dias, no prefácio do livro.

Ao longo de suas mais de duzentas páginas, o livro traz artigos que abordam temas transversais e profundamente convergentes ao Programa Cisternas, como segurança alimentar, transformação social, relação entre Estado e sociedade, inclusão social, mudanças climáticas, entre outros. Traz ainda um relato de como surgiu essa que é, hoje, uma das mais importantes políticas públicas de convivência com o Semiárido e que, de forma inovadora surge como um instrumento de resiliência para as populações rurais no Brasil, frente aos desafios das mudanças climáticas.

A secretária nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do MDS, Lilian Rahal, destacou que o nome do livro "Água para colher futuro" é sugestivo, porque a trajetória construída até aqui é só a metade do caminho. "Ainda temos um longo caminho pela frente e um futuro para explorar e trabalhar para garantir a segurança alimentar e a segurança hídrica das populações rurais.”

A linha do tempo, cuidadosamente elaborada com a colaboração de diversas pessoas que ajudaram a construí-la desde o início da implementação do Programa, não encerra no capítulo dedicado a ela. Segue sendo escrita para além das páginas impressas, no dia a dia de um processo de gestão norteados pelos princípios da democracia participativa, que envolve parcerias entre Governo Federal, governos estaduais e sociedade, por meio de suas organizações.

“O artigo de contribuição da ASA tem um elemento importante que é a perspectiva de reconhecer que existe uma coprodução da política pública. O Programa Cisternas pode até ser uma sugestão e uma contribuição da sociedade civil, mas ele não seria possível sem a parceria com o Estado, sem a parceria com pessoas que acreditam e confiam nessa ação. Essa retomada reafirma a necessidade da parceria entre a sociedade civil e o Estado. E nós, da ASA, temos o prazer e a honra dessa parceria”, afirmou o coordenador pedagógico da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Antônio Barbosa.

Recheado de histórias inspiradoras, relatadas por homens e mulheres que hoje experimentam uma nova realidade, graças ao direito de acesso à água a eles assegurado pelo Programa Cisternas, o livro ainda traz um capítulo dedicado a dados e pesquisas realizadas. Um exercício de sistematização que tem como intuito trazer evidências sobre o processo de transformação e melhoria da vida das pessoas, hoje não apenas na região do Semiárido, mas também em outras regiões do país, como a Amazônica.

“O livro traz a revolução silenciosa que está acontecendo também na Amazônia e o que significa essa tecnologia social que a ASA desenvolveu lá no início e vem implementando ao longo desses muitos anos, o que significa isso para as políticas públicas e onde a gente quer chegar”, registrou Lilian Rahal.

A reflexão feita logo nas primeiras linhas do capítulo introdutório destaca a importância do Programa desde a sua origem, há mais de duas décadas, até o presente e para o futuro: “Beber água suja, empoçada, compartilhada com os animais é uma experiência aviltante pela qual passam ainda muitos brasileiros e brasileiras rurais pobres. Ter água de qualidade em casa é outra vida. Ouvir as famílias que participam do Programa Cisternas falarem dessa mudança é sempre comovente”

Foto: ASA
Foto: ASA
Paisagem e lançamento

Com 2.863 km de extensão, o “Velho Chico”, como é carinhosamente chamado o Rio São Francisco, é parte da vida de todo sertanejo. A imensidão de suas águas parece nutrir a esperança que renasce todos os dias no coração de quem vive no Semiárido e que aprendeu com a situação de escassez desse tesouro natural na região que água é direito de toda pessoa.

Nesse cenário, no município de Piranhas, em Alagoas, foi realizado o lançamento do livro “Águas para Colher Futuro - 20 Anos do Programa Cisternas”, durante o X Encontro Nacional da Articulação Semiárido Brasileiro (EnconASA).

Para Vitor Santana, coordenador-geral de Acesso à Água da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sesan) do MDS, “o livro é uma forma de deixar o registro dessa revolução silenciosa e transformadora, não só a cisterna mas esse movimento que a ASA representa para a região do Semiárido.”

Nessa mesma sintonia, Fernanda Cruz, coordenadora de Comunicação da ASA, ressaltou que “o livro permite que essa história permaneça, que não seja esquecida, tanto para quem está em outros lugares quanto para futuras gerações. Isso também é um grande legado desses 25 anos de ASA e também, por conta dessa relação que a gente construiu ao longo dos anos com o governo”, concluiu.

A realização do projeto que culminou na publicação, já está disponível a todas as pessoas na versão eletrônica e na série de vídeos de famílias beneficiárias, também disponível no YouTube, é resultado de uma parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Somam-se a esse esforço, o trabalho e a dedicação de inúmeras pessoas, organizações da sociedade civil parceiras e equipes que contribuíram para alcançar o resultado apresentado.

Assessoria de Comunicação - MDS

Assistência Social

domingo, 15 de junho de 2025

CONTAG: Seis Décadas de Lutas no Campo Brasileiro História, Conquistas e Resistências

 Antônio Gomes Barbosa*

Alexandre Ribeiro Botelho - Merrem**

Resumo

A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) tem sido, desde sua fundação em 1963, uma das mais importantes organizações de representação e organização dos trabalhadores e trabalhadoras do campo brasileiro. Este artigo reconstitui sua trajetória histórica, articulando os ciclos políticos nacionais com os processos de auto-organização rural, a institucionalização dos direitos sociais, as disputas em torno das políticas agrárias e de convivência com o Semiárido e de fomento da produção e comercialização para o fortalecimento da agricultura familiar. A análise percorre seis períodos: (1) fundação e resistência à ditadura; (2) rearticulação democrática e Constituinte; (3) consolidação da reforma agrária e da política sindical; (4) expansão das políticas de convivência com o Semiárido; (5) defensiva institucional e riscos recentes; (6) retomada democrática e novos desafios. Em cada etapa, são destacadas ações relevantes, lideranças, campanhas, articulações institucionais e os enfrentamentos com os projetos hegemônicos de desenvolvimento rural.

Quadro 1 – Principais Períodos da História da CONTAG

Período

Características principais

Governo federal

1963–1964

Fundação, mobilização pré-golpe

João Goulart

1964–1985

Intervenção, resistência e reorganização sindical

Ditadura militar

1985–1994

Redemocratização, Constituinte e reconhecimento de direitos sociais

Sarney, Collor, Itamar Franco

1995–2015

Políticas públicas, reforma agrária, programas de convivência

FHC, Lula, Dilma

2016–2022

Golpe, retrocessos institucionais, desmonte das políticas públicas

Temer, Bolsonaro

2023–2025

Retomada democrática, reconstrução institucional, novos desafios

Lula (3º mandato)

 1. A CONTAG entre a fundação e o golpe (1963–1964)

A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) foi criada em 22 de dezembro de 1963, no contexto das reformas de base propostas pelo governo João Goulart. Sua fundação resultou de um processo de mobilização iniciado nos anos 1950 com o surgimento de associações de trabalhadores rurais, influenciadas por experiências anteriores como as Ligas Camponesas de Francisco Julião em Pernambuco e a atuação da Igreja Católica por meio da Juventude Agrária Católica (JAC). A criação da CONTAG foi um marco no processo de sindicalização do campo, pois estabeleceu uma representação nacional autônoma dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, num momento de intensificação das lutas pela reforma agrária.

Segundo Gohn (2011, p. 129), “o sindicalismo rural surgiu no Brasil em meio a uma estrutura agrária concentradora, buscando reconhecimento institucional e político para os camponeses e assalariados do campo”. A CONTAG nasceu, portanto, como um projeto de organização e resistência, voltado à construção de uma cidadania camponesa num país ainda marcado por latifúndios, coronelismo e repressão.

Contudo, poucos meses após sua fundação, o golpe civil-militar de 1964 interrompeu violentamente esse processo. A recém-criada Confederação sofreu intervenção federal, e dezenas de lideranças sindicais foram perseguidas, presas ou exiladas. A estrutura sindical do campo foi submetida ao controle do Ministério do Trabalho, que nomeava interventores nas federações e sindicatos. O projeto de reforma agrária foi abandonado, e o sindicalismo rural foi instrumentalizado pelo regime para fins de pacificação social.

2. Resistência e rearticulação durante a ditadura (1964–1985)

Durante os 21 anos da ditadura militar, a CONTAG passou por um processo de resistência silenciosa e reorganização institucional, ainda que sob forte controle estatal. Apesar das intervenções, a Confederação manteve atividades formais, utilizando os canais permitidos pela legislação sindical para manter ativa a representação dos trabalhadores. Com o tempo, lideranças camponesas começaram a reocupar espaços nos sindicatos de base e nas federações estaduais.

A partir da década de 1970, com o crescimento da oposição ao regime e a atuação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), formou-se uma aliança estratégica entre o movimento sindical e os setores progressistas da Igreja Católica. Essa articulação foi fundamental para a formação de novas lideranças e para a retomada das pautas de direitos e reforma agrária. Segundo Navarro (2003, p. 44), “a construção da nova hegemonia camponesa passou pela articulação entre cultura popular, teologia da libertação e práticas sindicais de base”.

Um marco importante foi a organização das FETAGs – Federações dos Trabalhadores na Agricultura – em vários estados, como a FETAPE e a FETAG-RS, que passaram a atuar com maior autonomia e foco formativo. Em paralelo, a CONTAG começou a sistematizar experiências de formação e a construir sua base de dados sobre a realidade rural, preparando-se para o contexto da redemocratização.

Como afirma Fernandes (2013), o sindicalismo camponês do período ditatorial “foi se politizando na contramão do Estado autoritário, valendo-se de brechas legais e do apoio das pastorais para organizar a luta no interior”. A resistência à ditadura no campo brasileiro, portanto, não foi apenas institucional, mas sobretudo territorial, por fortalecer as articulações locais e regionais; cotidiana, pois esteve presente no dia a dia da luta e resistência contra a ditadura e pedagógica por possibilitar incontáveis espaços formativos cultivando aprendizados frutos de um processo de construção coletivo do conhecimento, que semeavam transformações sociais.

3. Redemocratização, Constituição de 1988 e fortalecimento da representação (1985–1994)

Com o fim do regime militar e o início do processo de redemocratização, a CONTAG ampliou sua atuação política e recuperou espaços institucionais, tornando-se uma das principais protagonistas na defesa dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais. A participação ativa da entidade na Assembleia Nacional Constituinte (1987–1988) foi determinante para a consolidação de direitos previdenciários, trabalhistas e fundiários no campo.

Entre as conquistas emblemáticas do período está a inclusão dos trabalhadores e trabalhadoras rurais no sistema de seguridade social, com a criação da aposentadoria rural, o direito à licença-maternidade e a extensão dos direitos previdenciários a homens e mulheres. Foi também assegurado o acesso à terra como direito social, conforme previsto no artigo 184 da Constituição de 1988. De acordo com Delgado (2012, p. 38), “o protagonismo da CONTAG na Constituinte garantiu que o mundo rural fosse reconhecido como parte integrante da cidadania brasileira”.

Essa fase foi marcada ainda pelo fortalecimento organizativo da base sindical. A fundação da Escola Nacional de Formação da CONTAG (ENFOC) e a ampliação dos programas de formação de lideranças nos sindicatos e federações estaduais permitiram um salto qualitativo na ação sindical. O conceito de formação política e cidadã, que se tornou central na estratégia da entidade, foi influenciado pelas metodologias freirianas e pela experiência das pastorais rurais, como reconhece Silva (2010, p. 116): “a pedagogia do oprimido, trazida por Paulo Freire, foi incorporada pelos agentes da CONTAG como método de mobilização e consciência de classe”.

Nesse mesmo período, a CONTAG intensificou seu diálogo com o Estado e com outras organizações sociais. Acompanhou a criação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Fórum Nacional de Reforma Agrária e do campo progressista que passou a disputar as políticas públicas no governo federal. Em um cenário de crise econômica, hiperinflação e instabilidade política nos governos Sarney, Collor e Itamar Franco, a CONTAG atuou tanto na denúncia das violências no campo quanto na proposição de alternativas institucionais para a agricultura familiar.

4. A CONTAG na era das políticas públicas e da convivência com o Semiárido (1995–2015)

No seu 6º Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais, realizado em 1995, a CONTAG inicia um amplo debate acerca da necessidade de formular um Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário – PADRSS, para fazer frente ao projeto concentrador de riquezas e de poder, elitista e hegemônico na sociedade brasileira. Nesse sentido, foram promovidas, em âmbito nacional, estadual, regional e municipal, várias ações de formação, pesquisa e debate, para que fossem elaborados e sistematizados, de forma participativa e democrática, os conteúdos do PADRSS, posteriormente aprovado no 7º Congresso Nacional de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, realizado em 1998. Foram aprovados os pontos centrais do PADRSS, os quais orientaram a prática sindical e a sua ação política pelas décadas seguintes, garantindo unidade de ação e visão estratégica de enfrentamento ao projeto político conservador do agronegócio e das elites brasileiras.

A partir do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1998–2002) e, sobretudo, com a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência em 2003, a CONTAG passou a atuar em uma conjuntura mais favorável à formulação de políticas públicas voltadas à agricultura familiar, aos povos do campo e à convivência com o Semiárido. O reconhecimento da agricultura familiar como categoria legal, por meio da criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), marcou o início de um ciclo de expansão de programas específicos, muitos deles com a participação ativa da CONTAG desde a sua concepção e, em várias vezes, nas implementações de projetos inovadores para vida digna no campo, visando a superação da fome e da extrema pobreza.

Cabe destaque também a Marcha das Margaridas, que desde o ano 2000, hoje na sua sétima Edição, vem sendo a maior mobilização da organização de mulheres do Brasil.  Em todas as suas realizações, apresentou um conjunto de reivindicações para que se efetivem políticas públicas de proteção das mulheres contra violência, de democratização do acesso à terra, de agroecologia, de preservação da natureza e de inclusão digital para trabalhadoras rurais. A Marcha da Margaridas, protagonizada pela CONTAG, em parceria com muitos outros movimentos sociais, tornou-se símbolo da resistência de milhares de homens e mulheres que buscam justiça e dignidade. 

Durante os governos Lula e Dilma Rousseff (2003–2015), a CONTAG se consolidou como uma das principais interlocutoras do governo federal na elaboração e monitoramento de políticas rurais. Participou ativamente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF), do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e de instâncias interministeriais voltadas à reforma agrária, ao crédito rural e às políticas sociais, para o fortalecimento efetivo da agricultura familiar. Segundo Sauer (2016, p. 55), “a institucionalização do movimento sindical rural no período petista criou as condições para que as demandas históricas da agricultura familiar fossem incorporadas ao orçamento público e às agendas ministeriais”. As manifestações do Grito da Terra Brasil foram potentes expressões nacionais do Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais, realizadas anualmente, para garantir a negociação com os governos federal e estaduais das principais reivindicações do campo brasileiro, em que muitas dessas reivindicações viraram políticas públicas.

O processo formativo, desde a base sindical, até as ações estaduais, regionais e nacionais, implementado pela Escola Nacional de Formação da CONTAG, desde a sua fundação em 2006, se constituiu fundamental ferramenta para a afirmação e defesa do Projeto de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário- PDRSS, no cotidiano da vida sindical nas cinco regiões do Brasil.

Destacam-se, nesse ciclo, os seguintes programas:

  • Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC): a atuação da CONTAG foi decisiva para a capilaridade do programa, por meio dos sindicatos e das federações vinculadas presentes no Semiárido. A organização incentivou a ação e a mobilização das famílias para a adesão ao programa, combinando mobilização social com controle popular. Segundo ASA Brasil (2014), os sindicatos rurais tiveram papel crucial na articulação entre as comunidades, as entidades executoras e os órgãos gestores.
  • Campanha Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural: lançada em 2004, essa iniciativa conjunta com o MDA e a Secretaria de Políticas para as Mulheres beneficiou mais de 2 milhões de mulheres com documentação civil, trabalhista e previdenciária. A campanha foi reconhecida internacionalmente como boa prática em políticas de equidade.
  • Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) e Programa Sementes do Semiárido: a CONTAG, com forte protagonismo das federações e sindicatos rurais do Semiárideo, sempre teve em sua pauta de negociação, quer no Grito da Terra Brasil, quer nas Marchas das Margaridas, os programas de acesso à agua e sementes, sendo essencial para que os governos incorporassem a dimensão da convivência com o Semiárido.
  • Projeto Quintais Produtivos das Margaridas: articulado em parceria com a Secretaria de Mulheres da CONTAG, promoveu a soberania alimentar e a valorização do trabalho das mulheres no meio rural. As experiências mostraram que políticas públicas eficazes exigem territorialidade, gênero e participação popular (CONTAG, 2013).

Nesse contexto, a CONTAG ampliou sua capacidade política, não apenas no Brasil, mas também em articulações internacionais como o COPROFAM (Coordenação de Organizações de Produtores Familiares do Mercosul) e a Reunião Especializada da Agricultura Familiar do Mercosul (REAF).

Ao mesmo tempo, a CONTAG manteve sua estrutura baseada nas federações estaduais (FETAGs), fortalecendo sua presença em todos os estados da federação e apoiando sindicatos em processos de legalização, formação política e controle social. Essa atuação combinou mobilização territorial, formação de base e institucionalização democrática, o que caracteriza, segundo Gohn (2011), um dos modelos mais consistentes de “movimento sociopolítico de base sindical” da América Latina.

5. Golpe de 2016, desmontes e ameaças aos direitos (2016–2023)

O golpe parlamentar de 2016, que resultou na destituição da presidenta Dilma Rousseff, inaugurou um período de retrocessos nas políticas públicas voltadas ao campo e intensificou a ofensiva contra os direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais. A extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a paralisação de programas como o P1MC, o fechamento de conselhos participativos e a reforma trabalhista de 2017 sinalizaram um projeto de desmonte da estrutura de participação e das garantias sociais construídas desde a Constituição de 1988.

A CONTAG denunciou, desde o início, os impactos dessa agenda de austeridade e desregulamentação. Além das perdas diretas, como o fim de políticas específicas para a agricultura familiar, houve um enfraquecimento institucional das federações estaduais e dos sindicatos de base, afetados pela crise econômica e pela extinção da contribuição sindical obrigatória. Como analisa Medeiros (2020), “as organizações sindicais no campo enfrentaram, simultaneamente, a asfixia financeira, a criminalização política e a ofensiva ideológica contra os direitos sociais”.

Durante o governo de Jair Bolsonaro (2019–2022), esse processo se agravou com a militarização da política agrária, a paralisação da reforma agrária e a repressão aos movimentos do campo. O Estado se ausentou da coordenação de políticas de segurança alimentar no Semiárido, e iniciativas como as cisternas escolares ou os quintais produtivos foram abandonadas. Em muitos territórios, sindicatos rurais denunciaram o avanço do agronegócio sobre terras públicas e áreas de uso comum, com o aumento da violência, da grilagem e da destruição de bens comuns (Sauer & Almeida, 2021).

A CONTAG se viu obrigada a reorganizar sua estratégia, fortalecendo articulações com organizações da sociedade civil como a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), o Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social e articulações internacionais de luta contra a fome e a pobreza. Esse foi um período de resistência, denúncia e tentativa de sobrevivência institucional diante do avanço autoritário e ultraliberal do Estado.

6. Retomada democrática e desafios contemporâneos (2023–2025)

A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2022 representou uma inflexão política significativa para reafirmação dos movimentos do campo. A retomada do Ministério do Desenvolvimento Agrário, a reativação do CONSEA e do CONDRAF e a reinstitucionalização do Programa Cisternas sinalizaram a reconstrução de espaços democráticos de interlocução com o Estado e retomadas das políticas públicas voltadas para a agricultura familiar e para os segmentos empobrecidos da sociedade.

A CONTAG retomou sua posição nos conselhos nacionais e voltou a participar de fóruns internacionais, reafirmando sua defesa dos princípios da reforma agrária, da agroecologia, da convivência com o Semiárido e da valorização das juventudes e mulheres rurais. Ao mesmo tempo, enfrenta desafios estruturais, como a necessidade de renovar sua base sindical, recuperar sua capacidade formativa e reconectar-se com as novas pautas do mundo rural, como as mudanças climáticas, a transição energética e os direitos territoriais.

Segundo Leite (2023), “a reconstrução democrática exige o reconhecimento do papel histórico do sindicalismo do campo, não apenas como defensor de direitos trabalhistas, mas como ator estratégico na construção de um modelo de desenvolvimento rural sustentável e participativo”.

Programas como o novo PAC das Águas, o relançamento da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), o fortalecimento das políticas de sementes crioulas e dos quintais produtivos recolocam a CONTAG como parceira fundamental na execução descentralizada e territorializada das políticas públicas. Nesse contexto, a articulação com as FETAGs e os Sindicatos de Trabalhadores Rurais STR’s é central para garantir que as ações de governo tenham capilaridade e legitimidade social.

Contudo, os riscos não estão superados. O avanço do neoconservadorismo, as disputas por orçamento e as limitações institucionais do Estado exigem, do Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais - MSTTR, articulado nacionalmente pela CONTAG, um esforço contínuo de mobilização, formação e unidade política. Defender a CONTAG, neste novo ciclo, é também defender a democracia, os territórios e os bens comuns.

Considerações Finais

A história da CONTAG expressa, de forma exemplar, as disputas por projeto de sociedade no Brasil rural. Em seis décadas, a Confederação passou da resistência à ditadura à institucionalização democrática; da exclusão do campo às políticas públicas de convivência com o Semiárido; da repressão e violência à reforma agrária; da agricultura ecologicamente insustentável à luta por agroecologia, da agricultura degradadora à práticas agrícolas sustentáveis.

Sua trajetória mostra que os direitos conquistados pelas trabalhadoras e trabalhadores rurais foram resultado de organização, formação política, alianças estratégicas e protagonismo social e político. Como destaca Navarro (2003), “não há políticas públicas no campo que não tenham sido conquistadas e disputadas por sujeitos organizados, com voz e projeto político próprio” (p. 59).

Em tempos de incerteza e transição, é preciso reconhecer que a existência da CONTAG é uma condição para a própria existência da democracia rural. Ela representa não apenas uma estrutura sindical, mas um legado de luta, uma escola de cidadania e um espaço de construção coletiva de alternativas para o Brasil rural.

 Referências Bibliográficas

ASA Brasil. (2014). Programa Um Milhão de Cisternas: Relatório de Impacto. Recife: ASA.

CONTAG. (2013). Caderno das Margaridas: Políticas públicas e igualdade no campo. Brasília: CONTAG.

Delgado, G. C. (2012). Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio. Campinas: Editora da Unicamp.

Fernandes, B. M. (2013). A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes.

Gohn, M. G. (2011). Movimentos sociais e políticas públicas. São Paulo: Cortez.

Leite, S. P. (2023). Democracia rural e participação: desafios contemporâneos. Revista de Estudos Rurais, 11(2), 31–49.

Medeiros, L. (2020). Crise sindical no campo: resistência e alternativas. Revista Crítica Rural, 5(1), 12–27.

Navarro, Z. (2003). Mobilização social e participação no Brasil rural. Estudos Sociedade e Agricultura, 1(21), 41–63.

Sauer, S. (2016). Agricultura familiar e políticas públicas: avanços e limites no ciclo progressista. In: R. Mendes & J. Rocha (Orgs.), Políticas Públicas e Sociedade Rural. Brasília: IPEA.

Sauer, S., & Almeida, L. C. (2021). Terra e poder: conflitos fundiários e autoritarismo no Brasil. São Paulo: Expressão Popular.

Silva, R. L. (2010). Formação política e sindical no campo: a experiência da ENFOC. Brasília: CONTAG.

*Antonio Gomes Barbosa. Sociólogo, mestre em agroecologia e doutorando em gestão sustentável de recursos naturais pela Universidade de Córdova, Espanha. Coordenador de programas de acesso à água para produção e sementes crioulas pela Articulação Semiárido Brasileiro – ASA.

** Alexandre Ribeiro Botelho – Merrem. Educador popular, filósofo, bacharel em direito e mestre em Agroecologia. Colaborador na formação de trabalhadores e trabalhadoras rurais na Escola Nacional de formação da CONTAG - ENFOC e facilita processos  participativos para construção de políticas públicas.

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